segunda-feira, dezembro 31

Choca barrada

Tem aos montes em casa, seu canto parece uma risada. Aqui tratamos por carijózinho, além de Choca-borrada, também é conhecida por maria-cocá e gata-véia. Nome científico é Thamnophilus doliatus




Fêmea

Macho



Fonte: Aves no quintal

quarta-feira, dezembro 26

Procissão



Longa e silenciosa procissão. Em silêncio oratório seguem com seus coloridos estandartes escarlates, outros tantos de vivo amarelo marcavam cordão a um canto da imensa fila. Alguns empunhavam o que parecia ser bastões. A formação militar espantava. Organizados e objetivos abriam caminho pelo asfalto quente como se este não os incomodasse em nada, tamanha a concentração e objetividade.

À distância segura acompanhei penitente aquele desfile. Não porque me sentisse ameaçado ou coisa parecida, pelo menos de imediato mal fazer não parecia estar nos planos deles. Não queria interferir e menos ainda ser responsável por algum desacerto naquele penitente caminhar. Olhar me bastava. A rigidez de comportamento assustava. Não havia perdão, misericórdia para com aquele, qualquer lá fosse o motivo; exaustão, distraimento, tropeçasse ou deixassem cair por terra seu estandarte. Passavam por cima, pisoteavam. Parecia que o indivíduo isolado nada representava, o todo sim era importante, o serpenteado movimento daquelas imensas filas, ao botar mais atenção notava-se nitidamente que eram duas, uma ladeando a outra, mas em movimentos militarmente sincronizados, como se ligação visceral entre ambas existisse. Aquele deslocamento sincrônico era mágico e vivo por inteiro.

Longa e dupla fila virava esquinas, imensos quarteirões, gigantesca multidão. Nem o menor barulho se fazia ouvir. O pisar, apesar de ligeiro, era leve e calculado, objetivo não era chamar atenção. Acostumada a vista à observação, notava-se ao largo, em vários pontos outros empunhando imensas bandeiras como velas de jangadas ao sabor de um mar pouco amigável. O vento as fustigava sem piedade e não raro as fazia tombar. Rápidas, como que receosas de repreenda, aprumavam e deslizantes seguiam caminho.

Lembrou cortejo preparando colorido tapete como os de Ouro Preto e santa sexta-feira. Cantarolei baixinho Milton: “Velejar, velejei/No mar do Senhor/Lá eu vi a fé e a paixão/Lá eu vi a agonia da barca dos homens”…

Quietude e prece.

A falta de tolerância com os tropeços alheios tirou a fé de questão. Troupe guerreira em busca de novas conquistas – assim as vi por minutos.

O avanço era descomunal, o amarelo e vermelho pintavam o asfalto. Aquarela em permanente movimento. Acácias e flamboyant aos poucos esquartejados seguiam para preparo de banquete. Haveria festa e dança para os vencedores?

A frase “ou o Brasil acaba com a Saúva ou a Saúva acaba com o Brasil” demonstrou mais uma vez ser descabida. Muito antes das cidades de ouro dos nossos índios, dos estes sim invasores portugueses; muito antes das capitanias hereditárias e de gritos de uma independência que nunca chega que elas aqui estão. Cumprem sim dever cívico de manter o que resta de nossas terras férteis e adubadas. Prejuízo? Não, chamo de desforra.

Se pragas são, então aqui estão duas a conviver em harmônica inimizade. Homem e saúva. A saúva não acabou com o Brasil, nós humanos, todos os dias, aos poucos, mas metodicamente, nos esforçamos ao máximo para cumprir o papel creditado às pequenas formigas. E, se o objetivo é esse, fiquem (in)tranquilos . Estamos conseguindo. Vorazes gente-saúva, insensíveis a pisotear sem piedade qualquer que cruzar nosso caminho. Egoísmo.

Sem acácias, flamboyant ou cores. Não haverá festa de fartura coletiva.

Solidão.






Publicado no Jornal Correio em 26/12/2012





domingo, dezembro 2

Progresso?


Eu aqui no quintal em meio a um silêncio de feriado. O sossego aqui é normal, pois nossa rua liga nada a lugar nenhum e por ela só passa quem mora, visita ou está perdido, mas em dias de semana sempre tem uma conversa ao longe, uma famigerada makita ou betoneira fazendo algum conserto, já contei a implicância que tenho desses barulhos. Me trazem péssimas lembranças. Leio aqui no CORREIO que haverá mudança no zoneamento do uso e ocupação do solo pra os nossos lados. 

