segunda-feira, janeiro 25

Chuva


Foto da web (autor desconhecido)
 
Parece que, finalmente, a tão esperada chuva deu o ar da graça e cravou nuvens sobre nossas cabeças. Como demorou este ano. Não vou ficar repetindo as possíveis causas de tanto calor como o que passamos e agora, o atraso das águas, mas sabemos que a culpa é nossa, do El Niño e de sua namoradinha La Niña. Com suas maldades infantis e terríveis consequências, foram gerados por ações humanas. Criamos monstros. Pode parecer loucura, mas tem criança má sim. Como diz o psiquiatria infantil Fabio Barbirato: “Não é fácil a sociedade aceitar a maldade infantil, mas ela existe”. E grande parte da culpa, se é que se pode definir como tal, é de quem a criou. No caso dos dois Niños, nós mesmos.

Abrimos a Arca da Aliança, fizemos da natureza nossa inimiga e, como tal, sugamos suas riquezas em dose alta demais, enfumaçamos a casa. Estamos condenados a pagar alto preço por tamanha heresia. As águas vieram em pingos verdes, a terra rachada que nem nossos calcanhares de criança criada livre, pé no chão, agradeceu florescendo em mantos e matas e mantras.

Nas pobres cidades um desastre que se repete desde quando inventaram o progresso, o asfalto, a especulação imobiliária e o ódio por árvores. Ruas em armadilhas se transformam, mato cresce com vigor nos terrenos e seus donos acham que é dever do poder público carpir. Mato, quanto mais corta mais forte cresce.

A roçada de hoje é o matagal de poucos dias para frente. Cada dono deveria cuidar do que é seu. Logo a tão esperada chuva vira tormento para muitos, roupa não seca, mofo aparece, goteiras esquecidas renascem. Não demora ovo na cerca e novenas para Santa Clara, acompanhada da mandinga: “Lágrima do peito aberto, coração de Deus ferido, nos defendei da tempestade e de todos os perigos”. Não tem cerca na cidade grande? Ovo na calha ou no muro. Tudo para espantar a até outro dia tão esperada senhora da vida e fartura. Se não funcionar, pelo menos um gambá que mora hoje pertinho de você ganha uma almoço, pois na mata já não tem abrigo.

De bendita a amaldiçoada é um pulo. As gentes da cidade desconhecem o valor dessa riqueza. Dela só sabem pela televisão, pela previsão do tempo, pelas reportagens trágicas. Quer trecho para Pasárgada? Impossível. Aeroportos fechados por conta do mau tempo, sem teto dizem. Ônibus ou carro? Um perigo, estradas queijo suíço, quedas de barreiras e o preço do pedágio para as alturas a encontrar nuvens pesadas foi.

Saudades de ficar quietinho na varanda com uma boa xícara de ágata colorida de café quente, olhando a chuva benzer campos e montanhas de um lado, à minha frente cheiro de sal, uma imensidão de mar calmo. Já viu chovendo no mar? Água morninha. O ritmado quebrar de ondas baixas deixa espuma na praia. Nada de preocupação com alagamentos, atoleiros ou pedágios. Andar descalço em areia molhada, deixar chuva correr pela aba do chapéu, sonhar com roça pronta, cantarolar alegria, peito a explodir. Viver é tão bom.

A vida pode ser assim, mansa. O cheiro de terra molhada convida à contemplação. Só não pode barragem mineradora por perto a ameaçar com sua ganância de lama.









Jornal Correio em 24 de Janeiro de 2016




Chuva

segunda-feira, janeiro 18

T.I. e passarinhos



Interessante, assim como Dannilo Camargos, mestre em assuntos relacionados com nossa sociedade, sou também um fervoroso apaixonado por tecnologia e, como ele afirma, também pouco sei lidar com ela. Tenho um “Personal” em TI, meu filho – quando me aperto recorro a ele, ou seja, a todo minuto. Travou, não baixou, colocar música no iPod, ligar o tal cabo HDMI do note à televisão para assistir meus clássicos… O último que revi foi “Morte em Veneza”, filme baseado na maravilhosa obra de Thomas Mann, magistralmente dirigido pelo gênio Luchino Visconti.

A beleza como descreve, fiel ao livro, a paixão em seu sentido mais puro de Aschenbach por Tadzio, só poderia ter como trilha sonora o quarto movimento – Adagietto – da “5ª Sinfonia”, de Mahler. Não conto mais. Quer ver e admirar uma obra-prima do cinema? Busque no YouTube, está lá completinho. Mas se eu fosse você, tentaria encontrar em locadora ou, se der sorte, assistir no cinema em alguma sessão especial dedicada à sétima arte. Certo, também tive a mesma dúvida: quais as outras seis mesmo? Arquitetura, escultura, pintura, gravura, música e coreografia, pronto, respondido. Coisas do século 18, do Século das Luzes. Já pensou sentar em um bar com John Locke, Voltaire, Rousseau, Montesquieu – este, deveria ser (re) lido por todos que almejam poder, continua atualíssimo.

