segunda-feira, abril 25

Gatos




Gato é um bicho interessante. É que nem pequi, jiló ou dobradinha. Não tem meio termo, pois ou você gosta ou não quer nem vê-lo por perto. Bom, tem sim, já que existem pessoas como eu que conseguem admirar a beleza, a elegância e a independência felina. As variações de pelagens infinitas, as três cores das fêmeas. Se você não sabia, conto. Apenas as fêmeas possuem pelagem tricolor, herança ligada ao sexo em bom genetiquês.

E os olhos? Quanta beleza, profundidade e sensualidade. Não é à toa que mulher bonita é chamada de gata. Pode ser, por motivo outro, ligado ao fogo. Quem não ouviu ou usou a expressão “fogosa que nem gata no cio”?

A relação humanos/gatos é milenar. O bichano já foi adorado como um deus pelos egípcios. Aqui abro espaço para um pouco de cultura inútil, daquelas informações que você jamais vai usar na vida (mas vai que…): “Bastet, a deusa egípcia da fertilidade e do amor materno, era comumente representada por uma mulher com cabeça de gato”. Mas, aí, lá pela bandas da idade média os cristãos resolvem endemonizar o pobre bicho. Muita gente boa foi para a fogueira, taxada de bruxa, pelo simples fato de possuir um gato. Caraca, será que não tinham mais o que fazer não?

Viu só? Quem é que poderia viver sem essa informação? Agora que estamos todos salvos do poço escuro da ignorância, sinto-me mais confiante para continuar a vida. Em minha varanda, tem uma namoradeira secular, daquelas feitas sem prego e as emendas das tábuas preenchidas com cera de abelha. Na minha varanda, sobre a namoradeira, eu tenho um vasinho de cactos, presente de filho.

Pois não é que, de uns dias para cá, em minha varanda, sobre a namoradeira, toda manhã, meu vasinho começou a aparecer tombado? Pedrinhas brancas, que o adornam, espalhadas por todo canto. Seria o vento, pensei sem pensar. Que vento nada. Noite alta chego de manso. Lá, como dono do pedaço, todo esticado, quem encontro? Um lindo gato filhote, desmamado, mas filhote, preto como a mais negra das noites de lua nova e ameaçando chuva, sem estrelas e sem vaga-lumes. Seus olhos esverdeados brilhavam fixos em mim. Levantou-se manso, deu uma bela espreguiçada, desceu flutuando do banco e, em miado choro, veio em minha direção. Passou rente a minhas pernas, pedindo afago. Abaixei e acariciei por longo tempo sedoso pelo. Assim ficamos, no silêncio, em reconhecimento mútuo.

Gatos não são escolhidos, eles escolhem companhias, pois jamais serão de ninguém. Não me atrevo a dizer que serei seu dono, isso nunca. Agora, estamos em fase de namoro. Hoje cedo entrou casa adentro. Delicadamente, eu disse não. Ainda não é hora. E tem mais, quem vai cuidar quando eu viajar? Mas confesso que já está me agradando a ideia dela, é uma feminha, ser minha dona. Estou mesmo precisando de companhia e carinho, isso elas sabem dar. Vamos ver no que vai dar, se for para ser, será.

Bastet aqui citada, não originou “basquete” da NBB – esse papo de Novo Basquete Brasil, é triste. Nossa capacidade infinita de imitar. Tudo isso só para parecer com a NBA gringa.

Bom domingo, no mais Gerais, preguiça felina.







segunda-feira, abril 18

Intolerância




Minha filha trouxe de presente linda camiseta da Holanda. Malha de boa qualidade, preta, com uma estrela vermelha no peito. Sobre a estrela lia-se em letras brancas “Amsterdam”. Feliz da vida a vesti fui passear à toa como de costume.

Mania, vejo tantas histórias velejando entre gente, folhas e ruas que me custa guardar para um dia contar. Muitas dou conta de prender em meu caderninho roto de páginas soltas, agrupadas com clipes e fita durex. A maioria foge aos risos de minha memória falha.

E lá vou eu pensando na riqueza da vida, no prazer de ter olhos para enxergar e não apenas ver sem por tento. Sorria para mim mesmo. Do nada, começo a ouvir deboches agressivos, piadas de mal gosto, xingamentos mesmo. Não era comigo, pensei, mas era. Fui xingado, chamado de petralha e outros adjetivos que não vou nem citar, ninguém merece.