Leio também que alguns moradores estão felicíssimos com as modificações, pois tais alterações “valorizarão” seus imóveis. Quanta pobreza de espírito. Trocam a paz de seus lares por alguns dinares. O bom é ter carro novo financiado em 60 meses, morar no fim do mundo e depois reclamar em programas de televisão e rádio que pautam tragédias que os serviços públicos ainda não chegaram à rua de terra onde conseguiu comprar casa. Reivindicam unidade de saúde, asfalto para ontem, escola, creche, posto policial, pois o tráfego de drogas manda e desmanda na região. E a culpa será de quem? Claro, do prefeito em exercício, obviamente.

E aqueles mesmos vereadores que decretaram as mudanças nos bairros de origem dessa gente aparecerão como moscas em carniça para tirar algum proveito político da miséria alheia, lançar sobre aqueles que diretamente traçaram o destino seus cabrestos e prometer mundos e fundos em troca de votos. E de novo, conto do vigário.

Descrença com os políticos que, a seu bel-prazer, mudam leis sem consultar os principais envolvidos. E eu que pensei que tudo estava restrito a uma lei estúpida que mudava as características apenas da rua da Paz ali na Morada da Colina.

Logo muitos não terão mais vista para a cidade, perderão o sol do amanhecer e sua suave brisa.
Os problemas não tardarão a aparecer. Imagine você uma face de quarteirão projetada para, por exemplo, dez casas. As redes de esgoto, a largura das ruas, dos passeios é dimensionada para aquele número de imóveis.

Rufem os tambores, soltem fogos de artifícios. Do nada, como passe de mágica, surgem gigantes edifícios de dezenas de andares, condomínios verticais aparecem como que plantados como os feijões mágicos de João e alcançam as nuvens. É o tal progresso a qualquer preço. As ruas não comportarão mais tantos carros e estacionar será um problema e, para piorar, é bom lembrar que cada módulo residencial terá em sua maioria mais de um carro. As ruas ficarão obstruídas e o movimento, o barulho transformarão a vida de quem por ali nasceu, viveu quando ainda existia quietação em um inferno. Pardais e pombas europeias dominarão os beirais. Não haverá mais canto de passarinho.

Sustentabilidade e qualidade de vida? Papo de bicho-grilo. Outro dia recomendaram a um especial amigo que, se não estava satisfeito, fosse morar em um condomínio fechado. Desaforo incomentável. Na verdade, não era nada disso que eu queria falar quando comecei no quintal a ouvir o silêncio profundamente reconfortante de um feriado. Queria mesmo é compartilhar o canto de mil passarinhos, o cheiro de churrasco que aqui me chega e a delicada voz de Billie Hollyday no vinil.

Mas não consigo deixar de imaginar a cena dantesca que poderá ocorrer se, em algum momento naquele cenário descrito, todos resolverem dar descarga ao mesmo tempo. Canos de 50 para vazão de 200. Vai dar caca.
William H. Stutz
Veterinário Sanitarista
whstutz@gmail.com







Publicado no Jornal Correio em 1º de dezembro 2012 em

Clique abaixo para a publicação no jornal











 

terça-feira, novembro 6

Proscênio

Foto: Elidiane Oliveira
@elidiane_oliveira





Sol vermelho envolto em pó buscava pouso em liso horizonte
Sombras imponentemente tortas de Jatobás, Mutambas e Saputás emolduram o fim da tarde de um agosto
Bandos de araras, emas, barulhento voar/tropel busca pouso.
Céu em fogo derrama último clarão bem em um lá longe.

Um silêncio curto se faz ouvir. O cair da noite assim o exige
Aos poucos, em meio a um ver-não-ver onde o que existe não está no lugar
e sonhos perambulam fora da alma, a nitidez do breu.
Escura noite se abre em palco.

Vespertina D'alva em brilho farol sem mar, mostra seu fulgor como a chamar milhares de estrelas e constelações.
Céu adoece/enfeita em luz estrela.
Urutau, disfarçado de galho, sacode penas e voa raso
Em sinfonia, bichos. Cerrado fervilha em vida e sons.

