segunda-feira, novembro 30

Semana



Como é que você conta os dias da semana? Como diria um amigo em reposta a um “post” quando pergunto quem será que compra o Petróleo do Exército Islâmico (EI): “Todo mundo, pô! Todo mundo precisa de petróleo. Que pergunta mais besta!” Claro que no rápido ler penso que meu querido amigo de décadas foi rápido demais, pois a pergunta não se referia ao mundo árabe, mas sim ao petróleo dos poços ocupados por estes senhores da guerra e do horror. Mas e aí como você conta os dias da sua semana? Outra pergunta besta, pensaria a maioria: Uai conto como todo mundo: primeiro vem a terrível e ressaquenta segunda-feira, o dia mais odiado segundo pesquisa feita pelo International research center for absurd affairs – IRCAA, para a sigla em inglês. Ah, tal instituição foi criada agora. Depois vem a terça, maioria dorme mais cedo e os resquícios da esbórnia começam a diminuir, mas, por favor, fala mais baixo!

Pronto, a quarta chega e a semana começa de verdade, tem futebol, chegou-se ao meio e para baixo todo santo ajuda, logo se avista uma quinta e, glória ao criador, sangue de Jesus tem poder, chega a sexta novamente. É mais ou menos assim? Pode ser, pode ser. Mas que dia mesmo começa a tal semana ou as sete manhãs? No domingo ou na segunda? O dicionário nos explica:

“Primeiro dia da semana, depois de sábado e antes de segunda-feira.

“Domingo.” “Na tradição cristã, último dia da semana, consagrado ao descanso e à oração.”

Dizem que a Diretoria descansou ao sétimo dia, aí resolveram chamar de domingo esse dia.

Na verdade pouco importa, pois o domingo pode ser tudo, “consagrado ao descanso e à oração para uns”. Futebol, se tiver jogo do Galo é sagrado, churrasco e cerveja para outros. Rezem por nós.

Mas existem outras formas de se contar dias da semana. Sabemos desde que o mundo é mundo que jamais conseguiremos fechar nossas agendas de trabalho e que muito ficará para a semana vindoura. No nosso caso que trabalhamos com emergências então, não existe agenda, a mesma é o cotidiano do mundo, perigoso de Riobaldo Tatarana, assim, conto a semana com bananas, ou maçãs. Isso mesmo, frutas. Todo dia no meio da manhã enganamos a fome com uma delas, trago na segunda cinco frutas que aqui ficam guardadas. Cada dia uma que vai. Esqueço dos nomes dos dias, mas sei que estamos no quarto, quinto ou sexto contando minhas frutas.

Enfim existem mil formas de se contar os famosos cinco dias úteis, seja por cigarros fumados, noites de prazer, dívidas e/ou dia de pagamento. O importante, caro amigo, é que se curta cada um deles, pois aqui nunca se ganha tempo, cada segundo que passa é poeira de retirada e o caminho não tem atalho. “Carpe diem” poeta vivo, aproveite o dia.

Resolvida a questão da semana. Pergunto: e em previsões de horóscopo você acredita? Tenho um outro amigo que deixa de viajar se o dele der algum sinal de perigo. Sem razão, pois, na verdade, ele tem de conferir é o signo do piloto do avião, ou não?

“Eu sou de Virgem e só de imaginar me dá vertigem” aproveito e passeio “Pelas vitrines da Sloper da alma”. Não é, João Bosco?






Jornal Correio 29 de novembro de 2015




Semana

segunda-feira, novembro 23

Com “oui” ou com uai





O título aí no alto peguei no Facebook, uma alusão às duas tragédias recentes. Mariana e Paris. Dei uma de químico da observação e deixei decantar os comentários torrenciais que, como o mar de lama da Vale do ex-rio Doce, entupiram as redes, devastando tudo. Pacientemente, esperei a poeira (?) baixar um pouco e me arrisco a dizer o já dito. Não quero entrar no mérito do ranking da tragédia – qual é mais ou menos “importante”. Aqui vão apenas observações minhas que, certamente, vão provocar a ira e indignação de alguns. Sabemos que daqui a alguns dias – e serão poucos – o acontecido em São Bento, assim como lá do outro lado na cidade Luz, não passará de notícia antiga e não comoverá mais ninguém, vamos ser honestos pelo menos com a gente mesmo. Aqui obviamente não me refiro a pais, mães, irmãos e amigos, para os quais a dor será eterna.
Alguém ainda chora os mortos da boate Kiss?

