"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
terça-feira, setembro 18
Camafeu (Reminiscência)
Talvez os mais jovens – putz, me senti um velho agora –, aqueles que não conheceram bonde – o de Santa Tereza RJ não vale –, que não têm a mínima idéia ou no máximo ouviram falar de vídeo K7, máquina, monóculo com foto, câmara fotográfica com rolo de filme Agfa de doze, vinte quatro ou quarenta e oito poses... E principalmente, o que é pior e vem se tornando infelizmente cada vez mais comum, nunca se deram ao prazer de ler clássico de nossa e da literatura mundial... Estes talvez também não devam ter a mínima idéia do que seja um camafeu.
Vamos lá então. Camafeu vem de longe, pra lá de séculos antes de Cristo. Encontrado em escavações arqueológicas, pelo visto sempre foi um enfeite. A realeza egípcia era vaidosa ao extremo, nunca entendi o motivo de só serem pintados de perfil. Bons em invenções e construtores audazes, eram ruinzinhos em perspectiva. Ou então pediam para crianças pintarem tumbas e pirâmides como parte do ensino para se tornarem futuros arquitetos. Se foi assim, enganaram a todos que profanaram seus santuários. Doce deboche.
Geralmente camafeus são feitos em pedra preciosa, trazem delicada escultura em alto relevo. Já foi pingente, mas nossas avós os usavam em seus xales cheirando a água de lavanda como prendedores. Existem peças maravilhosas em museus mundo afora ( museu...palavra de que só de ouvir dá aperto de tristeza e nó na garganta, as cinzas já assentaram, pouco se fala do assunto mas o cheiro de fumaça ficou impregnado na memória) .
Pois não é que tempos atrás, década de oitenta ou comecinho dos noventa, em jeep emprestado da Secretaria de Estado da Saúde, cinza, ,(lá vem museu à lembrança novamente) capota de lona rasgada, queimando óleo quarenta, ao passarmos pela então tranquila Praça Tubal Vilela avistamos sujeito vendendo filhote de tamanduá, assim na cara dura. Naquela época as leis de proteção de fauna, se existiam, ninguém dava a menor bola. Hoje muita gente ainda caça e pesca ilegalmente, mas já faz com medo pois sabe que se pego for vai se dar muito mal. Naquele tempo não. Pedi para parar o projeto de sucata e desci cuspindo fogo pelas ventas. Dei uma danada de uma bronca no sujeito que ainda teve a pachorra de contar assustado me olhando que matou a mãe para comer e queria vender o filhote, tinha família com fome, vinha de um longe nordeste.
Me bateu uma vergonha sem tamanho, a pobreza levou aquele homem a um ato que para ele era normal, só queria como qualquer um sobreviver e salvar os seus.
Comprei o bichinho, ganhei um problema. Como todo bom tamanduá miúdo, acostumado estava em ficar agarrado com a mãe. Não deu outra. Já no pegar o pequenino se agarrou a mim em busca de proteção, carinho e calor. Aninhou mesmo.
Adotamos o tamanduá e passamos a revezar no carregar e alimentar.
Tereza, colega de trabalho, não demorou a batizá-lo de Camafeu.
Camafeu ficou conosco muito tempo, cresceu forte, às vezes gripava, e não tinha cerimônia em correr aquela língua gelada em quem o pegasse no colo.
Mas como tudo tem um the end, dia chegou de deixá-lo ganhar mundo. Debaixo de tempestade de choro das meninas e muito nó na garganta e falta de coragem de verter lágrimas choro nosso, entregamos Camafeu para a Florestal, esta seguramente o soltou em local apropriado. Hoje já deve ser avó ou avô, tanto trato e nunca olhamos se era macho ou fêmea, curioso isso.
Quanto à máquina mencionada lá no alto, a minha é uma Remington, não o revólver ou rifle, a máquina de escrever, sabendo que palavras são bem mais poderosas do que armas, para não perder a chance de usar um lugar-comum. Vi charge genial onde o pai escrevia em uma máquina e o filho tipo geração Y observava fascinado, certa altura não aguentou e eufórico disse: “Pai, que doido, esta máquina é tudo de bom, é só escrever que ela já imprime!”
Sinal dos tempos...
Veterinário e escritor
Republicado em Diário de Uberlândia em 16 de setembro de 2018
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