Pobres coitados, mal sabem o belo significado místico desta estrela para os cervejeiros da idade média. “A estrela vermelha vem dos tempos da Idade Média, onde os cervejeiros acreditavam que ela tinha um poder mágico. Cada ponta representa um elemento: terra, ar, fogo, água e um quinto elemento que acreditavam ser mágico até hoje é desconhecido.” (Fonte: site “Bar, Bebida e Propaganda”).

Foi nada não, tempo passou e numa pressa de sair agarrei outra camiseta, esta da “Bee” (sem jabá) onde estava estampado belo e colorido tucano. Em plena praça fui. Fui xingado, chamado de coxinha e outros adjetivos que também não vou nem citar, pois ninguém merece.

Pobres coitados, mal sabem o belo significado místico desta bela ave: “Também conhecido como tucano-toco, o tucanuçu é o maior dos tucanos, vivendo em todo o Brasil Central e em partes da Amazônia. No Cerrado e na Mata Atlântica, pode-se encontrar a espécie em maior número, em rápidas visitas a pomares e árvores com frutos.”

Os tucanos são, com as araras e papagaios, um dos símbolos mais marcantes das aves do continente sul-americano. Tomaram-me a estrela e o tucano. Com que direito? Vivemos um período de irracionalidade absurda, tanto ódio onde poderia reinar paz, tanto sectarismo onde poderia reinar tolerância. Que país é esse, Legião Urbana? Silêncio, todos da formação original da banda já se foram sem nos dar resposta.

Já que o rancor e a raiva não levam a nada, fecho com duas historinhas. Uma encontrei em rede social e a outra foi escrita por um especial amigo, cujo nome preservo. Conto depois se me autorizar. Quanta bobagem dos fanáticos/sectários de todos os lados, formas e tamanho!

As historinhas: 

Não entendi nada! Ontem fui fazer um lanche de final de tarde e pedi um sanduíche de mortadela (adoro!), quando fui pagar me deram trinta “real”, uma camisa da CUT, um boné do MST e me colocaram num ônibus, que me deixou na Praça da Estação. Estou voltando pra padaria pegar meu carro. Que saco!”

A outra: 

Que faaase!! Gozado, outro dia, pedi uma coxinha. Recebi uma camiseta amarela, com uma foto do Bolsonaro, um poodle cor de rosa e um cartaz pedindo a volta da Hebe Camargo. Pode?

Só falta agora um perseguir os canhotos e outros, os destros.








Jornal Correio 17 de Abril 2017



Caderno Revista, página 25


http://digital.mflip.com.br/pub/correiodeuberlandia/index.jsp?serviceCode=login&numero=23999&edicao=3575#page/24&ipg=136438


segunda-feira, abril 11

Celular






Saudade do tempo em que celular era apenas um celular. Servia exatamente para o que foi criado, ligar e receber chamadas. Eram imensos, pesados e horrorosos. Algumas pessoas exibidas só andavam com aquele que mais parecia rádio de pilha, dependurado na cintura como se fosse uma arma. As chamadas eram caríssimas e viam-se esnobes da mesa de bar ligar para o balcão, só para pedir mais uma cerveja. Nem precisa dizer que a conta de celular ficava três, quatro, até cinco vezes mais cara do que a despesa do boteco, com boas cervejas e iscas de filé acebolado consumidas.

A velocidade da tecnologia e a miniaturização transformaram os monstrengos em Liliputianas caixinhas falantes. Não, não é palavrão. Caso não conheça, é termo criado no belo livro “Viagens de Gulliver”, do escritor inglês Jonathan Swift (1667-1745), que não é marca de salsicha.

Pequenos, mas ainda telefones e nada de internet, redes sociais e tais. Engano. Alguns mais modernosos já vinham com o jogo da cobrinha, o Snake. Havia o lance de empilhar caixotes, o Stack Attack, o Space Impact. Neste, era você contra todos os invasores do espaço. Para completar, o medo de extraterrestres. Havia o Space Invaders onde o lance era derrubar naves das intergalácticas inimigas.

Apareceu o pré-pago que democratizou o uso do celular. Desconheço atualmente aquele que não tem pelo menos um. Mas se tem um só, pode ter certeza de que tem vários chips. No caminho inverso da liliputização, os celulares atualmente estão cada vez maiores. É a fase “Brobdingnag” ou agigantamento, da segunda viagem de Swift. Fazem coisas que até Deus duvida. Comando de voz, — Ô Celú, me liga aí para fulano de tal. Pimba!

