segunda-feira, julho 29

Coração



Pois é, fui ao cardiologista. Nada de mais, pois se tratava apenas de meu check-up anual. Chega certo ponto da vida em que temos de pedir benção aos doutores, para saber se podemos continuar na mesma toada do ano anterior. Tomar tento se podemos manter a mania ou vício de, literalmente, correr todo dia, pois meu passatempo preferido é caminhada puxada ou corrida a mil. Se passo dois dias sem colocar o tênis na trilha ou no asfalto, fico que nem bicho preso. Uma sofrência sem fim.

Como bom paciente, pacientemente esperei minha hora em uma sala cheia de gente, também aguardando por sua consulta. Não era pouca não. O telefone, em um tocar sem parar, avisava que tinha mais um tanto querendo consulta.
O coração de nossa gente anda frágil. Arrítmico crônico. Um ar de tristeza parece que tomou conta das pessoas. Um manto pesado a apagar brilhos de almas.

O nosso Brasil também anda doente, coração pronto a explodir. A televisão, os jornais e rádios nos jogam toneladas de tristezas diariamente. Custa uma notícia boa: Japão retoma matança de baleias. E a falsa pureza norueguesa, parceira dos nipônicos nos assassinatos de um dos mais belos e inteligentes seres marinhos, empenhada em “proteção” de nossas matas, mas destruindo e saqueando como fizeram os portugueses colonizadores, vorazes em depredação. Porém, agora as proporções são incomparáveis, com tecnologia a serviço da destruição.

Tudo isso com a anuência de um ministro do meio ambiente que não suporta verde. Ainda recebemos quilos de informação sobre educação e cultura ou antieducação e anticultura, de um ministro que não detesta educação. A única cultura que vemos protegida é a dos grandes produtores. Estes sim mandam e desfazem. Raposa chefe do galinheiro, o diretor da Funai é ruralista. Surreal Brasil.

Um chef renomado rouba especiarias de nossa floresta, de nossos quilombolas e as transformam em marca de grife. Aos donos da mata? Talvez migalhas em lugar de miçangas coloridas e espelhos lusitanos. No consultório lotado o telefone não pára. Corações apertados em gritos de socorro. Ao meu lado, suspiros e angústia. Sinto-me em pleno século V. O Império Romano ruindo Constantinopla é novamente tomada pelos otomanos. Os humanistas, sim como agora existiam, viviam a Idade das Trevas.

Não muito diferente do que estamos passando globalmente. Loucos no poder, manipuladores das mídias se fazem em pura propaganda, doutrinários alunos aplicados da escola de Goebbels.

Meus exames? Passei com louvor. Sabe-se lá até quando o bronze aguenta. Andei a pensar que vou tentar uma embaixada em uma ilha deserta. Sei contar estrelas-do-mar e da noite, sei sentir brisa, maresia, confidencio com vaga-lumes e morcegos, identifico cantos de pássaros, voo com borboleta. Sei cantar em prece para Iemanjá.

Não, não seriam requisitos para fazer jus a tamanho posto e no mais, longe de mim compactuar com essa gente miúda dos poderes manipuladores da informação, seja lá ou cá. Peço distância. Vou cuidar de meu bronze e, de alguma janela, com olhar altaneiro, esperar ansioso o fim da escuridão. A luz de nova Renascença.

E o “ser humano foi revestido de uma nova dignidade e colocado no centro da Criação”, e que da escuridão, surjam luzes como faróis fincados em sólidos rochedos, a nos guiar e aliviar cansados corações.
Os homens sabidos/ E sabedores /Garantem que surgiu uma nova estrela/
É o tempo da nova estrela/Há quem diga que Cristo retorna
E sua marca é um dente dentro da garganta/A estrela dita um novo tempo/E convoca pensadores a tecer novos pensamentos
E convoca lutadores a novas batalhas/Nada sabemos ainda/Sabemos apenas do novo corpo/ Que brilha igual ou diferente dos corriqueiros corpos celestes/ Do chão de nosso litoral apenas olhamos(…)”

(A Nova Estrela - Som imaginário 1971)
Fredera e Wagner Tiso me representam.

