segunda-feira, fevereiro 27

sexta-feira, fevereiro 24

Fé cega


Estive recentemente com tristeza em velório de mãe de grande amigo em Uberaba. Fomos todos pegos de surpresa. A morte sempre traz sensação de impotência, de perda de domínio sobre tudo.

Como parte do ritual fúnebre, padre paramentado, coisa rara, disse palavras belas de conforto e paz.
Não sendo propriamente católico, não sabia acompanhar a preleção e entoar cânticos de resposta às orações ali apresentadas. Explico: sendo filho de judeu e católico, tive a felicidade de ter contato com ambas as religiões, ou seja, além de dupla nacionalidade, mãe mineira, pai do Brooklyn NY, fui exposto a processo de aculturação religiosa, um privilégio que, apesar de saudável, perigoso, pois bagunça a cabeça de qualquer jovem.

Frequentei quando bem criança a igreja católica. Saía de lá sempre com medo das chamas do inferno. Depois passei a frequentar a Associação Israelita e nunca me senti tão bem. Não que tenha me tornado judeu praticante a ponto de respeitar o Shabat, alimentar apenas de comida kosher ou comemorar o Rosh Hashaná, nosso ano-novo. Mas me dedico, permanentemente, a estudos do Tanakh e me atualizo permanentemente por meio da Morashá, além, é claro, de ter sido circuncidado.

Mas o que me deixou pensativo foi uma frase dita pelo padre, algo mais ou menos assim:
— Serás recebida às portas do Céu pelos anjos do Senhor.
Se o céu como pintado existe, não tenho a menor dúvida de que para lá ela foi. Mas o que ficou a martelar minha cabeça foi o porquê de se levar pessoa tão boa e deixar tanta gente ruim entre nós.

Imagino que a adolescência em relação ao Pai Eterno comece aos 50 anos. Tornamo-nos cheios de por quês, de dúvidas em relação a tudo que se diz divino. Em minha busca ouvi prelação de rabino cínico, sermão de padre homofóbico e comício de evangélicos irados. Na doutrina espírita e no zen budismo, uma tranquilidade excessivamente conformista e morna. Na umbanda, encontrei alegria e beleza, cores e música a cultuar divindades, em belo sincretismo religioso, como bem definiu Milton Nascimento, para a entrada mágica de maravilhosa madona e seu andor em preciso e brilhante esplendor azul. Passagem no lindo Maria, Maria encenado à exaustão pelo Grupo Corpo. Obra-prima da dança brasileira. Primeira peça do grupo que, felizmente, soube sempre criar trabalhos à altura da estreia nos palcos. Começar do ótimo nunca é fácil.

Que fique aqui bem claro que não estou emitindo nenhum juízo de valor sobre religião que seja. Tenho profundo respeito por todas que buscam o bem. Estou agindo como o adolescente descrito acima, em difícil fase dos por quês. Talvez buscando um rumo. O famoso do tal “de onde viemos, para onde vamos”. Para um paraíso místico de mel e deleite? Ou enfrentar Cérbero, o guardião das portas do inferno, após cruzar o rio Aqueronte, onde fica a entrada do reino de Hades?

Depois de muito matutar, a uma conclusão cheguei. Hoje posso finalmente me definir e os por quês tendem a amainar. Sou mesmo é um judeu devoto de Nossa Senhora, encantado com a Umbanda, na qual, com prazer, troco areia de terreiro, na virada do ano. Sem se esquecer de, no dia 2 de fevereiro, acender velas para Iemanjá. Ainda me remetendo a Maria, Maria e que Deus abençoe o jeito bem nosso de nos dirigir a Ele, para sempre uma saborosa e divina farofa de religiões. Sou tudo, sou nada. Saravá, Amém, Shalom.