— Já está na linha mestre – falta só responder.

Redes viciantes que acabaram com conversas e rodas de amigos. Idiotizam mentes brilhantes. Câmeras de não sei quantos megapixels, aplicativos e jogos para todos os gostos. Conexões internet de altíssima velocidade, nomes loucos/estranhos que passaram a fazer parte de nosso vocabulário cotidiano: wi-fi, bluetooth, Instagram, download, Browser, Inbox, Jailbreak, Java e por aí afora. Vou poupá-los das pronúncias que ouço por aí quando tentam balbuciar aos novos vocábulos.

Temos hoje celulares que mais parecem tela de televisão. Aliás, para tal servem também. Quanto maior o aparelho, maior o status, pensam alguns. Mal sabem que, ao colocar em exibição sobre a mesa aquele objeto de desejo de tantos, olhos maldosos podem estar preparando furto ou roubo. O mais interessante é que, com tanto recurso e tamanha tecnologia, as pessoas esquecem-se de utilizá-lo para ligar e receber chamadas.

“Na última viagem, Gulliver encontrou os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía muita inteligência, que representavam os ideais iluministas da verdade e da razão. Os Houyhnhm temiam que alguém dos yahoos (uma raça imperfeita de um tipo de “humanos”) movidas por instintos primitivos, se tornasse culto, satirizando a raça humana. Gulliver vê a humanidade como yahoos e toma nojo do ser humano.”

Prestaram atenção no nome da espécie tão temida pelos inteligentes cavalos. Só para lembrar, “Viagens de Guliver” foi lançado em 1726. Presságio?








Jornal Correio em 10 de Abril 2016







terça-feira, abril 5

Matemática


Coçava a cabeça em um buscar solução. Nunca tinha passado por perreio assim. Sabia sem mágoa que não tinha estudo algum, a vida não permitiu. Muito novo entrou na lida, ajudar no sítio. Seis filhas, só ele filho homem. Tinha duas obrigações, ajudar pai na roça para garantir sustento e vigiar as irmãs para que não caíssem em garras de moços/lobos, famintos por tenra carne. Quase conseguiu. Mesmo depois da volta do pai e da mãe para as estrelas mantinha vigília cerrada. Digo quase, pois conseguiu levar quatro das moças ao altar que, contrariadas, casaram sem amor.

Acharam por bem seguir sina. Outra, de tanta tristeza, por tanto desamor sofrer, escolheu convento, virou freira. A mais triste das religiosas preferiu clausura. Contam que chorava dia e noite. Eterno desidratar só podia levar ao fim. Morreu afogada em lágrimas. Santificaram-na. Contam até milagres da freira-que-chorava-sem-parar.

Tinha romaria e fila para entrar no quartinho do convento onde, contam e repito o dito, não vi, brotou por todos os lados, do chão ao teto, milhares de risonhas margaridas. Alimentadas pelo sal das lágrimas que carcomeu todo o lugar de pedra, inclusive o teto. O estranhamento maior era que as margaridas sorridentes nunca murchavam, não sentiam nem a falta de sol e água. A caçula fugiu para sempre. Ninguém saberia mais de seu paradeiro. Feliz, ganhou estrada.

Por conta do tal perreio foi buscar recurso. Procura o compadre na venda, em um domingo de pouca coisa. O dia era para descansar, jogar dominó, beber uma cachacinha de alambique, dos antigos, pedra e cobre. Da quentura até refrescar era um deleite só.
Sabia o compadre. Bom de notícias, de escrita e principalmente de contas, aprendeu, estudou muito. Fez até a quarta série, mas como só tinha até ai na escola da fazenda, seu pai o obrigou a fazer cinco vezes. Aprendeu com jeito e poderia até ser professor. Pediu a ele socorro.

— Compadre você é bom de matemática, acode fazer conta de venda de frango. Você sabe, eu crio a meia com o compadre Armiro tem tempão. Sempre dava número seguro de fácil trato. Era só ir apartando na carroça mesmo, no jacá. Um lá prá dentro, outro pra fora. Nunca deu de errar, nem de sobrar. Pois não é que dessa vez sobrou uma franga grande, do pescoço pelado? Canela seca das boas, até cotoco de espora a danada tem. Peito carnudo e firme. Nem ia vender, pois ia ficar para tirar raça junto com meu galo índio ou passar no papo, em belo refogado.