Devagar, imensa lua aponta imperiosa, solista, sobrepondo corpo de baile estelar
Em outro extremo, luzes brotam do nada, uma a uma, formam imenso avião em fulgor único.
Curvas flutuam em jogos de cores e formatos
Cidade única, regozijo, de gentes e espaços, renasce a cada anoitecer.

Sinos espanhóis ao último bronze repique de Pilarica, anunciam riso e alegre alvoroço;
Seco ar regado a encontros, sacode o pó da tarde em noite intensa, aventura porvir.
Lua e céu em espelho Paranoá, se juntam coniventes.
Há perfume de jasmim e manacá-de-cheiro no ar.



segunda-feira, novembro 5

Pé d'água


Clica na imagem para sentir a ferocidade



Ameaçadora, se mostrou no horizonte. Como horda bárbara prestes a invadir pequena aldeia. Rodeou, se mostrou feroz.
Roncos/rugidos/relâmpagos, lanças de luz e estrondos.
Nem muito vento. Apresento-se mansa e calma.
Abençoada chuva a apagar calor e seca.
A vida agradece tamanho presente
 

sábado, novembro 3

Morte





Assunto delicado, poucos gostam de passar olhos sobre o tema. Medo do certo, do que a todos espera? Ter medo da morte, ponto de vista meu, é ter medo mesmo é da vida.

Raro o poeta ou escritor que deixou de falar, em muitos casos apaixonadamente, sobre ela e seus desígnios. Fernando Pessoa nos encanta em “Cancioneiro”: “A Morte Chega Cedo A morte chega cedo, /Pois breve é toda vida /O instante é o arremedo /De uma coisa perdida”.

Vinícius de Moraes em “Poética”: “A oeste a morte/ Contra quem vivo/Do sul cativo/O este é meu norte”. E assim vai. Shakespeare, Kant, Neruda, Guimarães Rosa. Todos eles deixaram tributos ou menções a ela, a senhora do tempo, a morte. Muito me marcou no cinema “O Sétimo Selo” do diretor sueco Ingmar Bergman, onde um cavaleiro ao retornar das Cruzadas, se depara com a morte, mas curioso e descrente propõe a ela uma partida de xadrez que definirá sua partida ou não, mas a busca mesmo é pelo significado da vida. Um épico.


Outro que muito me chamou atenção foi “Meet Joe Black”, com os geniais Anthony Hopkins e Brad Pitt o título em português me saiu como “Encontro Marcado”. Uma pausa. Nunca entendi a lógica ou a falta total dela, na tradução de títulos de filmes no Brasil. Imaginação zero, beira ao ridículo. Quer um exemplo do absurdo? Se você estuda inglês deve imaginar que para dizer “Os brutos também amam” basta um “Shane”. Como é simples a língua de Allan Poe e Mark Twain! Só vendo. Títulos não deviam ser travestidos apenas para ganhar público, deviam criar uma lei contra tal prática.

O que imagino e ouço é que o esqueleto envolto em mortalha, armado de foice apavora muita gente.

Ao longo da vida, ufa enfim dela falamos, perdi muitos para aquela magra senhora. Minha mãe se foi há poucas semanas, por favor não compadeçam, ela viveu muito e como sempre quis, voou feliz, podem acreditar. Grandes amigos, e não foram poucos partiram cedo demais, deixaram saudades doídas. Esta precocidade é que me incomoda. Tanto ainda para dar, para ver, para compartilhar e, por algum mistério pegam o rumo antes da hora.

Mas existe outro tipo de morte e este é o pior de todos, é a morte em vida. Esta é a mais terrível delas. E ela se apresenta de várias formas.


Ultimamente tenho acompanhado com assombro uma de suas piores formas. A falta de caráter, a covardia, o egoísmo estão no mesmo pacote do fim de tudo.

Com a mudança de governo municipal, muitos que se diziam fiéis até a morte aos que saem, assim do nada pularam como cabritos montanheses para o outro lado e do nada cantam odes e louvores aos vencedores, e atacam e desprezam aqueles aos quais juravam fidelidade. Obviamente não são bons profissionais, não dominam o conhecimento mínimo para cumprirem as missões que a eles foram confiadas e, imagino, só se sustentaram em seus cargos vampirescamente sugando o conhecimento alheio, pela bajulação e se aproveitando das benesses do poder. Para estes qualquer poder serve, nômadas sempre sequiosos por novas pastagens... no popular? Traíras mesmo. Hoje empoleiram aqui, amanhã no quintal vizinho. Onde acham que tem lucro, lá estão como sanguessugas.
Infelizmente não são homens livres, e muito menos dados aos bons costumes

De longe observo, espero envergonhado por tais pessoas a missa de sétimo dia.

