Silêncio sepulcral reinava no recinto. Podia-se ouvir a respiração arranhada de alguns asmáticos ávidos por suas bombinhas, mas sem coragem de usá-la naquele lugar. Uma tosse nervosa aqui e ali. A luz atravessava o vitral mais alto e projetava turbilhão de cores e movimentos, como caleidoscópio imenso.
Fazia calor. O único ventilador não dava conta de refrescar o suficiente, na realidade ele só fazia circular o ar morno de um lado para o outro.
Um ranger de porta se fez ouvir no fundo da sala. Ninguém ousou olhar para trás, baixaram-se cabeças em reverência ao réu que naquele instante adentrava escoltado por dois policiais quase a lhe pedir desculpas pelo que faziam. O som metálico de suas botas, o tilintar de metais de suas vestes, conferiam um ar ainda mais solene ao momento.
Baixinho todos, rezavam pedindo perdão preventivo.
O próprio juiz sentia-se impossibilitado de olhar o réu nos olhos e, com gesto largo, apontou a contragosto a cadeira onde deveria se sentar para a interpelação.
— Tenha a bondade de se sentar.
Com rosto sereno, agradeceu com aceno de cabeça e em movimento ágil, ao timbre de mil sinos de igreja, atirou sua capa para a esquerda e deixou-se ficar imóvel em elegante postura.
Seguiu-se pois o interrogatório de praxe.
— Nome por favor.
— Georgius, respondeu firme sem titubear.
— Certo, mas Georgius de que?
— Como assim de que? Perguntou o réu com voz firme, porém meiga.
O juiz, um tanto sem graça, emendou: tipo sobrenome Sr. Georgius, está aqui no formulário. Nome, nome do meio, caso houver e sobrenome. Tenho que perguntar. Sabe como é a burocracia, se deixar uma campo em branco, o computar trava.
— Sei, acompanho há séculos a evolução tecnológica, mas serei franco, não me lembro de sobrenome.
— Vou colocar três pontinhos aqui no campo e ver o quê acontece.
— Funcionou! Em alegria quase infantil comemorou o juiz.
— Ocupação?
— São tantas, meritíssimo, mas para simplificar coloca aí: soldado e pronto.
— Naturalidade?
— Anatólia, na Turquia
— Uai, mas aqui diz Capadócia!
— E está correto, Capadócia é uma região de Anatólia.
Se perguntarem ao senhor onde nasceu o que responderia?
— Diria o nome da minha cidade!
— Não diria o Estado de¬ origem correto?
— É, tem lógica.
O senhor sabe o motivo pelo qual aqui está?
— Dizem que uma tal de APDD me processou por maus tratos e caça ilegal.
— E o que o senhor tem a dizer a respeito?
— Olha senhor juiz, estou no ramo há muito tempo, faço o que me pedem. Defendo mocinhas em perigo, protejo afetos de todo tipo de maldade. Um time de futebol contra a minha vontade até me adotou como símbolo. Para chegar até aqui já fui preso, torturado, humilhado e até perdi a cabeça. Mas, para tanto, tenho que seguir minha sina queira a APDD ou não. Sina, fado ou, se preferir, destino, assim tem que ser. No mais, ele e eu nos tornamos grandes amigos. Nossa imagem está associada, na realidade ao que encenamos. É um grande teatro, que está em cartaz há séculos e não pretendemos parar agora. Quantas pobres almas iriam sofrer se não tivessem a quem recorrer em aflição? E os fabricantes de camisetas e medalhinhas? Já pensou no desemprego? A crise está brava. Isso sem falar dos soldados, cavaleiros, fazendeiros e agricultores, de países como Inglaterra, Portugal, Geórgia, Lituânia, Catalunha, Sérvia, Montenegro e Etiópia; das cidades de Londres, Barcelona, Gênova, Ferrara, Régio da Calábria, Friburgo em Brisgóvia, Moscou e Beirute. Sou padroeiro de todos eles.
O senhor assume a confusão geral?
E essa APDD – Associação de Proteção dos Direitos dos Dragões, já conversou com meu dragão para ver se lhe faço mal? Nunca. Nem nome deram ao pobre. Eu cuido, trato, vacino, levo no veterinário quando está doente, dou carinho e muita amizade e cumplicidade. Vez ou outra ensaiamos uma lutinha para ganhar a vida, onde eu o “mato”. Entendeu senhor juiz? É teatro, performance e nada mais. Já atuamos muito mais do que Deborah Kerr e Yul Brynner em o “Rei e eu”. Claro, nunca estivemos na Broadway, mas nosso palco é um astro de verdade! Meu querido amigo e companheiro estamos em cartaz há muito mais tempo. Repudio a acusação veementemente!
O Senhor juiz baixou a cabeça, avaliando o tamanho da bronca que estava em suas mãos. Firme no malhete, bateu com vigor três vezes proclamando:
— Caso encerrado! Considero o réu Georgius da Capadócia inocente e a acusação da Associação de Proteção dos Direitos dos Dragões improcedente. E tenho dito!
Sob aplausos e cantos de alegria, nosso Jorge, São Jorge, venceu mais um belo combate contra aqueles que querem que ele suma.
Salve Jorge!
Publicado em Uberlândia Hoje em 19 de março de 2017
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