Quantos ainda rezam por Aylan Kurdi? Esqueceu quem é? Aquele menino lindo morto numa praia na longínqua Turquia das “Mil e Uma Noites” – e pelo amor de Deus, não me refiro a nome de novela!
A mesma mídia que traz a tragédia é a mesma que a apaga, substituindo manchete que já não mais vende. Secam o bagaço da dor e o jogam nas nossas caras como se nada tivesse ocorrido.

Mas aqui quero mais é falar ou desabafar. Nunca em minha vida tinha visto um clima tão hostil, tão medíocre. Qual tragédia é mais importante, a nossa ou a deles? Qual a imprensa cobre mais, dá mais tempo à nossa ou à francesa? O tempo de televisão parecia coisa de campanha política, cada um tem de ter o mesmo tempo, nenhum segundo a mais do que o outro. Mediadores? Milhões de brasileiros inconformados. Quem são esses caras que logo agora aparecem para estragar nossa tragédia pessoal? O maior desastre ambiental nacional vai ser ofuscado pelas luzes de Paris? Que absurdo as cores da bandeira da França no Palácio do Planalto! E nós, em “Bleu blanc et rouge” e nem por isso sofri menos pelo nosso doce rio e sua lama assassina.

Não existe um medidor de tragédia, todas são sinônimo de sofrimento, dor profunda. Lágrimas. Uma, a de São Bento resultado de negligência, descaso, usura, ganância. A outra fruto da intolerância, do ódio. Já as vidas perdidas na lama ou na bala são idênticas.

Nós, brasileiros, nos tornamos competitivos até nisso, menos no que realmente interessa. O bem comum que se dane. A clássica frase de que “Mineiro só é solidário no câncer” serve para uma nação inteira, principalmente aqueles aculturados apenas pelas redes sociais, onde o “profundo” é de um reducionismo horripilante. Será que é falta de futebol decente? Sem futebol, sem piloto de fórmula, um de destaque, só restando os gritos de locutor imbecilizado que mora fora do Brasil?

Choro e convido a todos, por ambas as tragédias e por muitas outras já esquecidas. Rezo do meu jeito sempre por todos os Aylan Kurdi do mundo, sejam de onde forem e que se lasque o imbecil ufanismo da miséria, da morte, da dor criado – pelo visto – apenas aqui em nosso País. Somos maiores do que isso.
Termino com frase de minha filha, que, por sinal, se chama Mariana e não é mera coincidência, que escreveu em sua postagem única, pois inteligentemente não ficou dando corda para os sectários da miséria, da abjeção: “A única religião de que a humanidade precisa é o AMOR.”






Escritor e poeta do invisível


Jornal Correio em 22 de novembro de 2015




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Vigília

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Como diria Charlie Brown para Snoppy, ambos filosóficos personagens do saudoso cartunista Charles Schulz, que nos deixou há mais de 15 anos, “criador da tirinha “Peanuts”, um dos maiores fenômenos mundiais dos quadrinhos” segundo o jornal “Folha de São Paulo”. Outro dia falei de rede social, mas este infinito mundo de bites, cálculos geodésicos, PHPs, Java, além dos às vezes indecifráveis “vc”, “tb”, “naum”, “fmz”, “ahsuhaisjslaskdjlsk”, nos oferece um mundo novo de oportunidades únicas, basta saber usar.

Bom, mas deixemos para programadores e, principalmente, para educadores o assunto avaliarem e discutir onde tudo isso vai parar, do desenvolvimento de programas ao crescimento humano. Nós leigos nos limitamos a tentar usar de tão rica ferramenta da melhor maneira possível.

Voltando à vaca fria ou aos nossos carneiros, “revenouns à nous moutons”. Na tirinha mencionada antes do divagar, Charlie Brown, sempre pessimista, em suspiro reflete:
“– É, algum dia todos nós vamos morrer, Snoopy.

Ao que fiel escudeiro, o filósofo das banalidades profundas, o cãozinho Snoopy imediatamente retruca:
– Verdade, mas todos os outros dias, não.”

Conto este caso para poder contar outro que ouvi de uma amiga de longe, sem tentar atrapalhar o domingo de ninguém, pois infelizmente falar de morte aqui no ocidente, esta passagem ainda é vista com medo e reservas sendo que assim não deveria ser, como um dia diz Charles Bukowski: “Todos vamos morrer, todos nós, que circo! Isso sozinho deveria nos fazer amarmo-nos uns aos outros, mas não faz.”
Sem mais enrolação cara, ao caso enfim!