É por essas e outras que me apego à vida mas, sem medo, susto e de cabeça erguida repito Milton Nascimento :“Nasci com minha morte e dela não abro mão”, com honra e firmeza. Procuro a cada segundo de minha existência o justo e, trabalho minha alma em busca da inatingível perfeição.



Publicado no Jornal Correio em 3 /11/2012



segunda-feira, outubro 29

Despertador




Tem coisa mais aborrecida do que toque de despertador? Antigamente, usavam-se aqueles relógios imensos à corda, com duas conchas de inox no topo, que faziam um escândalo de acordar quarteirão, pior do que alarme de carro ou casa disparado. Já repararam que vivemos a época inconsciente de “Pedro e o Lobo”? Não aquele conto de Sergei Prokofiev que apresenta às crianças os sons dos instrumentos de uma orquestra, mas aquele Pedro, pastor de ovelhas ou cabras que, entediado, gritava que havia lobo atacando rebanho e era mentira até que um dia aconteceu. Bom, acredito que todo mundo que tem mais de 12 anos conhece a história.

É tanto alarme de casa e carro que dispara sem motivo algum, que ninguém mais nem acode. Deixa-se tocar indefinidamente. Isso quando ainda alguém não reclama:
— Ninguém vai desligar esse troço!
Mas os despertadores de relógios à corda tinham uma, ou melhor, duas vantagens. A primeira, no meu caso, era que o tic-tac se fazia tão alto que nem dormir conseguia, assim, e aí vai a segunda “vantagem”, quando dava o primeiro trimmm da manhã já estava em alerta para mal- humorado dar-lhe uma bifa no botão de desligar.

Depois vieram os relógios elétricos com seus números que viravam como folhas de livro, precursores dos digitais. Por mais incrível que possa parecer emitiam estranho e quase imperceptível som que só os mais atentos o percebiam, meu caso. Tenho ouvido de tísico, sensibilidade auditiva totalmente fora do normal, canina. Sufoco. Portanto, se for sussurrar segredo perto de mim cuidado, posso estar, sem querer, na escuta. Em nossa primeira casa, uma meia-água alugada no Martins, perto do melhor “semolina de tudo” que já provei, servido com capricho no Bar do Bené, a acuidade exagerada era um estorvo. Tínhamos que desligar a geladeira à noite, senão, dormir que é bom nem por decreto. Já morou perto de transformador de luz em poste ou linha de transmissão em alta tensão, aquelas torres horrorosas que enfeiam tudo por onde passam? Nem queiram. Ambos emitem um zumbido que, acredito, podem levar à loucura bichos e gente como eu.

Agora, chegou a vez dos celulares despertadores, com sua infinidade de toques. Com estes me dei bem, em termos, mas absolutamente silenciosos são. Pode-se, inclusive, simplesmente desligá-los que, na hora desejada, tocarão. Quer acordar de mansinho com Adagietto de Mahler? Tem o toque. Quer sertanejo universitário? Este eu não recomendo, pois o resto dia seu humor ficará que nem a música, péssimo, mas está lá nas opções. Quer um rock, house music, trance, dubstep, mixtape, remix, bootlog. Do baião a música gospel ou sacra?

Não falta nada nos modernos I-qualquer coisa. Minto, falta bom senso. Por que cargas d’água criaram a tal da “Soneca” depois de te despertar? Qual o sentido do recurso?
Quando acordamos filhos para escola, o famoso “mais cinco minutos” é praxe.
Já com o celular, não. Passa-se a primeira soneca, depois vem outra, outra e, quando se dá conta, perdeu-se a hora, a portaria do colégio fechou, o ônibus passou.

Depois de um mês ou dois, o toque escolhido torna-se tão insuportável, mas tão chato, que, se por mal dos pecados você ouvir a tal música em outro lugar, tipo rádio ou restaurante, você é capaz de ter uma convulsão, brigar com a namorada ou bater a cabeça na parede. Será que inventarão um despertador que, sem barulho, lhe tire da cama? Um balde de água fria talvez. Está servido?