Publicado no Jornal Correio em 24/02/2011










quarta-feira, fevereiro 15

domingo, fevereiro 12

Pássaros


Foto: Roseane Cence Lopes

Pior cego é aquele que se recusa a ver. Começo com esse clichê para tentar entender o comportamento humano frente a fatos, às vezes, tão óbvios, tão claros. Alguns teimam em olhar apenas para o próprio umbigo. Sentem-se tão Cuzco(umbigo do mundo) que chegam a enfeitar esta pequena cicatriz que, dizem, Adão e Eva e a moça da propaganda de sandália não tinham, com piercings e joias para se sentirem sempre com brilho e maiores do que o restante da humanidade.

Gente assim costuma não dar atenção aos pequenos e importantes fatos ao redor. Não dão a mínima.
Perdem oportunidades únicas de registrar beleza e perigo. Sobre perigo quero contar.

De alguns dias para cá ando a observar fato no mínimo intrigante. Encontro pelo bairro a fora passarinhos de várias espécies, cores, tamanhos e idades, mortos sem motivo aparente. Não se observa sinais de pedradas, nenhuma lesão externa, o que torna o fato ainda mais misterioso. Semana passada, um bem-te-vi desmanchou-se em penas bem no meu quintal. Seu amarelo-ouro vivo não combinava com a morte. Segurei-o na palma das mãos e sua cabeça inerte pendeu no vazio. O rigor mortis já havia passado e, assim, pelo tempo, não haveria possibilidade de necropsia, sílaba tônica na segunda vogal, e não na terceira, como insistem alguns pouco chegados a leituras e dicionários.

Para por fim à pendenga, um alento: segundo o professor Sérgio Nogueira, “a última edição do Vocabulário Ortográfico, publicada pela Academia Brasileira de Letras, registra duas formas: necropsia e necrópsia”.

Ao observar o belo pássaro morto, fui tomado por profunda angústia só de imaginar que alguém no bairro estaria usando veneno tipo “chumbinho” – cujo uso é restrito e de venda proibida ao público – por algum injustificável motivo e as aves, acidentalmente, ingerindo. E, mais, matar passarinho? Quem seria a besta absoluta a cometer tamanha barbaridade?

O belo Bem-te-vi foi apenas um dos muitos que encontrei pelo bairro. Rolinhas, pombas-do-bando, garrinchinhas e até sanhaços. Sabemos pela prática de trabalho que estamos em plena temporada de nascer de morcegos, muitos dos quais ou caem acidentalmente das costas da mãe ou despencam em queda livre ao tentarem seu primeiro voo. Recolhemos dezenas deles por mês em situações assim. Quando não nos acionam, os pequenos morrem abandonados. Aí não existe intervenção humana, é a seleção natural atuando em sua plenitude. Mas passarinhos caindo do céu e agonizando?

É claro, os pássaros também morrem, assim como as baleias e os elefantes. Morrem de susto, doenças e velhice. Alguns, como as araras e papagaios cativos, em sua maioria têm morte trágica. Quando criança, em pleno bairro Funcionários, vi uma arara vermelha em ataque de desespero, talvez por não poder mais tocar o céu, se atirar em voo suicida à frente do ônibus Serra Capivari 44. Asas atrofiadas pela prisão, não suportou mais a solidão. Vi também um papagaio morto pelo cão da casa. Anos de espreita até conseguir a façanha e calar aquele assobio imitando o dono que o enganava. Vingança canina? Não acredito. Vingança é coisa de gente (des)humana.

Torço para que estas mortes sejam obras do acaso, da natureza em curso. Caso contrário, o pouco que me resta de credibilidade nas gentes chegará a nível crítico. Uma Chernobyl interna prestes a desastre anunciado.





Publicado no Jornal Correio em 12/02/2012

quarta-feira, fevereiro 8

Passarinho II

Agora é só esperar passarinho encontrar e ver se funciona direitinho






Passarinho

Comedouro para passarinhos, cevando a beleza livre em seu quintal. Recebi a ideia de Clara Clarice, especial amiga. Em breve mostro se deu certo em casa. Colheres de pau e ração, criei um mix de alpiste painço e quirela de milho, chef de passarinho, eu já tenho.

