segunda-feira, setembro 24

Arrastão




Não é surpresa para ninguém que, com o passar do tempo, a gente fica quando em vez melancólico, com saudade de uma coisa que não sabe o que é. Um trem que fica lá dentro remoendo com vontade de sair de alguma gaveta empoeirada, perdido fundo no guarda-treco da memória. Estranhamente as tais gavetas não tem etiquetas, numeração ou qualquer coisa que identifique seu conteúdo. Tem que ser busca ao acaso. Quando ando pelos labirintos de minhas cômodas repletas de lembranças, a primeira coisa que faço é soprar o pó do tempo ali acumulado por distrações frequentes.

Sigo a miúdo passo levando a mão em carinho sobre elas. Algum toque na qual busco e ela vai se fazer presente.
Noto longe, no profundo corredor, pequena luz. É ali que está o que me vem, mas não posso ficar ansioso, nem correr atrás com muita gana, pois a luz pode perceber minha aflição e, ciente de que não saberia saboreá-la com o devido cuidado, simplesmente sumiria, me deixando no escuro do "como era mesmo?"

Hoje desde cedo assim acordei. Não chegava a tristeza, nem a nada em busca arômata conhecida, mas sem identificação. Não era melancolia na acepção da palavra. Era sem nada ser. Era só isso.
Como estou em clausura forçada, ócio imposto por gente repleta de invídia gratuita - talvez nem tão gratuita assim - resolvi me deixar levar pelo silêncio e abrir as portas do corredor de gavetas. Bem ali perto, uma tênue luz mostrou a direção a seguir. Manso, segurei o puxador e mergulhei em seu conteúdo.

Durante minha infância até a adolescência passávamos pelo menos quatro meses por ano na praia. No começo, casa alugada, família junta e estrada de terra em gena de trecho até chegar ao Atlântico. A areia era minha segunda morada.

Com o passar do tempo, resolvi que ir só ou com pouca companhia era melhor ainda. Barraca, mochila, pouca grana e o mundo era nosso.
Assim foi por muito tempo.

Preocupados com as mudanças do tempo e não me refiro a chuva e vento, mas a uma escuridão malévola, que cobriu todo um país, trevas da "redentora", quando gente sumia para nunca mais, meus pais resolveram construir uma casinha simples. Delicioso abrigo a cinquenta metros da praia, em rua de pura areia e sem carros.
Mineiro de Belo Horizonte, não é necessário ser, nem consultar Oráculo de Delfos, para saber em qual estado ficava nossa casinha. Na mosca, no Espírito Santo, uai!

A esta altura a gaveta transbordava em luz e lembranças límpidas, perfumadas e repletas de sons. O quebrar das ondas em seu eterno lamber areia, as gaivotas ávidas por alguma sobra do arrastão matinal.
O dono do arrastão era Cabo Afrodísio, homem da cara amarrada, mas sempre pronto a sorriso aberto. Nossas pequenas mãos ajudavam a puxar toda manhã aquela corda imensa. Pelo peso tentávamos adivinhar a pecaria do dia. Quando dava na rede, mãos hábeis e ligeiras dos pescadores retiravam os peixes, caranguejos e camarões. Mas a grande espera era pelo bolsão final. Quando este se abria na praia era uma festa de gente e bichos.

Nós pequenos ficávamos agora de lado, para não atrapalhar os mais velhos. Em movimentação o de valor era colocado em imensos jacás feitos de corda. O que não era ali mesmo comercializado com turistas seguia para o mercado de peixe do arraial. Redes embarcadas eram levadas para outra ponta da praia, ainda havia tempo para mais um arrastão.

Nós crianças, ali parados a ver os barcos quebrados por ondas de ponta, corríamos com nossos baldes a salvar os pequenos peixes e siris abandonados na areia para morrerem sob sol escaldante ou serem comidos pelas gaivotas e guruçás famintos que, mesmo com o pisar de gente, se arriscavam fora das tocas. Todos os miúdos eram levados de volta à água.
O maior prazer estava em salvar as estrelas do mar. As recolhíamos uma a uma com especial cuidado. Mar adentro, com água até na cintura, as colocávamos de volta uma a uma, em ritual. Dava para sentir um perfume doce de flores a nos soprar, Yemanjá, tenho comigo, agradecia sorrindo o retorno de suas criaturinhas.

Dou parada no contar em respeito ao espaço, mas continuo. A gaveta estará aberta por um longo tempo, pois há muito a dizer sobre este meu paraíso.