Publicado no Jornal Correio em  26/10/2012 




segunda-feira, outubro 15

Anosmia

Passado turbilhão eleitoral que, querendo ou não, deixou um agitado pensar na cabeça da gente e, muitas vezes, sufocou o que mais gosto de fazer, observar.

Os cavaletes foram tantos, os santinhos espalhados pelas ruas a sujar tudo, repulsa frente tamanha falta de respeito. O espiar por sobre mil faces com sorrisos, espertamente produzidos em computador, passou a ser martírio.

Em todo canto sentia-me espiado, observado por falsos rostos e números. Tomara que, na próxima, o Ministério Público proíba estes expedientes. Um grande amigo murmurou: “Canteiro é lugar de flor”. E olha que ele também foi candidato. Este é outro dilema em política local.

São tantos amigos e conhecidos. Quando me refiro a “tantos”, quero dizer alguns poucos, é a tal história de ser “famoso no Facebook corresponde a ser rico no Banco Imobiliário”, li esta outro dia, a autoria desconheço.

Finda a peleja eleitoral, retirados os cavaletes e os sorrisos plásticos, pude voltar à atividade que mais gosto, depois de trabalhar meus escorpiões e morcegos, é claro. Observar o mundo à minha volta, retornar como bem falou Manoel de Barros, atentar para as pequenas insignificâncias. Não sei se existem em grande tamanho ou proporção, seria complicado.

Mesmo enferrujado pela distração cívica, não deixei passar batido fato que vinha observando sem olhar já há alguns dias.

Beija-flores no quintal, vários, dezenas mesmo, todos ensandecidos pelas flores e perfumes, resultado de curta chuva que caiu sobre nossa Uberlândia. Com os beija-flores, abelhas sem ferrões, as nossas pequenas e belas jataís e mandaguaris, se fartavam em pólen e néctar. No meio desse piseiro de primavera, um colibri diferente se fazia notar. Voava ligeiro de flor em flor como qualquer outro, mas não se dava por satisfeito com nenhuma. Toda tarde era só ligar a mangueira que tem na ponta uma perereca verde/vermelha para matar a sede das plantas por alguns minutos, que vinham os sedentos bichos. Sede e fome. A chuva tarda. E lá estava ele, brilhante e perdido.

Depois de muito observar tive um lampejo de ideia. E se o pequeno fosse anósmico? Esclareço, o anósmico não sente cheiros, cheiro algum. De nada mesmo. O mais doce dos perfumes, o mais saboroso aroma do mais rico pólen passam totalmente desapercebidos! Como sobreviveria minha pequena e diária visitante se não conseguisse encontrar pelo olfato seu sustento? Fiquei agoniado. Aquela pequena preciosidade da criação poderia morrer de inanição a qualquer momento. Talvez, depois de provar alguma flor, ela pudesse pelo sabor conseguir identificar algo, pois é sabido que sua língua percebe cinco sabores: amargo, azedo, doce, salgado e unami, que significa gosto saboroso e agradável. Esse unami é descoberta recente e teve até congresso mundial para sagrá-lo gosto.

O oposto é chamado de hiperosmia, outro castigo, aqui e no reino da Dinamarca, ou não? Mas não acontecia. A avezinha voava zonza entre água do sapinho esguicho, banhava-se nas gotas que escorregavam folhas abaixo, mas nada de se alimentar. Essa ladainha já durava semana. Mas não podia ser possível, beija-flor, com tanta energia que gasta, não conseguiria sobreviver por tão longo tempo sem o doce mel. Firmei atenção redobrada no bicho, quase pronto a capturá-lo e fornecer alimento com conta-gotas. Mais alguns dias, e percebi meu grande engano, o bichinho era quase normal, só era daltônico, nada mais, normal. Quanto alívio.





Publicado no Jornal Correio em 15/10/2012


quarta-feira, outubro 10

Saudades

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...



(Clarice Lispector)

sexta-feira, outubro 5

Bóra pro mato?


1956 - Parte I e II

Mil novecentos e cinquenta e seis. Alguém, um vulto tinha passado por ele no bar e jogado o pedacinho de papel bem dobrado quase dentro de seu copo. Olhou rápido por sobre os ombros na expectativa de ver quem era, mas um garçom esbaforido equilibrando bandeja repleta de taças, pratos e garrafas passou exatamente naquele momento. Entre eles, uma pequena ponta do casaco preto sumiu atrás das colunas centenárias do salão.