Passarim
Tom Jobim

Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro partiu mas não pegou
Passarinho, me conta, então me diz:
Por que que eu também não fui feliz?
Me diz o que eu faço da paixão?
Que me devora o coração..
Que me devora o coração..
Que me maltrata o coração..
Que me maltrata o coração..





quarta-feira, fevereiro 1

Cabides




Essa vida volta e meia nos apresenta cada mistério. É tanto fato estranho que até Deus duvida. E olha que não estou me referindo a fantasmas, gnomos ou fadas, não. Observo fatos do cotidiano. O sobrenatural nosso de cada dia, acontecidos que se repetem bem debaixo de nossos narizes. Um desses grandes arcanos domésticos diz respeito aos cabides. Isso mesmo, cabides, esses de pendurar roupas.

Certa feita sugeri em um conto que, volta e meia, os inanimados ganham vida própria. Tive uma máquina de lavar roupas que era assim, nós a chamávamos carinhosamente de Daiane dos Santos, pois tinha complexo de ginasta, e até o duplo carpado twist esticado, especialidade de nossa querida atleta, ela, a máquina, aprendeu a dar.

Depois dela, passei a observar os objetos de casa com outros olhos e tenho a convicção de que, como nos desenhos, em alguma hora do dia ou da noite, longe de olhos, eles ganham vida e aprontam das suas.

Minha mais recente experiência diz respeitos aos tais cabides. Estes, como todos sabem, mesmo possuindo as mais variadas formas e serem compostos por materiais diversos têm, é claro, o mesmo objetivo e função. Lá em casa, além dessa finalidade são largamente usados para abrir janelas de banheiro, uma vez que alguns não foram agraciados com estatura muito elevada. Temos cabides de várias, digamos, castas e cada uma se comporta à sua maneira. Temos aqueles mais frágeis que, à primeira vista, quando são comprados, detêm aparência de robustos. Ledo engano, à primeira calça jeans mais pesada literalmente abrem o bico e a pega do guarda-roupa deixa de existir, desmontam como pipas rasgadas por vento forte bagunçando e amarrotando tudo.

Temos aqueles cujo plástico imita vidro ou cristal, são mestres em quebrar a haste do meio e, aí, passam a servir para dependurar camisas.

Quando morávamos na roça, um mestre oficial em marcenaria italiano, Seu Pedro Talarico, caprichosamente fez, a nosso pedido, vários cabides de madeira. Pequenas obras de arte, pois eram entalhados em peça única de madeira, sem emendas. O único defeito, se é que assim se pode chamar, eram os ganchos que colocamos, com o peso perdiam a rosca e despencavam. Na realidade dever-se-ia utilizar tiras de trapos para amarrá-los ao cabideiro, a ideia dos ganchos foi nossa. Até hoje guardamos essas raras e belas peças.
Os cabides passaram a fazer parte daqueles que têm vida própria.

Já notaram que, sempre que alguém precisa de cabides, eles desaparecem? Na hora de passar ou lavar roupa, sempre que você precisa não os encontra em número suficiente? E não adianta comprar mais não. Ao chegar em casa com dois ou três pacotes de cabides novos, temos a sensação de que nunca mais vamos ter que nos preocupar. Mas qual, uma semana depois para desespero nosso, onde por Deus se meteram esses monstrinhos? Sempre faltam e muitas peças de roupa ficam aguardando vaga, tal e qual restaurante em São Paulo ou estacionamento em zona azul.

Esse é um mistério que guardo para quando aposentar. Descobrir o destino, o rumo que esses caras tomam. Infelizmente, em nosso querido Brasil, o único tipo de cabide que não acaba, nem some, aliás, como ratos se multiplicam, são os nefastos cabides de emprego. Estes, para tristeza da nação, por mais que queiramos, não damos conta de fazê-los desaparecer. Não é incrível?






Publicado no Jornal Correio
Domingo, 05 de Fevereiro de 2012