segunda-feira, agosto 26

Dois pesos duas medidas




Simplesmente andar pela cidade, adoro e sempre faço a pé. Porém, tive que usar o carro, pois havia cantos distantes e opostos a percorrer. Confesso, o dia foi um sufoco enfrentando o trânsito maluco. A falta de educação, agressividade e desobediência à simples regras, como setas, por exemplo, me lembraram um blindado pelas ruas de uma Bagdá arruinada por guerra. O parar em fila dupla é martírio. Tente sair de trás do folgado enraizado à sua frente para ver onde vai parar!

Ninguém, ou quase ninguém, para e com gesto educado lhe permite sair da armadilha. Fiscalização zero. E os tais que colam na traseira de seu carro? Podemos vê-los pelo retrovisor, identificando apenas um capô a bater queixo em fúria como se fosse morder a lataria. As caminhonetes são mestres nisso. Gente urbana com carro de trabalho rural. Ostentação pura. Carros que foram feitos para as estradas de terra passam vida sem nunca ver poeira de verdade.



Sejamos justos, os pedestres não ajudam muito. Desconhecem a tal faixa a eles reservada para passarem de uma calçada a outra em segurança, a despeito de motoristas que quase não param para quem ousa atravessar em sua frente e a pé! Quanta ousadia! E as motos? Para estas, um observar especial. Costuram entre os carros, ultrapassam pela direita, aceleram o que podem e se aglomeram como enxame à frente de todos em sinais fechados. No amarelo, alheios, partem em nervosa revoada por ruas que já não comportam tamanho transitar de máquinas e gente. Saí de casa com pressão 11/7, no meio da manhã 13/9 e na volta do dia 14/9. Claro que são estimativas criadas por minha cabeça confusa diante de tanto desatino. Ou você acha que ando com um esfigmomanômetro no carro? Se bem que hoje em dia temos relógios de pulso que podem fazer o papel do MAPA. Não, não é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, hoje comandado por ninguém menos do que a líder da Bancada Ruralista. Pode isso Diretor? Pode tudo hoje em dia. Isso não é assunto para agora, pois não quero ficar mais estressado outra vez. O MAPA ao qual me refiro é Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial e que, em meu humilde entender, de ambulatorial não tem nada. Você sai dia adentro com aquele trem pendurado no braço e caixinha na cinta que, de tantos em tantos minutos, te faz lembrar que tem coração.

E por falar em estresse, tecnicamente o tal, de acordo com o IPCS, Instituto de Psicologia e Controle do Stress Marilda E. Novaes Lipp, “é uma reação do organismo que ocorre quando ele precisa lidar com situações que exijam um grande esforço emocional para serem superadas. Quanto mais a situação durar ou, quanto mais grave ela for, mais estressada a pessoa pode ficar.” Ou mais claramente, “o estresse é fundamental para nossa existência. Situações tensas desencadeiam uma reação imediata do corpo, que libera mais adrenalina, hormônio que acelera o coração, e cortisol, substância que eleva a pressão e aumenta o aporte de energia aos músculos.”

Mesmo não estando na selva a fugir de predadores. Ou estamos? Meu amigo, o que tem de aperto por aqui mesmo, haja adrenalina, vem de balde. No dia seguinte, escaldado, deixei o carro em casa. Fui de ônibus até ao terminal central e de lá bati perna para acabar de resolver os por fazer. Pendengas poucas, mas que tomam tempo.

Como nossa cidade pode ser linda vista da rua e não da janela de um carro! As pessoas devolvem sorrisos e bons-dias. Uma ou outra baixa os olhos, mas é exceção. Sentei na calçada de esquina movimentada a observar casal de malabares exercendo seu belo e secular ofício. Depois de um tempo sentaram-se ao meu lado e conversamos muito. Contaram-me histórias de suas aventuras Brasil afora, dos apertos e alegrias de serem mambembes sem destino certo. Fiquei feliz perto de tanta liberdade. Felicidade do outro é um bálsamo para a alma. Sem essa de “inveja boa”. Se for inveja carrega ressentimento. Senti felicidade e leveza.

Findas as tarefas, diminui o passo. Vi-me em avenida onde um maravilhoso desfile de noivas se fazia. Noivas sem pares, em um alegre bailar com vento fresco e seco de um agosto em fim de manhã. O céu, pano de fundo para tanta beleza, tornava o branco ainda mais belo e luminoso. Noivas em fileira. O tapete, o começo do fim da linda florada.