Abriu lentamente o pequeno e curioso bilhete. Em tinta azul brilhante lia-se apenas 1956, nada mais. O número fora escrito com caneta tinteiro em perfeita caligrafia. Cada algarismo que compunha a milhar era milimetricamente do mesmo tamanho, perfeitamente desenhado, como se por mãos de meticuloso artista. Capricho assim nunca havia visto. Acariciou o bilhete para sentir a textura do papel. Era liso, sem imperfeições, as bordas também perfeitas, não apresentavam o menor sinal de guilhotina, nada que lembrasse corte, parecia peça única e não parte de um bloco de notas ou caderno. Aquele pedaço tão pequeno de papel não foi recortado de folha maior, isso era certo.

Disfarçadamente como a evitar que alguém o tratasse por maluco ou pior, por pervertido, levou o papel ao nariz e o cheirou profunda e longamente. Deliciosas e levíssimas notas de bergamota, jasmim da Índia, baunilha e sândalo logo se fizeram evidentes. Outros aromas igualmente maravilhosos e indecifráveis se faziam notar e despertavam profusão de emoções, de sensações indescritivelmente boas. O bilhete certamente veio de uma mulher, uma jovem e linda mulher, poderia apostar. Mas com qual intenção? Por que de abordagem tão diferente? Não seria melhor chegar e se apresentar? E se tal ato fosse ousado demais, não bastaria sentar em mesa próxima, trocarem olhares lânguidos, insinuantes e então, como pessoas normais, flertarem até criar oportunidade de iniciarem conversa?

Qual o motivo de tanto mistério? E os números, o que poderiam significar? Qual o recado que a linda moça queria lhe passar? Já havia criado uma face, um corpo, um decote, mentalizava um vestido curto, bem cortado, colado ao corpo perfeito sob o casaco preto, única coisa que de verdade conseguira observar do vulto.

Mas e os números? Voltou a pensar, demonstrando ansiedade e uma aflição esquisita. Vamos por eliminação, tentava organizar seus pensamentos. Seria um número de telefone? Mas e o prefixo, raios! Quem sabe uma senha, mas de que e pra que? Quem sabe este seria o número de seu armário em alguma academia de ginástica sofisticada, uma deixa para ver o quanto ele era atento. Quem sabe uma placa de carro? Percorreria o estacionamento do bar ao sair para conferir. Qual nada, se assim o fosse não custava também com capricho deixar as letras iniciais. Não tinha sentido complicar tanto. Que diabos poderiam aqueles números significar? Começou a perder o encanto e a paciência.

De cabeça quente de tantas conjeturas e querendo ficar aborrecido, começou a se achar vítima de alguma brincadeira boba, sem sentido.

Chamou o garçom para pagar a conta. Enquanto esperava tomou mais um gole de seu café frio e um pouco irritado enfiou o bilhete na xícara à sua frente. Ficou por alguns segundos a olhar o restinho do líquido que, por capilaridade, lentamente subia pelos poros microscópicos do fino e alvo papel até alcançarem sua borda mais alta e, em movimento sincronizado, colar nas paredes da porcelana. Espanto. A delicada folha aos poucos se pôs misteriosamente a se dissolver até não mais deixar vestígios. Nada. Era como se nunca tivesse existido. Coçou a orelha com o dedo mindinho estranhando aquela curiosa reação química.

Balançou a xícara como uma bateia de um lado para outro, como a procurar bamburrar em diamantina lavra, preciosa joia, mas nada mais havia do bilhete. No fundo, só resto pastoso do açúcar em excesso usado a escorregar de um lado para outro como caracol sem casca, como uma albina lesma de cristal líquido

Chega, pensou. Chega de perder tempo com insignificâncias. Talvez a pessoa nem tenha lhe passado o tal bilhete coisíssima nenhuma. Talvez, em ato instintivo e tão normal de falta de educação, simplesmente o tenha atirado fora. Era isso, fora brindado com nada mais nada menos do que com um pedaço de lixo. Quanta perda de tempo e elucubrações. Riu sozinho de sua ingenuidade e de sua fantasiosa imaginação. Deve ser a separação ainda recente da mulher e a vontade louca de não ficar sozinho, de arranjar logo uma companheira, mas desta feita perfeita, e não como a que o havia abandonado. Maldita, resmungou. A solidão criando seus fantasmas e novelas, quanta bobeira.