Pronto, vão dizer que sou petista, comunista, ou outro “ista” qualquer, pois falei de estrela. E olha que nem tomo cerveja Heineken. As pontas da holandesa estrela representam “terra, ar, fogo, água e um quinto elemento que acreditavam ser mágico e até hoje é desconhecido”.

Ninguém tem o direito de se apoderar dos astros, cores e bichos. São a expressão máxima da beleza/ pureza. E sonhos, não envelhecem jamais (Obrigado Bituca). Agora só falta fazer como na Hungria, onde querem banir a estrela da cerveja, porque na cabeça de alguns mandatários idiotas ela remete ao comunismo. Jesus amado! Bom, para quem perde tempo com tomada de três pinos nada é impossível.

Enquanto isso, corações machucados em doença ou paixão aguardam (in)pacientemente, aos montes em corredores de consultórios,

No mais, Gerais!





Diário de Uberlândia - 28 de julho 2019

segunda-feira, julho 15

Carroças - Parte I e II





Feche os olhos e imagine a cena: hora do rush. Não, essa palavra não combina com nossa cidade, não temos um rush de verdade, temos tumulto e pressa de sair do trabalho e correr para casa ou para o boteco. Rush é coisa para São Paulo, Belo Horizonte, Nova York. Por falar na capital em BH, há pouco tempo estávamos por lá a ministrar curso em manejo de escorpiões. Compondo equipe de instrutores levei especial amigo e profissional de primeira linha da cidade do Prata.

Acostumado com a tranquilidade pratense, certa tarde, ao tentarmos, sem sucesso, cruzar a avenida Getúlio Vargas em plena Savassi na faixa de pedestre esperamos mais de 40 minutos na boca da noite rumo ao hotel. Ele, depois de dezenas de tentativas, desce da calçada, volta correndo, pula para trás, dois passos a frente, em coreografia digna de fina academia de ginástica, me saiu com essa:

— Esse pessoal daqui não trabalha, não? Será que não tem nada melhor para fazer do que andar o dia inteiro de carro?

Não restou, além de rir e concordar, o trânsito de Belo Horizonte é caótico, lá tem rush, e como tem.

Mas voltando à vaca fria. Imagine a cena: hora do aranzé das seis da tarde aqui em nossa Uberlândia. Todo mundo apertado em nossas vielas estreitas e despreparadas para o atual volume de carros a circular agressivamente pelo Centro.

À sua frente, caro leitor, segue em toada tranquila nada mais, nada menos do que uma carroça, e, obviamente, o carroceiro e seu cavalo. Para desespero do condutor, seu animal é, como todos os outros, por natureza, pouco dado a controle de esfíncter e regras sociais, resolve, na pureza de sua existência, como uma criança ou um cão de madame, durante seu harmonioso trotar, fazer suas necessidades.

O carroceiro, cidadão cumpridor de suas obrigações e muito bem informado, puxa as rédeas, para a condução, calmamente busca tateando sob o banco um saquinho de plástico. Não encontra. Puxa da memória e dá um empurrão com as costas da mão no chapéu, como a ventilar as ideias. As primeiras irritadas buzinas já se fazem ouvir na fila que rapidamente se formou bem coladinha na traseira do velho coche de trabalho.

Ah! Deixei na caixa de ferramentas – pensa com seus botões. Totalmente indiferente ao buzinaço que agora se faz ouvir a quilômetros, desce, pega o saquinho, procura a pazinha e calmamente recolhe o montinho de estrume que poderia infectar de pragas bíblicas a nossa cidade.

O cavalo, aparentemente indiferente, se mantém impávido a mastigar distraidamente o bridão. Obrigação cumprida, tão comprida quanto a fila, que, a essa altura, já faz curva lá pelas bandas da Nicomedes. Aqueles lá no final do congestionamento e que não fazem a menor ideia do cinematográfico e jamais visto congestionamento, já fora dos carros, se põem a perguntar angustiados o motivo de tamanha confusão. Será que aconteceu um grave acidente com direito a ônibus em chamas, carros de bombeiros e ambulâncias? Não, acho que foi um assalto a banco com cerco policial e tiroteio.

