segunda-feira, março 27

Mensageiro

Em dor, absolutamente só, fitava com olhar parado o nada. Teve tudo. Oportunidades e fortuna. Esta ainda preservava, apenas não podia dela mais desfrutar. Hoje era incapaz de erguer o braço, alguém tinha que lhe dar comida, trocar suas vestes, banhá-lo. Olhava para tantos cuidadores com olhar cinzento. Não os conhecia, nem seus nomes sabia. Sentia a falsidade de seus sorrisos piedosos. Com clareza se via naqueles rostos que tudo sempre fora falso, dissimulado. Buscava ao redor um olhar conhecido, alguém familiar, um irmão, um sobrinho, uma ama de leite, um amor verdadeiro. Como tê-lo agora se nunca cultivou tais preciosidades? Comprara tudo e todos que queria, e eles lhe fingiam afeto. Agora, sozinho frente à imensa janela aberta era incapaz de se levantar e cerrar suas abas. O frio lhe doía os ossos. Podia gritar irritado e sabia que em segundos um bando de interesseiros bajuladores ali estaria para lhe acudir. Deu preguiça. Deixou o vento frio lhe chibatar o rosto, era até prazeroso, aliviava as dores físicas.
O entardecer estava lindo. As montanhas, os tons de vermelho, o céu em chamas. Uma lágrima quase lhe escapa dos olhos. Deixou-se ficar em dor.
Repensava a vida vazia, que passou em lampejo.
Faria tudo diferente se tivesse outra chance? Talvez não. Fora forjado assim. Impossível mudar. Perdido em devaneios quase adormeceu. Não! Dormir não! Tenho que manter lucidez. Nada de jogar tempo fora.
Tempo, era o que não tinha mais. Sim, gastou todo seu estoque com avareza, intrigas, espalhando cizânia e raiva. Gritava com todoss tudo tinha que ser exatamente como queria. E agora? Um sem vontade própria a mercê de desconhecidos e vorazes fingidos, a espera de sua partida final.
Pensamentos em abundância excessiva. Sentia além das companheiras dores, um aperto no peito magro.

Uma mão pousou em seu ombro com carinho jamais sentido. As dores de imediato sumiram, o frio vindo da janela sumiu. Prazer, algo que há muito desconhecia, sentiu.
Sem coragem de virar o rosto, de olhos bem abertos, sussurrou:
 — Quem está ai? Quem é você? 
Uma voz de pureza ímpar respondeu em tom de canto:
 — Um amigo.
— Não tenho amigos, tenho interesseiros e abutres a me rodear. 
— Bom, você fez seu caminho, a escolha sempre foi sua.
Enrijeceu em pavor. 
— Você é um anjo? 
— Já me trataram como tal. 
Sentiu-se no ar um leve sorriso em tom irônico.
 — Então é a morte que veio me buscar, embargado em medos arriscou. 
— Não, não sou a morte. Ela nunca lhe chegará pelas costas. Um dia vai ter que lhe encarar frente a frente mirá-la nos olhos, pois ali estará toda sua vida e você a verá quadro a quadro. Mas não tenha medo, pois ela apenas a cessação da vida. É sempre calma. A morte é bela e encantadora.
—Mas quem é você afinal? 
— Um amigo simplesmente, sou parte de você.
 — E está aqui por quê?
— Você me chamou mesmo sem saber. Vivi todos estes anos escondido dentro de você, mas nunca pude me manifestar. Sua ira, seu ódio por tudo e todos, me afundava cada vez mais em solidão e tristeza.
— Mas por que agora?
— A sensação de mortalidade, de que não se é eterno, de certa forma abrandou seu pensar. Até os mais distantes já arriscam de ti se aproximarem. E não me refiro aos aproveitares ou corsários com sede de vingança e posses. Refiro-me aos que realmente conseguem hoje te querer bem.
— Posso ver seu rosto?
— Você o vê todo dia, só não percebe.
— Pode ficar comigo? Há tempos não sinto tamanha paz.
— Estive e estarei sempre com você. Partiremos juntos.
— Falta muito?
— Não sei dizer, mas o que importa? Repito, a morte é bela e libertadora, nada há o que temer.
— Fica mais.
— Estou aqui, basta chamar.

Vento forte fez estrondar folha da janela em barulho ensurdecedor, amplificado pelo vazio do enorme quarto as tábuas corridas do chão pareciam balançar em ondas.
Quase se levantou de salto. Rapidez juvenil virou-se em busca de alguém. O que viu foram sombras a dançar sob a luz de uma lua, que já se fazia dona do céu.
Teria sonhado? A doença, os medicamentos estariam a lhe criar sensações?
Deixou-se ficar. Não sentia tanta dor. A pressão em seu ombro ainda estava presente e, como fonte de fresca água, escorria por todo seu corpo.
Logo entraria um séquito de cuidadores e parentes a falar alto e sem parar. Prometeu para si que sorriria para todos e não resmungaria palavra.
Tinha agora consciência de que jamais estaria sozinho.







