domingo, novembro 23

Bicho da carneira

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Não tem coisa melhor nesse mundo do que viajar. Poder ser a trabalho ou a passeio, não importa. Quer dizer, importa um pouco sim. A passeio, de férias, o tempo é seu e você faz dele o que quiser. O relógio não fica ali te vigiando, sussurrando o tempo que passa beirando seus olhos e mostrando que os compromissos não serão cumpridos no horário. Férias é férias, nada melhor. A viagem a trabalho, apesar de apertada em fazeres também oferece momentos deliciosamente especiais, principalmente quando você se relaciona com gente de diferentes costumes e sotaques.

Recentemente, na colorida e quente Montes Claros. O pessoal que estávamos a treinar era principalmente da região norte/nordeste das nossas Gerais. Todos com histórias para contar e cantar. Final de tarde, hora de prosa e trocar casos, acontecidos ou não. No campo, durante trabalho também surgiam casos, maneira de amenizar o peso do sol chapado na cabeça e costas, de matar sede sem água, de enganar fome, transformar o aparentemente sofrido em alegre fazer.

Tarde dessas em meio a toras, telhas e entulho, cavando feito tatu em busca de escorpiões, um companheiro de labuta da pequena Pedra Azul – incrustada no vale do Jequitinhonha – se põe a contar história antiga do Vale. O contador no caso era um negro ébano. Três de mim, forte, fala alta. Como diz amigo dr. Thogo, de fazer poema com seu sorriso de puro marfim reluzente. Figuraça! Bom de ficar junto. Apesar do tamanho e ser vociferador, homem de muita paz, sereno. Casado com alemã, conta orgulhoso que seus filhos pequeninos falam fluente alemão com sotaque de mineiro. Seus olhos merejam ao lembrar que toda noite os dois o cobrem de beijos com despedida de boa noite:

— Gute nacht papa, träume von engeln.

De nome Luiz, de Pedra Azul, conta que há muito tempo atrás, certo moço resolveu arrear mula e sair em plena sexta santa. A mãe preocupada implorou que ele não fizessse isso, pois era pecado naquele dia sagrado. Desaforado, o moço esbravejou bufão dizendo que arreava a mula ou até ela, a própria mãe, se quisesse. De raiva assim fez, arreou a mãe e desfilou com ela pela cidade para horror de todos. A velhinha morreu de desgosto.

Não foi nada não. Passado pouco tempo o rapaz também morreu de repente e sua cova ou carneira foi coberta por fios de cabelos brancos que contam ser da mãe, que mesmo humilhada ali se pôs a proteger o filho. Contam também que toda sexta santa, um rapaz muito bonito ronda a cidade à noite. Entra em restaurantes e come por 40 homens e manda a conta para seus parentes, os Antunes.

Os antigos sabem que devem, naquela noite, colocar prato de comida à porta de casa para saciar a fome castigo imposto eternamente a esta atormentada alma. Claro, existem várias versões da mesma história e pelo que vi e ouvi cada um, em Pedra Azul, tem sua própria. Esta foi a que ouvi do novo amigo Luiz.

Então, viajar são várias dentro de uma. Avexe não. Pega a estrada, eterno aprendizado. Essa em particular vai para Murilo Antunes, amigo e grande compositor. E claro, eterno pato“ na sinuca, palavras de Chico Marcos (sem ressentimentos, Murilo).






Publicado Jornal Correio em 23/11/2014



terça-feira, novembro 18

Foto oficial

Foto oficial  do Curso de Capacitação de Manejo e Controle de Escorpiões em Porto Velho - Rondônia
Pena que muitos já haviam saído. Distâncias longas até um chegar em casa.

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segunda-feira, novembro 17

Montes Claros




Convocados pelo Ministério da Saúde, lá fomos nós mais uma vez ministrar curso de Manejo de Escorpiões para técnicos de toda Minas Gerais. Montes Claros foi escolhida como local para tal treinamento por registrar a triste estatística de maior concentração de acidentes humanos por esse bicho em Minas.

Ministrar tais cursos é sem dúvida uma das mais aprazíveis atividades de nosso trabalho. O repartir o pouco conhecimento que temos, sentir as necessidades de outras localidades, os desafios constantes. Podemos dizer, sem medo de errar, que nossa Uberlândia está muito à frente quando o assunto é escorpião.

Tivemos a honra de visitar quase todos estados do Brasil. Com técnicos tanto do próprio Ministério da Saúde quanto do Instituto Butantan formamos um grupo fantástico de se trabalhar, além dos laços fortes de amizade que se formaram durante todo este tempo que juntos estamos correndo mundo em missão mais do que gratificante, nasceu cumplicidade e metodologia de trabalho única, musical, sonora. Aliás, desta feita combinou e muito com a cidade que nos recebeu.