Um bicicleteiro sacana, vindo na contramão do fluxo, da cabeceira da fila comenta entre dentes: foi um atentado a bomba, tem até esquadrão especializado lá; abaixa a cabeça para evitar ser flagrado em seu cínico sorriso frente ao atônito olhar dos imobilizados motoristas.
(continua)






 Diário de Uberlândia 14 de jullho 2019 






Carroças parte II

Nota deste modesto missivista: Seria legal passada d’olhos na Parte I aqui no Diário de domingo passado. Segue a prosa.

O boato vai crescendo, a história toma rumos surreais: a Tubal Vilela afundou, resultado de falha geológica até então imperceptível.
Nosso carroceiro salta ligeiro para seu carrinho ganha-pão, estala a língua, e o cavalo, adestrado a alguns poucos comandos, retoma sua marcha tranquila. Isso na Tubal Vilela.

A puxar gigantesco cortejo ao som irritante de buzinas mal-educadas e xingamentos impublicáveis, segue seu caminho. Na primeira esquina, bem perto do fórum, não é que seu bicho me resolve dar outra descarregada? Também com tanto pizeiro a gerar stress no animal, não podia dar outra. E a ladainha começa outra vez.

Compromissos, aulas de pilates e novelas perdidas, amigos deixados sozinhos em mesa de bar, filhos na porta da escola, humores em baixa, ataques cardíacos, crises de pânico. Tinha que ser numa sexta-feira! Esconjura outro. Só sendo cremnóbata ou praticante de pacur, para vencer tamanho obstáculo urbano.

E por quê? Tudo por um monte ou dois de cocô.

Céu estrelado, tarde engolida por sombras de prédios. Aos poucos a normalidade.

Nem um vestígio do estrume ficou para contar a história. No entanto, por toda a avenida de ponta a ponta, um mar de papéis, de palitos de sorvete, sacos plásticos, de latas de refrigerante e até jornais e revistas, como se furacão ali tivesse deixado rastro. Tudo fruto da impaciente espera e da falta de educação e postura cívica de tantos diante de importante missão do carroceiro cumpridor da lei.

Proíbem-se os irracionais animais a não sujar vias públicas com material que logo se desfaz em inócuo pó verde e segue inofensivo bueiro abaixo, e humanos continuam a jogar seus restos entupidores de esgoto e redes pluviais ao léu e nem por isso incomodados são.

Já o carroceiro, nesse momento a trotar rumo à sua casa e merecido descanso, olha para um lado, olha para outro e displicentemente, sem maldade, por puro hábito e costume, joga seus embrulhos de merda na primeira sarjeta ou terreno baldio que encontra, longe de olhares

fiscalizadores da lei. Fezes embrulhadas para presente ganharão rumo de nossas galerias ou ficarão escondidas no mato a chamar moscas e baratas. Ali pode?

Somos uma cidade de origem rural, mesmo que muitos disso não gostem. Ainda podemos nos dar ao luxo de ter honestos cidadãos que da carroça tiram sustento.

Quando aqui cheguei, em época que os bichos ainda falavam como diz um compadre, as carroças se concentravam ao lado da antiga rodoviária na praça Cícero Macedo.

Não foi uma nem duas vezes que usei desse transporte como táxi para chegar até a pensão lá na Duque de Caxias na qual morava.
Vim da já naquela época aprendiz de caótica Belo Horizonte. Este bucólico meio de locomoção compôs a porção mágica de sedução por Uberlândia. Com raras exceções, reclamações estrumicas, vinham talvez apenas de algumas pudicas senhoras às portas de igrejas que viam no ato fisiológico conotações pecaminosas.

Claríssimo para qualquer um que os tempos mudaram e que as carroças carecem de alguma regulamentação, acho que já li algo a respeito em nosso código de posturas. Mas daí a obrigar carroceiro a catar excremento cavalar, me parece outra lei para jamais ser cumprida. A intenção pode até ter sido das melhores, mas não seria melhor apenas determinar horários de circulação? É esperar para ver.

Diário de Uberlândia  21 de julho 2018