Publicado em Uberlândia Hoje 26 de março de 2017

terça-feira, março 21

O Julgamento

Silêncio sepulcral reinava no recinto. Podia-se ouvir a respiração arranhada de alguns asmáticos ávidos por suas bombinhas, mas sem coragem de usá-la naquele lugar. Uma tosse nervosa aqui e ali. A luz atravessava o vitral mais alto e projetava turbilhão de cores e movimentos, como caleidoscópio imenso.
Fazia calor. O único ventilador não dava conta de refrescar o suficiente, na realidade ele só fazia circular o ar morno de um lado para o outro.

Um ranger de porta se fez ouvir no fundo da sala. Ninguém ousou olhar para trás, baixaram-se cabeças em reverência ao réu que naquele instante adentrava escoltado por dois policiais quase a lhe pedir desculpas pelo que faziam. O som metálico de suas botas, o tilintar de metais de suas vestes, conferiam um ar ainda mais solene ao momento.
Baixinho todos, rezavam pedindo perdão preventivo.
O próprio juiz sentia-se impossibilitado de olhar o réu nos olhos e, com gesto largo, apontou a contragosto a cadeira onde deveria se sentar para a interpelação.

— Tenha a bondade de se sentar.
Com rosto sereno, agradeceu com aceno de cabeça e em movimento ágil, ao timbre de mil sinos de igreja, atirou sua capa para a esquerda e deixou-se ficar imóvel em elegante postura.
Seguiu-se pois o interrogatório de praxe.
— Nome por favor.
— Georgius, respondeu firme sem titubear.
— Certo, mas Georgius de que?
— Como assim de que? Perguntou o réu com voz firme, porém meiga.
O juiz, um tanto sem graça, emendou: tipo sobrenome Sr. Georgius, está aqui no formulário. Nome, nome do meio, caso houver e sobrenome. Tenho que perguntar. Sabe como é a burocracia, se deixar uma campo em branco, o computar trava.
— Sei, acompanho há séculos a evolução tecnológica, mas serei franco, não me lembro de sobrenome.
— Vou colocar três pontinhos aqui no campo e ver o quê acontece.
— Funcionou! Em alegria quase infantil comemorou o juiz.
— Ocupação?
— São tantas, meritíssimo, mas para simplificar coloca aí: soldado e pronto.
— Naturalidade?
— Anatólia, na Turquia
— Uai, mas aqui diz Capadócia!
— E está correto, Capadócia é uma região de Anatólia.
Se perguntarem ao senhor onde nasceu o que responderia?
— Diria o nome da minha cidade!
— Não diria o Estado de¬ origem correto?
— É, tem lógica.
O senhor sabe o motivo pelo qual aqui está?
— Dizem que uma tal de APDD me processou por maus tratos e caça ilegal.
— E o que o senhor tem a dizer a respeito?
— Olha senhor juiz, estou no ramo há muito tempo, faço o que me pedem. Defendo mocinhas em perigo, protejo afetos de todo tipo de maldade. Um time de futebol contra a minha vontade até me adotou como símbolo. Para chegar até aqui já fui preso, torturado, humilhado e até perdi a cabeça. Mas, para tanto, tenho que seguir minha sina queira a APDD ou não. Sina, fado ou, se preferir, destino, assim tem que ser. No mais, ele e eu nos tornamos grandes amigos. Nossa imagem está associada, na realidade ao que encenamos. É um grande teatro, que está em cartaz há séculos e não pretendemos parar agora. Quantas pobres almas iriam sofrer se não tivessem a quem recorrer em aflição? E os fabricantes de camisetas e medalhinhas? Já pensou no desemprego? A crise está brava. Isso sem falar dos soldados, cavaleiros, fazendeiros e agricultores, de países como Inglaterra, Portugal, Geórgia, Lituânia, Catalunha, Sérvia, Montenegro e Etiópia; das cidades de Londres, Barcelona, Gênova, Ferrara, Régio da Calábria, Friburgo em Brisgóvia, Moscou e Beirute. Sou padroeiro de todos eles.
O senhor assume a confusão geral?