Montes Claros é assim. Respira-se musicalidade. O sotaque gostoso, sorrisos receptivos por todos os lados, em rapidez de fogo fátuo sente-se em casa. A cordialidade é a marca do povo de lá. Instalados em andar alto de hotel, sou informado que volta e meia a terra treme por lá, em situação como essa era bom não pegar elevador.

O aviso foi dado de maneira calma, sem intenção de criar nenhum pânico, foi dito naturalmente sem alarde. A última vez que aconteceu, que a terra irritada deu chacoalhadas de mau humor, o pessoal foi para rua dormir, criança, passarinho, cachorro, todos com seus colchões para praças e locais abertos.Sem alarde ou pânico para eles – ô meu Deus, se soubesse disso antes teria ficado era no térreo.

Cedinho, manhã já com calor de rachar mamona, acordo com coro de vozes infantis. Grupo escolar bem próximo ao hotel. Criançada perfilada. Primeiro cantaram Hino Nacional, depois algo que me pareceu hino de Minas, não sei se tem, para mim as músicas mais representativas de nosso Estado são Peixe vivo, a preferida de JK e “(…) quem te conhece não esquece jamais(…)” não sei se tem hino oficial. Se tiver me contem e cantem.

Além da musicalidade, da receptividade e simpatia, o povo e a cidade possuem outras marcas. Religiosidade em alta. Várias missas por dia tanto na Matriz quanto na Catedral. Povo rezador de primeira linha, como as gentes das regiões próximas, do Jequitinhonha, do Vale do Urucuia, de todo norte das Gerais.

Outra coisa que lá vi e que em andanças sem fim nunca tinha colocado reparo, foi o asfalto. Isso mesmo, asfalto. O de lá parece piso de alpendre bem cuidado, brilha lustroso. E não tinha aquele que me desse explicação plausível para assim ser. Não me dei por vencido, perguntei a muitos. Cada um com história mais estranha que a outra. Em comum apenas a constatação:

— É, todo mundo de fora pergunta desse asfalto.

Uns me disseram que era para o sol refletir por conta do calor.Não me convenceram. Vim embora sem saber o motivo de asfalto zelado e encerrado. Tanto a contar de lá, lendas, folclores, casos, o pequi, a carne de sol, mercado de cores e cheiros. Mas isso é outra história. Conto depois.






Publicado em Jornal Correio em  16 de novembro 2014



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sábado, novembro 8

Não tem como não ser!




A quarta-feira anoiteceu quente. As chuvas poucas, porém fortes, jogaram a umidade lá para o alto. Fez brotar um mormaço amazônico. Não havia lugar para ficar. Pensei em água, banho frio e longo, mas o rio não está para peixe. Gastar o precioso líquido é no mínimo antipatriótico.

Talvez fossem ondas de calor, andropausa? Testosterona em baixa? Sei lá se passamos por isso com o rigor da menopausa. Hora vou pesquisar. Tomei ducha ligeira e, como ninguém é de ferro, abri uma latinha de cerveja sorvida ao meio, em gole único. A lua, quase cheia, passeava entre nuvens finas mostrando total desinteresse pelas coisas terrenas, espectadora passiva da história, preocupada apenas com suas fases. Cantarolei para espantar tensão: “mente quem diz que a lua velha/ mente quem diz…”
Essa história de televisão marcar hora para programação de interesse geral é desaforo. O horário de verão é inimigo em momentos assim.

Fico a imaginar os milhares de trabalhadores, nos quais me incluo, que têm de se levantar cedo dia seguinte. Suados e alegres, apinhados em ônibus lotados até a tampa, num difícil voltar para casa, tentam cochilo breve e, novamente, levantar, abraçar a esposa, beijar os filhos, pegar rumo do batente, ainda que com olheiras, mas de alma lavada. Estatística existe sobre acidentes de trabalho no dia seguinte à festa?

Contudo, vale o sofrimento, vale ressaca de cansaço dia seguinte, valem olhos vermelhos de choro de alegria de orgulho.
Hoje estou rouco de tanto gritar, nem gargarejo com fava de sucupira vai curar a rouquidão. O grito mais uma vez não ficou parado na garganta. Vizinhos devem ter ficado de orelha em pé, pois, de modo geral, sou silencioso em minhas manifestações. Exagerei no jogo contra o Corinthians, em outra quarta-feira mágica de outubro. Repeti a dose na quarta (6). Carlos, Maicosuel, Dátolo e Luan, escreveram página especial no time mais querido de Minas Gerais. Todos mostraram garra de seleção brasileira de 70. Se Dunga, vê se pode, assistiu a este jogaço, escalaria nossa equipe alvinegra para representar o Brasil.