Estes últimos pensamentos o lembraram de um belo e importante encontro que havia marcado para aquela noite. Sentiu um friozinho na barriga sonhando com o que poderia acontecer. A noite prometia. Tomou o rumo apressado.

Abriu a porta de casa mecanicamente e nem se deu ao luxo de pegar os envelopes de correspondência que jaziam jogados no chão, atirados com capricho pelo carteiro.

— Tenho que colocar uma caixa de correios lá fora, pensou sem pensar. Com a ponta do tênis empurrou a papelada para um canto. Teria tempo mais tarde e, aliás, a maioria devia ser mesmo conta paga pelo débito automático ou propaganda de venda de imóveis, cartão de crédito e um monte de folhetos coloridos de supermercados e lojas de eletrodomésticos. Destino? Lixo, mas não agora, mais tarde.

Sem prestar atenção agarrou o controle e ligou a televisão, o som estava alto, também sem perceber abaixou o volume quase a zero. Gostava era da luz da tela a dançar pela sala em relâmpagos multicoloridos. As cores tingiam vidraças, enfeites de cristal, as garrafas perfiladas na estante de seu bar na sala. Eram mágicas suas luzes dançantes. Davam vida às paredes e teto como um sobrenatural teatro de sombras chinês. Dormira mil vezes mais a admirar o espetáculo espectral do que vendo a programação. Sentia-se um poeta. O som na maioria das vezes pouco importava.

Tomou um banho longo e relaxante. Fez a barba com calma e depois delicadamente estapeou o rosto com a loção after shave, último presente de sua ex, felizmente estava no fim. Ardera um pouquinho, praga dela em lampejo debochado, pensou. Empurrou a bochecha internamente com a língua e passou a palma da mão pela face. Barba perfeita se vangloriou. Forçou sorriso para ver a brancura dos dentes. Deu um soquinho no próprio queixo se achando o mais belo, feliz e sortudo homem da face da terra. Aquele encontro prometia.

Vestiu roupa confortável que havia escolhido antes do banho e deixado montadinha, prontinha sobre a cama de casal king size. Apesar de ser divorciado e morar sozinho adorava camas grandes. Vestiu-se quase que ritualisticamente e se colocou em frente ao espelho em narciso ataque. De frente, de lado, passava as mãos nos cabelos e deu peteleco em pequeno fio fora do lugar por sobre os ombros. Fez pose de galã de cinema, armou jeito sério, estufou o peito, encolheu a barriga que teimava em dar sinais de vida. Semana que vem começo a malhar, pensou batendo com a palma da mão sobre o umbigo.

O celular tocou e o trouxe de volta. Apressado saiu em disparada, sem tempo de apagar as luzes e muito menos a estroboscópica televisão. Também não deu tempo de ouvir o apresentador do jornal da noite, em edição extraordinária, pausadamente recitar os números ganhadores do maior prêmio pago na história por um tipo de loteria no país: 01, 09, 05...

O barulho seco de uma porta fechando se fez ouvir. O apartamento vazio em luzes se aquietou.







Publicado em Gazeta do Triângulo

Parte I em 28/09/2012

Parte II em 5/10/2012





domingo, setembro 30

Hospital dos bichos

Ivan Santos,
a respeito de sua crônica “Hospital público para animais”, publicada em sua coluna em 27/9/2012, peço licença para tecer alguns comentários. Quanto a bicho ter alma é uma questão de fé, mas umbigo, gato, cachorro e quase todos outros animais carregam. Até aves e répteis têm umbigo! Só não é tão visível quanto o dos humanos. Alguns têm mais do que os outros, pois ralam o umbigo para sobreviver, enquanto outros apenas o enfeitam (enfeiam?) com adereços tribais brilhantes/coloridos. Ah! A atriz Fernanda Vasconcellos também não tem umbigo.

Talvez aqueles primeiros casais lá do paraíso não o tivessem, mas suas crias e descendência carregam a marca. Tinha cão e gato no paraíso? Questão teológico-filosófica digna de discussão em algum concílio eclesiástico a ser criado. SUS Cão/Gato também tem que pensar em passarinhos, como canário-belga e periquito australiano, e onde fica o direito dos peixes de aquário e dos furões-domésticos, hamsters e outros pets? Se, segundo o sr. Magri, cachorro também é gente, os outros bichos também são. Se não ampliarem as espécies atendidas no tal hospital, o velho porco de George Orwell promete outra revolução dos bichos.