Uma coisa que me impressiona na tecnologia é sua face burra. Hoje abri minha caixa de e-mails e além daqueles que realmente me interessavam recebi uma lista de pedidos e “presentes”. Certo cidadão sei lá de onde me oferece, em um português de tradutor, alguns milhões de dólares assim do nada, me cabendo apenas abrir uma conta conjunta para que ele, na maior boa-fé possa promover evasão de divisas de seu país em miséria e doença. Tão bonzinho! Três bancos me pedem para recadastrar senha, pois se não o fizer danço, perco conta. “Estranhamente” nunca tive conta nas instituições que me pedem atualização ou, às vezes, me compram algum título sob ameaça de protesto, cobrança judicial. Até o Leão do IR já me cobrou dados por e-mail.

Alguns de hoje cedo: “Perca peso sem esforço”, “Sou um amigo seu vc (sic) está sendo enganado”, “Como se livrar de Multas”, “Seu pedido de compras está em anexo”, e alguém me mandou os “dados de um orçamento urgente”. Outros querem te pegar pelo ego: “Queria corresponder com você, sou loira, alta, inteligente, resolvida financeiramente. Não é aventura é compromisso sério”. Ah vá! Olha só, acabo de receber outro de um Omar Toure Arabiya – a grana está, segundo ele, no Bank of Africa BOA Ouagadougou Burkina Faso West África –, quero não. Alguém se habilita? Esse povo tem tempo.

Queria um filtro de spam mais poderoso. Fico na minha, paro com a mão no queixo e fico a ouvir passarinho e vento. Borboletas me distraem facilmente, as sigo com olhar por horas. Aí, quando João me visitar resolverá o engastalho de tanto lixo eletrônico. Tranquilo e ligeiro, como sempre, para meu sossego cibernético.

Quanto aos passarinhos, estes não eram spam e cantam, alegrando meu dia em frenética sinfonia.







Jornal Correio 17 janeiro 2016




segunda-feira, janeiro 11

Toques



Vocês já prestaram atenção na variedade de toques de celular que rolam por ai? Além do previsível e chato som do Whatsapp, cada qual escolhe como quer o toque que mais lhe agrada. Uns mais conservadores se prendem às opções do próprio aparelho e, olha, são muitas. Sons de naves espaciais ou efeitos especiais de cinema, cantos de passarinho mecânico sem graça que só. Foles, sintetizadores e até um que tenta mal e porcamente imitar som de telefone antigo, aquele preto, pesadão, muito usado como arma de crime em filmes de gângsteres.

Mas coming back to the cold cow, como bem traduziu Millôr, é tanta criatividade que chega a ser engraçado. Outro dia em viagem para visitar especial amiga. Felizes com o reencontro, seguimos debaixo de chuva fina para restaurante e colocar prosas em dia. Sem querer, me peguei prestando atenção aos sons de telefones espertos que só naquele delicioso e aconchegante espaço.

Minha amiga que já sabe muito bem como sou, paradoxalmente um atento disperso, se pôs a rir me trazendo de volta ao mundo. Mas ficaram gravados os “trimmmsss” modificados, prontos para o papel.
Lá ouvi muita chamada com som sertanejo, não só a música, mas cantado mesmo. Duplas de universitários, que nunca estudaram, bombando para todo lado. A região da cidade é tipo assim, dada a estes falsetes que, mesmo escutando pouco ou com moderação, como fumo e álcool, fazem mal a saúde. Neste caso, o Ministério da Saúde não avisa, mas deveria. Em alguma mesa, uma sonata de Mozart avisava alguém que a mãe queria lhe falar. Como sei? Ouvi a moça resmungar torcendo o nariz: — O que é dessa vez mãe?

Pois é, ainda tem disso, para cada pessoa uma música. Pouco depois, no aparelho da mesma menina, tocou um Michel Teló aos berros. Bom, acho que dá para imaginar quem estava ligando. Ouvi um “oi beemm”, dos mais melosos.

Ah, as pessoas! Acham que se elas gostam todos têm que gostar, pois não atendem de pronto. Deixam tocar o raio da música todinha e, se possível, até duas vezes e você tem que escutar a torturante seleção musical(?) alheia. Eita suplício! Em algum locais, raros, ouve-se um Led Zeppelin, um solo de Eric Clapton ou um belo blues-rock de Eddie Van Halen. Aí, sim, dá vontade de que a pessoa não atenda nunca. Well, gosto é gosto.