Pois olhe, sobrou essa belezura, assim no acaso, sem tramóia, nem ajeito. Foi o acontecer sozinho, acaso.
Tirei todas pra trás e tornei voltar. Sempre sobrando uma. Ai me deu de ideia contar as galinhas. Pronto, taí o mandeiro do erro. Tocou cinquenta e um no todo. Como é divido isso na ponta do lápis, sei fazer não senhor.
O compadre que, àquela altura da manhã, já havia derrubado mais de meia garrafa da cana e tantas de cervejas, nem pestanejou;
— Uai compadre essa é das mais fáceis. Pensa comigo: cinquenta e um divido por dois, só pode dar meio litro prá cada um, senta ai, toma um gole ara!






Jornal Correio em 27/03/ 2016



https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhS0NXQzVvU3pNdmM/view?usp=sharing

Bicicleta



A vila, já contei, tinha poucas almas. Era um lugar tranquilo e bom de se morar. Longe de tudo é fato, sem recurso. No aperto, tinha que andar muito, isso assustava um pouco quem não era de lá. Acostumamos rápido. O dia da chegada está perpetuado em lembranças.

O ônibus dirigido pelo Seo Zé Toco corcoveou por mais de 90 km em terra massapé, bem diferente do ácrico chão de cá. Na seca, poeira só, nas águas, atoleiro sem fim. Asfalto, um pedacinho à toa depois do Monte Alto, mas não ajudava muito, o maior encravador ficava em subida bem antes do chão preto. Naquela época éramos esquecidos. Quantas vezes ficamos ali esperando trator para arrastar o carro.
A cidadezinha foi esvaziada com o fechamento das olarias. Muita história.

O segundo grande êxodo se deu rumo ao sonho Rondônia. Diziam maravilhas de lá. Terras boas e baratas, quando não, dadas pelo governo. Muitos venderam tudo e para lá partiram. Se deu certo sei não. O ônibus nos deixou em frente a nossa primeira morada, Pensão de Dona Mercides. Quando arrancou levantou tamanha nuvem de poeira vermelha que, no paradão de um meio dia, desceu mansa com o próprio peso. Rua foi aos poucos aparecendo.

Mesmo sem asfalto o chão brilhava em forno de carvoaria, trêmulo, desfigurava adiante. Alguns preguiçosos cães se encolhiam em sombra de marquise. Poucas árvores. Já nasciam ideias, fresquinhas de plantio que não se realizou. Depois conto motivos.

Assim a vida seguiu caminho. Aulas na escola, logo boas amizades, povo bom daquele tanto, difícil de encontrar. Fomos acostumando, mas as ideias para a minha Macondo eram inúmeras, curiosamente era a criançada que encampava tamanhos sonhos, realizamos muitos juntos.

Aos domingos, a vila se transformava, era uma festa. Gente chegava dos sítios para fazer compras, ver parentes e, claro, assistir filme. Tinha sim uma sala de cinema que funcionava nos fundos de um bar. Jogo de futebol com torcida e movimento, às vezes, tinha.

Um dos bares era de Jorginho japonês. Nipônico por nome Jorginho era no mínimo diferente. Ali se bebia, jogava-se conversa e dominó. Ficava apinhado naqueles domingos. Pois conto. Amanheceu segunda e uma bicicleta ficou sozinha, abandonada como pedal encostado no meio fio, bem em frente ao bar do Jorginho. Bicicleta nova, bem enfeitada. Fitas coloridas saindo das manoplas dançavam ao vento seco, farol a dínamo, selin com capa onde se via um reluzente escudo do Flamengo e no paralama dianteiro um imponente emblema dourado da Raleigh, com suas asas em posição de vento. Entre os raios, macarrões coloridos.

Assim, como monumento, a bicicleta lá ficou a segunda, amanheceu terça, quarta e quinta. Na sexta-feira, um pouco incomodada com a bela bicicleta na rua o Jorginho me veio falar: — Professor, sabe aquela bicicleta que está na porta do bar desde domingo passado? Respondi com aceno, concentrado em abrir entrada em coité para fazer ninho.

— Pois é estou meio preocupado com ela.

Perguntei o motivo.

— Uai, professor, vai que alguém rouba a bichinha como que vai ser? Arqueei sobrancelha em pensar.
Conhece lugar melhor de se morar?







Jornal Correio em 3 de abril 2016