Publicado em Jornal Diário de Uberlândia em 23 de setembro de 2018





terça-feira, setembro 18

Camafeu (Reminiscência)


Talvez os mais jovens – putz, me senti um velho agora –, aqueles que não conheceram bonde – o de Santa Tereza RJ não vale –, que não têm a mínima idéia ou no máximo ouviram falar de vídeo K7, máquina, monóculo com foto, câmara fotográfica com rolo de filme Agfa de doze, vinte quatro ou quarenta e oito poses... E principalmente, o que é pior e vem se tornando infelizmente cada vez mais comum, nunca se deram ao prazer de ler clássico de nossa e da literatura mundial... Estes talvez também não devam ter a mínima idéia do que seja um camafeu.

Vamos lá então. Camafeu vem de longe, pra lá de séculos antes de Cristo. Encontrado em escavações arqueológicas, pelo visto sempre foi um enfeite. A realeza egípcia era vaidosa ao extremo, nunca entendi o motivo de só serem pintados de perfil. Bons em invenções e construtores audazes, eram ruinzinhos em perspectiva. Ou então pediam para crianças pintarem tumbas e pirâmides como parte do ensino para se tornarem futuros arquitetos. Se foi assim, enganaram a todos que profanaram seus santuários. Doce deboche.

Geralmente camafeus são feitos em pedra preciosa, trazem delicada escultura em alto relevo. Já foi pingente, mas nossas avós os usavam em seus xales cheirando a água de lavanda como prendedores. Existem peças maravilhosas em museus mundo afora ( museu...palavra de que só de ouvir dá aperto de tristeza e nó na garganta, as cinzas já assentaram, pouco se fala do assunto mas o cheiro de fumaça ficou impregnado na memória) .

Pois não é que tempos atrás, década de oitenta ou comecinho dos noventa, em jeep emprestado da Secretaria de Estado da Saúde, cinza, ,(lá vem museu à lembrança novamente) capota de lona rasgada, queimando óleo quarenta, ao passarmos pela então tranquila Praça Tubal Vilela avistamos sujeito vendendo filhote de tamanduá, assim na cara dura. Naquela época as leis de proteção de fauna, se existiam, ninguém dava a menor bola. Hoje muita gente ainda caça e pesca ilegalmente, mas já faz com medo pois sabe que se pego for vai se dar muito mal. Naquele tempo não. Pedi para parar o projeto de sucata e desci cuspindo fogo pelas ventas. Dei uma danada de uma bronca no sujeito que ainda teve a pachorra de contar assustado me olhando que matou a mãe para comer e queria vender o filhote, tinha família com fome, vinha de um longe nordeste.
Me bateu uma vergonha sem tamanho, a pobreza levou aquele homem a um ato que para ele era normal, só queria como qualquer um sobreviver e salvar os seus.
Comprei o bichinho, ganhei um problema. Como todo bom tamanduá miúdo, acostumado estava em ficar agarrado com a mãe. Não deu outra. Já no pegar o pequenino se agarrou a mim em busca de proteção, carinho e calor. Aninhou mesmo.
Adotamos o tamanduá e passamos a revezar no carregar e alimentar.

Tereza, colega de trabalho, não demorou a batizá-lo de Camafeu.
Camafeu ficou conosco muito tempo, cresceu forte, às vezes gripava, e não tinha cerimônia em correr aquela língua gelada em quem o pegasse no colo.
Mas como tudo tem um the end, dia chegou de deixá-lo ganhar mundo. Debaixo de tempestade de choro das meninas e muito nó na garganta e falta de coragem de verter lágrimas choro nosso, entregamos Camafeu para a Florestal, esta seguramente o soltou em local apropriado. Hoje já deve ser avó ou avô, tanto trato e nunca olhamos se era macho ou fêmea, curioso isso.

Quanto à máquina mencionada lá no alto, a minha é uma Remington, não o revólver ou rifle, a máquina de escrever, sabendo que palavras são bem mais poderosas do que armas, para não perder a chance de usar um lugar-comum. Vi charge genial onde o pai escrevia em uma máquina e o filho tipo geração Y observava fascinado, certa altura não aguentou e eufórico disse: “Pai, que doido, esta máquina é tudo de bom, é só escrever que ela já imprime!”
Sinal dos tempos...






Veterinário e escritor

Republicado em Diário de Uberlândia em 16 de setembro de 2018

terça-feira, setembro 11

Setembro em cinzas






Em pleno domingo, 2 de setembro, acompanhei tudo sobre o incêndio no Museu Nacional que consumiu grande parte de nossa memória já tão pobre e desprezada. A essa altura do campeonato muito já deve ter rolado, uma semana já se passou e sei que nesse domingo 9 de setembro, dia do Médico Veterinário, quase tudo já foi dito sobre o trágico acontecimento. Me perdoem mas não posso me furtar a tocar no assunto.