Barra foi caso contado por um amigo. Participando de mesa como mediador em palestra internacional sobre escorpiões, silêncio total. Do nada, toca um telefone na plateia. O toque? Som de transa das “calientes”. Apavorado, o dono do celular não conseguia acertar a tecla de volume e muito menos o desligar. Assim, aquilo ecoou por eternos instantes para susto geral. Todos os olhares se voltaram para canto da sala. Ali, encolhido e vermelho, como peru depois de duas doses fartas de cachaça, pronto para o sacrifício em véspera de Natal, um senhor de meia idade apertava tudo que podia para parar o som. Quanto mais tentava, mais alto ficavam os gritos e sussurros. Nove e meio segundos depois conseguiu.
Não corra riscos, caro amigo. Bote logo um “Jingle Bells” ou música gospel como padrão em seu celular. Se resguarde, custa nada!






Jornal Correio  10 de janeiro de 2016




Toques JC

segunda-feira, janeiro 4

Domingo na praça




Tem gente tão sistemática que se puder bate continência para geladeira General Eletric. Não que eu consiga chegar a este ponto, mas sou, de certa forma, meticuloso no meu comportar. Este comportamento se acentuou um pouco mais depois que passei a viver só. Como um cego em seu ambiente cotidiano, se trocar uma cadeira de lugar pode ocorrer tropeço. Sei onde e como guardo minhas coisas. Alguns podem me chamar de sistemático, complicado. Até ao fato de ser virginiano atribuíram meu jeito de ser. Cá para nós, acho esse papo de horóscopo uma balela. Caso tenha a ver com força gravitacional, posição das estrelas e outros corpos, pergunto: qual seria a maior e mais próxima massa a exercer alguma força sobre um recém-nascido? Respondo: a do médico e sua equipe na hora do parto. Assim, pode-se ter nascido em médico com ascendência em enfermeira ou em aparelho de luz cirúrgica da OSRAM. Este até parece nome de planeta.

O viver sozinho te obriga a criar uma rotina de sobrevivência para não pirar. Como tem menos de um ano que estou nessa, vou tratando de me ajeitar. Horário de acordar aos sábados e domingos é o mesmo. Cedo, muito cedo. Correr quatro dias por semana e academia outros três. Além de fazer bem é uma forma de socialização, mesmo conversando pouco. Assim vem sendo. Estou alegre, corro. Estou deprê, corro também ou puxo ferro para fortalecer pernas e panturrilha. Para fazer o quê? Correr mais, uai. Viciei em endorfina.

Entre novos hábitos, cultivei um aos domingos: Almoçar na Feira da Gente da Praça Sérgio Pacheco. Comida boa e preço justo, música às vezes boa, às vezes ótima, às vezes péssima. Sem problemas tudo é festa.

Dia desses, como de costume, na praça. Gente para prosear não falta. Naquele dia, estava de papo com a senhora que cata latinhas. Cansada, sentou-se em banco de concreto a meu lado. Contou de sua vida, de sua família. Em nenhum momento, senti tristeza naqueles olhos que já pousaram vista em quase tudo que se tem para olhar. A prosa animada era entrecortada por levanta ligeiro para recolher uma ou duas latinhas esquecidas em alguma mesa. A concorrência ali é brava. Enquanto dava tempo para pegar meu almoço e levar para casa, vou ficando, empurrando ao máximo estes momentos, pois sozinho, fim de semana, é assombrado. Filha de Jack, da barraquinha onde quase sempre pego comer, que conhece meu ofício, vem me chamar. Tinha um morcego pendurado na tela de um alambrado, estava rente ao chão.

Lá fui eu em pensamentos. Fui passear, ouvir música e buscar comida. Pronto, e agora um morcego. Mostram-me o coitadinho, um filhote, talvez despencado das costas da mãe em aprendizado de voo. Em pleno domingão de folga. “Finge nem ver” e “deixa prá lá” diriam alguns.

Sem chance. Há uma coisa maior dentro da gente. Lá fui eu recolher o bichinho. Com a ajuda da moça, colocamos em uma caixinha que passou a me acompanhar o resto do dia.

Já pensou se criança ou bicho vai lá mexer? Mordida e risco bravo. Está aqui em casa. Amanhã, lá no Laboratório, decido rumo. Consciência tranquila. Meu trabalho mora em mim. Sou feliz assim, pelo menos tento ser.







Jornal Correio em 03 de Janeiro de 2016



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