Diário de Uberlânda  25 de agosto de 2019

quarta-feira, agosto 14

Sonhos




A escuridão abriu com força minha porta da sala. Não que fosse violenta, agressiva, intimidatória. Nada disto. Apenas estabanada em seu manifestar, talvez preocupada em saber que logo teria que dividir território com as estrelas e uma imensa lua cheia que, no camarim, se enfeitava para subir ao palco. Arrastou-se lenta pelos ladrilhos brancos do piso. Subiu paredes. Mansa, encostou-se nos rodapés. Ali ficou parada como se a espreitar terreno. Seguiu marcha parede acima. Sem cerimônia cobriu com seu negrume meu pálido Sclair, meu Viviaine Santos tão gentil. Os anjinhos barrocos esculpidos à perfeição de Antônio Francisco Lisboa, sempre olhar perdido, enfim se entreolharam, bochechas rosadas em um quase sorrir.

Seguiram de modo simultâneo sobre o abstrato de Nando Fiuza, espalharam sombras pelas vielas e telhados da bela aquarela de Jorge dos Anjos. Ali engoliram obra de Ana Abdalla, um lindo galo colorido da roça. Pensei ouvi-lo cantar a chegada da noite.

As sombras tinham padrão a seguir. Na parede oposta esconderam o lindo cerrado desnudo, também de Ana. Anoiteceu escuridão. Finalizou seu entrar em fotografia perfeita de cerejeira, parque de Washington DC, perpetuada pelo olhar de Eugênia Rodrigues. Sem saber, a sombra era abençoada por São Francisco de Helvio Lima e abraçada com amor por bela escultura de Adélia, sua esposa, ambas obras regalos do Mestre Queiroz, amigo especial, apreciador contumaz da boa arte.

Só percebi realmente o que estava acontecendo quando o espectro da paz, em fim de dia, pousou levemente as mãos em meus ombros. Levantei o olhar com certo cansaço. Princesa, a gata, levantou cabeça e orelhas em atenção virando-se para mim com seus assustados olhos verdes.

Fonte de luz agora apenas o brilho do computador. Nova tentativa de leitura digital. Dos corredores infinitos em impulsos eletrônicos da Biblioteca Nacional, garimpei um velho conhecido, Machado de Assis. A mão e a luva:

“- Mas que pretendes fazer agora?

- Morrer.
- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco (…). O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.”

As vistas doem, sinto tanta falta dos livros, do papel…

A escuridão, fora o monitor, dominava tudo. A ouvi subindo as escadas sem cerimônia em busca de meus segredos mais íntimos. Deixa, pensei. A noite é companheira discreta, não alardeia, não grita. Os sons, estes ainda abafados pelo frenético e último centrifugar de máquina de lavar, nem se fazia notar mais. Acostuma-se com quase tudo.

A “Mão” me deu um pensar. Queria eu escrever uma carta a todos os amores que tive em minha vida. Lembranças que teimam em aflorar de um nada. Sinapses inesperadas atiram a corda com balde no mais profundo dos poços da memória e, devagar, vem trazendo pesado à tona lembranças carcomidas pelo tempo.

Amores traídos, amores abandonados, amores perdidos por maltrato. Algum não soube cuidar. Péssimo jardineiro fui muitas vezes. A outros, zelo em quantia sobrante sufocou e matou. A vontade do escrever seria o contar que tudo se foi sem amargura, agora sem dor nem saudade. Talvez um pedido de desculpas pelo pouco ou pelo demais.

Hoje vivo a calma. Como Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, tenho agora minha Marilia para todo o sempre, um amor resgatado, bordado por décadas em alvas almas de pura paixão separado por tropeços, reencontrado por obra do destino (existe destino?). Tudo foi aprendizado.

Ser jovem há muito tempo tem suas vantagens, acabam-se as mentiras, as lembranças magoadas. Tudo vira um vazio recheado que em momentos de ficar só teimam em aparecer mas não trazem aflições, são apenas lembranças de um longe, talvez sonhar.

“- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...
- Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar.”

Ah, Machado! A murcha flor em suas Mãos tão significativa. Morre-se disso não! A lua rompe esvoaçante de seu nicho, séquito de estrelas serelepes a seguem e se posicionam no palco celestial. Braços, pezinhos luz em primeira posiçao bailarina. Um leve endireitar de postura, um balançar suave de cabeça. Silêncio.

Faz-se hora. O breu se encolhe um pouco aborrecido. Silêncio na platéia. As “pancadas de Molière” se fazem ouvir. E eu? Vou correr a colocar a roupa no varal. “Deve-se entrar na sala”, “Ocupe seu lugar”, “O espetáculo vai começar”


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Diário de Uberlândia ( Dia dos Pais) 11 de agosto de 2019