Jornal Correio, Opinião do leitor 30/09/2012

sexta-feira, setembro 28

1956 - Parte I

Mil novecentos e cinquenta e seis. Alguém, um vulto tinha passado por ele no bar e jogado o pedacinho de papel bem dobrado quase dentro de seu copo. Olhou rápido por sobre os ombros na expectativa de ver quem era, mas um garçom esbaforido equilibrando bandeja repleta de taças, pratos e garrafas passou exatamente naquele momento. Entre eles, uma pequena ponta do casaco preto sumiu atrás das colunas centenárias do salão.

Abriu lentamente o pequeno e curioso bilhete. Em tinta azul brilhante lia-se apenas 1956, nada mais. O número fora escrito com caneta tinteiro em perfeita caligrafia. Cada algarismo que compunha a milhar era milimetricamente do mesmo tamanho, perfeitamente desenhado, como se por mãos de meticuloso artista. Capricho assim nunca havia visto. Acariciou o bilhete para sentir a textura do papel. Era liso, sem imperfeições, as bordas também perfeitas, não apresentavam o menor sinal de guilhotina, nada que lembrasse corte, parecia peça única e não parte de um bloco de notas ou caderno. Aquele pedaço tão pequeno de papel não foi recortado de folha maior, isso era certo.

Disfarçadamente como a evitar que alguém o tratasse por maluco ou pior, por pervertido, levou o papel ao nariz e o cheirou profunda e longamente. Deliciosas e levíssimas notas de bergamota, jasmim da Índia, baunilha e sândalo logo se fizeram evidentes. Outros aromas igualmente maravilhosos e indecifráveis se faziam notar e despertavam profusão de emoções, de sensações indescritivelmente boas. O bilhete certamente veio de uma mulher, uma jovem e linda mulher, poderia apostar. Mas com qual intenção? Por que de abordagem tão diferente? Não seria melhor chegar e se apresentar? E se tal ato fosse ousado demais, não bastaria sentar em mesa próxima, trocarem olhares lânguidos, insinuantes e então, como pessoas normais, flertarem até criar oportunidade de iniciarem conversa?

Qual o motivo de tanto mistério? E os números, o que poderiam significar? Qual o recado que a linda moça queria lhe passar? Já havia criado uma face, um corpo, um decote, mentalizava um vestido curto, bem cortado, colado ao corpo perfeito sob o casaco preto, única coisa que de verdade conseguira observar do vulto.

Mas e os números? Voltou a pensar, demonstrando ansiedade e uma aflição esquisita. Vamos por eliminação, tentava organizar seus pensamentos. Seria um número de telefone? Mas e o prefixo, raios! Quem sabe uma senha, mas de que e pra que? Quem sabe este seria o número de seu armário em alguma academia de ginástica sofisticada, uma deixa para ver o quanto ele era atento. Quem sabe uma placa de carro? Percorreria o estacionamento do bar ao sair para conferir. Qual nada, se assim o fosse não custava também com capricho deixar as letras iniciais. Não tinha sentido complicar tanto. Que diabos poderiam aqueles números significar? Começou a perder o encanto e a paciência.

De cabeça quente de tantas conjeturas e querendo ficar aborrecido, começou a se achar vítima de alguma brincadeira boba, sem sentido.

Chamou o garçom para pagar a conta. Enquanto esperava tomou mais um gole de seu café frio e um pouco irritado enfiou o bilhete na xícara à sua frente. Ficou por alguns segundos a olhar o restinho do líquido que, por capilaridade, lentamente subia pelos poros microscópicos do fino e alvo papel até alcançarem sua borda mais alta e, em movimento sincronizado, colar nas paredes da porcelana. Espanto. A delicada folha aos poucos se pôs misteriosamente a se dissolver até não mais deixar vestígios. Nada. Era como se nunca tivesse existido. Coçou a orelha com o dedo mindinho estranhando aquela curiosa reação química.

Balançou a xícara como uma bateia de um lado para outro, como a procurar bamburrar em diamantina lavra, preciosa joia, mas nada mais havia do bilhete. No fundo, só resto pastoso do açúcar em excesso usado a escorregar de um lado para outro como caracol sem casca, como uma albina lesma de cristal líquido. 






Publicado no Jornal Gazeta do Triângulo em 28 de Setembro de 2012