 E essa APDD – Associação de Proteção dos Direitos dos Dragões, já conversou com meu dragão para ver se lhe faço mal? Nunca. Nem nome deram ao pobre. Eu cuido, trato, vacino, levo no veterinário quando está doente, dou carinho e muita amizade e cumplicidade. Vez ou outra ensaiamos uma lutinha para ganhar a vida, onde eu o “mato”. Entendeu senhor juiz? É teatro, performance e nada mais. Já atuamos muito mais do que Deborah Kerr e Yul Brynner em o “Rei e eu”. Claro, nunca estivemos na Broadway, mas nosso palco é um astro de verdade! Meu querido amigo e companheiro estamos em cartaz há muito mais tempo. Repudio a acusação veementemente!

O Senhor juiz baixou a cabeça, avaliando o tamanho da bronca que estava em suas mãos. Firme no malhete, bateu com vigor três vezes proclamando:
— Caso encerrado! Considero o réu Georgius da Capadócia inocente e a acusação da Associação de Proteção dos Direitos dos Dragões improcedente. E tenho dito!
Sob aplausos e cantos de alegria, nosso Jorge, São Jorge, venceu mais um belo combate contra aqueles que querem que ele suma.
Salve Jorge!






Publicado em Uberlândia Hoje em 19 de março de 2017

quinta-feira, março 2

O mundo é dos loucos

O mundo é dos loucos. Bom, se não é, agem como foi se assim fosse.
Hackearam a primeira dama de plantão, a senhora Temer, e parece que o mundo vai implodir em chamas. Conte-me, que interesse temos lá em saber de conversas de alcova dessa senhora e desse senhor?
Outro senhor muito nervoso, de peruca ridícula e olhar ameaçador, comanda a maior potência bélica do planeta, possuindo sob seu dedo o botão vermelho da morte. E o Vasco provavelmente será vice outra vez.

O mundo é dos loucos e dos bem-aventurados. O Uruguai, esse mesmo que no futebol nos detonou em pleno Maracanã e calou milhares, hoje é exemplo para o mundo. A antiga “Suíça da América do século XIX foi o primeiro país a estabelecer por lei o direito ao divórcio (1907) e um dos primeiros países do mundo a estabelecer o direito das mulheres a votar.”

O mundo é dos loucos e arrogantes. Em 1973 um golpe militar jogou nosso vizinho em trevas. Dizem que as causas foram “a escassez de recursos minerais e energéticos, a carência de tecnologia e a queda do preço da lã e da carne no mercado internacional após a década de 1970.” Porém, isso felizmente passou e, a duras penas, após muitos ditadores, o país encontra a normalidade lançando-se novamente em avanços sociais e democracia plena.
Agrade uns ou horrorize a outros, o pequeno país legalizou o aborto e o consumo de maconha para uso recreativo em 2014.
Só para ilustrar “Desde a legalização do aborto no Uruguai, em dezembro de 2012, até a maio de 2013, nenhuma mulher faleceu vítima do procedimento.”

O mundo é dos loucos e dos audazes.
Da Redação Ciclo Vivo: “Nos últimos anos o Uruguai tem incentivado a produção de energia limpa. Os esforços governamentais, em parceria com empresas privadas, foram tão bem sucedidos, que o país já tem 94,5% de toda a sua energia proveniente de fontes renováveis. Mas, eles não querem parar por aí.”
O pequeno país sul-americano é um dos grandes exemplos internacionais também em redução de emissões de gases do efeito estufa. De acordo com Ramón Méndez, diretor nacional de energia, o intuito é “cortar as emissões de carbono em 88% até 2017, tendo como base os dados médios de 2009 a 2013.”

O mundo simplesmente é dos loucos, dos saudavelmente loucos.
Contam. Andando pelo centro da cidade, encontra-se com homem bem aprumado, jeito de gente tranquila, com belo sorriso nos lábios a mostrar dentes brancos de ator de novela, em luta para subir em poste.
Preocupado toma coragem em ajudar o desatinado.
— Meu amigo, vamos acalmar, o sol está quente, senta comigo ali e me conte seu problema. Por mais confuso que possa parecer tudo tem saída.
— Não estou entendendo sua aflição meu senhor, qual o motivo de tamanha preocupação?
Isso em português claro e limpo, sem tropeço em vogais ou sílabas tônicas.
— É que o senhor está querendo subir em um poste no ponto mais movimentado da cidade!
— Calma, sei o que estou fazendo, só quero comer goiaba!
— Pronto é isso. Isso é um poste e não uma goiabeira!
— Meu caro, é o seguinte. A goiaba está no meu bolso. E quer saber? Eu a como onde eu quiser!
O mundo é dos loucos. Na verdade, melhor seria que fosse assim cada um. Em sua loucura mansa, curariam o mundo. No mais, Gerais.