Os comentaristas e narradores, como de costume, torcendo de maneira subliminar contra time mineiro. Calamos a imprensa esportiva do eixo Rio-São Paulo. Calamos uma nação rubro-negra que em Minas aportou de salto alto, soberba pura.Duplo prazer incalculável sentimos. Ganhar de virada linda do Flamengo, ganhar do arrogante Luxemburgo, só não foi melhor porque o Cruzeiro, mesmo empatando suado com o Santos, se qualificou para ter a honra de jogar conosco.

Levantei empurrado por um despertador que toca o hino da Galoucura. Vesti a camisa oficial do Clube Atlético Mineiro e fui trabalhar. Estranho, não encontrei nenhum flamenguista pelas ruas. Mas muita gente baixou os olhos, talvez em reverência, talvez em pura vergonha, ao vislumbrar a guerreira camisa preta e branca.

Vicente Motta, este montesclarense rei das marchinhas nos brindou com uma joia, foi feliz e inspirado quando nos deu o hino mais bonito do mundo: “Nós somos do Clube Atlético Mineiro/Jogamos com muita raça e amor/Vibramos com alegria nas vitórias/ Clube Atlético Mineiro/ Galo Forte Vingador. (…) Lutar, Lutar, Lutar/ Com toda nossa raça pra vencer/ Clube Atlético Mineiro/ Uma vez até morrer!

Não tem como não ser Galo!








domingo, novembro 2

Vivência



Dor não tem nada a ver com amargura. Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais. É pra ensinar a gente a viver.” Adélia Prado

Perguntaram-me o porquê dessa mania de tanto falar de bicho e de amenidades viventes. Falo de gente também e não é pouco. Porém me dou mais com os bichos e suas graças e trejeitos. São mais equilibrados e nunca falsos.

Já alma humana é como lua, todas têm um lado escuro que nunca é mostrado. Uma banda mora na escuridão e encerra sentimentos mais loucos, frustrações, invejas, olhares turvos. Lá, guardadinhas, estão as maldades que todos negam carregar. Basta estímulo, ataque de ira, para que aflorem como correntes furiosas de mar aberto, pororoca avassaladora que a tudo consome.

Bicho tem disso não. Neste exato minuto, aqui no meu quintal, dedilho ao triste/alegre cantar de sabiá em choco. Soa amargura, tristeza. Não é não. É a alegria triste de ser feliz em soltura. O céu como limite, os filhotes no ninho. Canta para mostrar quinhão de território. Divisas invisíveis demarcam espaço, defendido a bicos e canto.

Bicho não melindra, não julga, não trai. Bicho retrata pureza. E não são apenas os belos que encantam. Os ditos feios, venenosos, perigosos também têm sua graça. Bicho não sai caçando gente para ferroar, bicho não faz malvadeza. Serpentes, escorpiões, morcegos, são tratados como criaturas das trevas, quando na verdade são apenas parte de um quebra-cabeça gigante onde cada ser vivente é parte. Tudo se encaixa, não existe acaso, nem coincidência. O grande desafio de quem quer viver em harmonia e paz é montar este jogo. Cada peça em seu lugar.

O sábio, o humilde, o de coração aberto, acha caminho mais fácil entre peças coloridas ou escuras. Monta ao longo da vida devagarzinho, sem pressa. Os de coração duro, os que jamais mostram malvadezas, se perdem em pouca paciência e, normalmente, abandonam as peças na poeira. Por inveja ou ciúme, desprezam o jogo. Montam um canto de vida e ali se deixam ficar afogados em poças pequenas de mesquinhez e ruindade. Não avançam, não cantam, não sorriem.

Exemplos de gente do bem existem aos montes, mas somem diante da torrente de lama das maldades. Olho de bicho percebe fácil. Sabe onde pousar e descansar corpo.

Dou-me com bichos, com as crianças e com os loucos mansos. Lucidez destes encanta. Perfume de dia nascer, melancolia de sol se pondo. Não preparam surpresas que não sejam as belezas de cada ir e vir. Todos diferentes, cambiantes, suaves, puros.
Falo de gente assim, de alma colorida. Não gasto tinta com iniquidades.

Consomem energia, descarrega vitalidade, desperdício de tempo. Estes dias, encerrou-se período importante no direito, mas triste em si mesmo. Energia negativa circulava por todos os lados, não poupando nem bicho nem gente. Ofensas e brigas pairam ainda em denso espaço. Muita água de cheiro, defumador e acender de velas, para livrar o espaço de tanta deterioração ambiento/mental. Almas conspurcadas, sandice por poder. Este, o cantinho mal construído, pedacinho do quebra-cabeça da vida. Assim, em reza, peço: Livrai-nos de todo mala men! Saravá!







Publicado Jornal Correio em 2 de novembro 2014




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