Escrevi este meu desabafo no dia seguinte, pois não pude deixar de relatar a estranha dor que me incomoda tanto, como pesadelo a se repetir.

Ontem, dois de setembro, ventou muito e todo o acumulado de agosto foi gasto com força. O vendaval trouxe consigo não apenas pó/poeira, folhas secas em redemoinhos e pânico aos pequeninos emplumados, agarrados a seus ninhos e ao carinho de pais e mães passarinhos.
Vento de setembro espalhou por todo país, por nossas consciências, para nosso horror, cinzas de nossa memória. O Museu Nacional ardeu em chamas. Pedra cantada. Em tristeza acompanhei tudo pelo rádio. Não tive coragem de ver as cenas. Senti-me um pouco culpado, como quase todo brasileiro que sabe o inestimável valor de nossa história, de nossas vidas, do aço que deveria ter nos forjado gente humana.

Esse dia entrará para a triste história do Brasil. Um país que, como está, deveria ser interditado, tamanhas as mazelas assistidas em nosso cada vez mais pobre cotidiano. Um setembro que se propôs amarelo, dedicado à prevenção do suicídio, do nada assassina sua memória, sem dó nem piedade.

Viajo à Alexandria 642 a.C., quando esta foi incendiada pelo governador geral do Egito. A história joga toda culpa da tragédia em um homem só. Porém, de acordo com Ana Freitas, "O declínio da Biblioteca de Alexandria foi gradual e se deveu a algo que, infelizmente, a gente conhece bem: um corte de gastos públicos e burocracia."

O Brasil perdeu seu maior museu de história natural e poucos lastimam. Ando pela cidade e não vejo um grupo sequer comentar a tragédia. O assunto continua: futebol, eleição, dólar e mais futebol.
Penso em perguntar se alguém ouviu contar do incêndio ocorrido na antiga residência real, onde nasceu D. Pedro II, na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro. Resposta única recebida: "No Rio? Ah, então foi na favela. Aposto que foi guerra entre traficantes!"

Suspiro profundamente. Não sinto vontade de conversar. Memória? Para que lembrar? História? Para que contar? Educação? Para que educar?
Educa e perde-se o cabresto. Senhores de engenho não querem colher sua própria safra.
Ouço ao longe um cantarolar:
Se essa rua/ Se essa rua fosse minha/ Eu mandava/ Eu mandava ladrilhar/ Com pedrinhas/ Com pedrinhas de brilhante/ Para o meu/ Para o meu amor passar.
Estranhamento. Quem em dia tão triste cantaria melancólica canção? Alguém, em algum lugar, externa sua tristeza com a pirotecnia pavorosa, com gentileza e carinho. Saio à rua procurando origem. Acho não.

Literatura (arte & história) seria propagadora da infelicidade, como vaticinou Truffaut em seu Fahrenheit 451, com seus bombeiros do fogo.
O que dizer dos nazistas na Alemanha e do Partido Bolchevique de Lênin e Stalin durante a revolução russa?
A história, sempre ela, a nos lembrar dos absurdos.
Recentemente Cláudia Fusco nos relatou como o Estado Islâmico destruiu o Templo de Baal-Shamin, construído na cidade síria de Palmira, no século II a.C.
Não parou por aí. O Templo de Baalshamin e o Mosteiro de
Mar Elian, construídos há mais de 1500 anos, na cidade síria de Al Qaryatain, também vieram abaixo. E mais algumas dezenas de monumentos entraram na lista destes "libertadores".

Nós não precisamos de grupos religiosos para que nosso patrimônio cultural seja destruído. Temos a infelicidade da destruição oficial, governamental. Somos autosuficientes na matéria.
Importante contar que nas comemorações dos duzentos anos do Museu Nacional nenhum, repito, nenhum ministro de estado se dignou a comparecer. Ato este que deixa claro o que podemos esperar desses senhores do poder.

Outubro teremos eleições e sou obrigado a dizer que não vejo em nenhum candidato à presidência da república a mínima possibilidade de mudança. Estamos reféns de uma política nefasta, egoísta e covarde.
Em dois de setembro de 2018, em um estertor de um moribundo agosto, os céus do Brasil literalmente choraram cinzas de nossa história, de nosso passado, dificultando ainda mais a possibilidade de criar um futuro melhor e mais belo para todos. Eu jogo a toalha, desisto de vez. Que os céus se apiedem de nós, estúpidos humanos.






Publicado em Diário de Uberlândia em 09 de setembro de 2018

quinta-feira, setembro 6

Turismo




Muita gente brinca que o brasileiro deveria ser estudado pela NASA. Acredito que na maioria das vezes o dito em tom de brincadeira toma ares de verdade nua e crua. Temos bons e terríveis exemplos para justificar uma análise mais aprofundada de nossas condutas e fazeres. Ouvi de amigo que em um estudo científico ficaria difícil a decisão em qual tabela nos encaixar.
Contam que, em uma viagem de férias pela região das vinícolas da serra gaúcha, seguiam casal e filho miudinho em cadeirinha de segurança e tudo, em conformidade com a lei.

Visitaram os vinhedos tradicionais de Gramado, Bento Gonçalves, Canela, Caxias do Sul e Garibaldi. Como ainda tinham tempo de sobra, se aventuraram pelas belas paisagens de Flores da Cunha, Farroupilha, Pinto Bandeira e a pequena, e repleta de histórias, Entre-Ijuís.

Seria ufanismo querer comparar essa região com a Toscana, na bela Itália, mas mesmo assim as belezas naturais e o estilo europeu de ser sobrevivem fortemente aqui em nosso Brasil sul. Claro que em tour como este, turistas não conseguem ficar sem provar em cada pousada, restaurante ou recanto, o vinho da casa, produzido ali mesmo, preservando costumes ancestrais. Uva pisoada ritmicamente em tanques de pedra, contam que o bom vinho depende dos calcanhares de quem pratica a "pisa". Ali mesmo onde os cachos são espremidos o mosto é fermentado. Cada um com seu jeito e gosto. O tempo se encarrega de dar o toque final. Guardados em imensos tonéis, geralmente de carvalho, descansam em sonho tranquilo até o momento do envasilhar.
Nosso incauto se esquece de que está dirigindo e depois de algumas boas taças não tem como não ficar um pouco mais, digamos, alegre.

Numa estrada exuberante, fechada em túneis de belas árvores, que faziam do sol caleidoscópio por entre as folhas, surge ligeira curva. Pronto! No virar dá de encontro com barreira policial. Obedeceu imediatamente o sinal de parar. Encostou, abrindo o vidro, dando uma de duro:
─ Bom dia Sêo guarda!
─ Bom dia meu senhor, por favor, documentos do carro e carteira de motorista! Uma educação pouco vista.
─ Pois não, aqui estão.
O policial rodoviário, com os documentos na mão, contornou o carro, verificou placa e com sorriso sincero no rosto comentou:
─ Bá, tchê vieram de longe, apreciando o belo Rio Grande?
─ O senhor não tem ideia o quanto. Pretendemos voltar sempre.
─ Ficamos felizes. Temos muito orgulho de nossa terra. Aproveitando a parada e não querendo tomar muito tempo de seu passeio, o senhor se incomodaria de soprar em nosso etilômetro, ou bafômetro, como dizem em tua região? É simples como tomar um baita chimarrão ao contrário tché.
─ Claro, sem problema sêo guarda, com prazer - já sabendo que ia levar bronca.
Soprou com força e não deu outra. Pequena, mas significante alteração. Nada que classifique o motorista como embriagado, mas acima de 0,5 miligramas deu.
O Guarda:
─ Meu senhor, acho que temos um problema aqui. Acredito que o senhor andou provando muito de nossos vinhos. Teremos que deter o senhor.
─ Peraí - em retruco calmo. Este aparelho foi aferido pelo Inmetro? Se foi, onde está o selo e a data da avaliação?
─ Olha senhor, não sei lhe dizer, mas estes equipamentos não costumam falhar.
─ Então vamos fazer um teste. Está vendo meu bebê dormindo no banco de trás? Autorizo o senhor a fazer o teste com ele e aí vamos ver no que dá. Tudo bem?
─ Sem dúvida. Vamos sim fazer com o piá!
E assim foi. Com cuidado danado e sem acordar a criança o guarda conseguiu que o sopro fosse capturado.
─ Bá e não é que deu positivo também! Em susto, observou o rodoviário. Tens razão, este aparelho deve estar com defeito. Desculpem-me e sigam em paz. Boa viagem. Voltem sempre. O Rio Grande do Sul vos abraça.

Com pequeno aceno de despedida seguiram trecho. Até aquele momento a mulher manteve um silêncio absoluto, não muito normal em tais situações, mas ficou em um balançar de cabeça sem fim.
─ Ô mulher fica brava assim não. Eu estava tão errado em dar um pouquinho de vinho para nosso filho dormir? Iria ajudar! E não ajudou?
NASA, mande gente. Fast!







Publicado em Diário de Uberlândia em 02 de setembro de 2018