Mãe e filho cumprem a dolorosa obrigação de irem a um velório de parente distante, pouco visto, pouca relação, a última vez que toparam em vida o tempo tinha apagado lembrança. Mas fazer o quê, e lá se foram cumprir ritual. O falecido teve vida boa e morreu de morte natural morrida mesmo às vésperas de completar cem anos, nunca tinha ficado doente, nem gripizinha dessas que todos nós pegamos com frequência mesmo após o advento da vacina contra as danadas.

Sua comida foi sempre feita em banha de porco, adorava ovos e carne mal passada. Nunca abandonou sua cervejinha de fim de semana e a pinguinha diária antes do almoço. Para deixar muitos com inveja, morreu, fez a passagem, desencarnou, bateu com as dormindo e em paz. Muito rico, não deixou testamento, a família agora como de praxe ia se desintegrar em brigas pelo espólio do falecido.

Lá pelas tantas, enfarado obviamente, criança em velório é tortura, e não aguentando mais puxou a barra da saia da mãe e cabreiro sussurrou:
– A senhora já veio aqui antes?

Achando que o filho estava confuso com aquilo tudo, pois era debutante em velórios, a mãe diz que sim, várias vezes e tentou engasgada, explicar ao filho o sentido e da brevidade da vida. Mas qual, pergunta veio na lata:
– Então, você sabe se aqui tem Wi Fi. Qual é a senha?

A mãe fechou a cara horrorizada e disfarçadamente, mas rosnou:
– Respeita o defunto…

O menino com sorriso estampado no rosto, não se conteve, rumorejou eufórico:
– Tudo junto, mãe!?







Jornal Correio em 22 de novembro 2015





Vigilia

segunda-feira, novembro 16

Nove moças e um frango


Imagem da web
O ano? Não me lembro mais. Época boa, estudante morando em república, precisa mais? Apertos comuns a todos e já deles falei, mas que eram recompensados por uma vida em que a maior preocupação era fechar todas as matérias do período. Apesar de o curso ser integral, dava-se jeito de trabalhar à noite. Aulas de inglês. Puxado, mas divertido. As repúblicas faziam alegria e aborrecimento da cidade, morar vizinho de uma podia ser sinal de dor de cabeça. Sempre tivemos vizinhos muito bons e compreensivos, nos suportavam, relação harmônica.

Pois foi nesse tempo que aconteceu ótima passagem. República só de garotas. Nove de uma vez, cobiçadas, viviam cortejadas por filas imensas de estudantes vorazes em adolescência. Moravam em um prédio baixo, três ou quatro andares apenas. O apartamento delas parecia dormitório de colégio interno de freiras. Sete camas militarmente enfileiradas e, ao fundo, um beliche.

Sempre imaginava como seriam as noites ali. Lá pelas tantas, os falares dormindo, os roncos, é, acha que não? Meninas também roncam e alto às vezes. Pensa-se que cozinhar não seria problema, pois dezoito prendadas mãos estariam ali sempre alegres e dispostas a fazer almoço e jantar. Vai nessa. Pena que em nosso tempo não existia Restaurante Universitário (RU). Ali nas meninas custava sair um café. Nove de uma vez, cada uma com um gosto, cada uma com desgosto de alguma coisa. Coentro nem pensar, sal de mais, sal de menos, comida no óleo, comida na banha. Melhor era cada uma comer onde bem entendesse.

Ciclos menstruais sincronizados têm disso, convivência. Casas dos horrores de cólicas e humor tétrico, TPM voando pela janela em rosnares. Ai do moço estudante que aparecesse por lá nesse período rubro-negro do mês. Assim eram as nove meninas. Um belo dia, resolveram, depois de muita, mas muiiiita conversa, fazer um frango caipira. Uma delas trouxe de casa na roça um vivo. Começou o dilema, quem ia matar o penoso. A faca de pouco fio, como quase toda faca de república feminina, passava de mão em não.

– Não pode ter dó senão não morre!

– Eu não faço isso nunca, faço veterinária para cuidar de bichinhos e não matá-los.

– Ah sei, mas churrasco no Vila Verde você come, né!

Passa o tempo. Tentam imobilizar o frangote. Uma segurando numa asa, outra noutra e nas pernas mais duas. Seis para imobilizar, uma para sangrar. Arrancar as penas do pescoço outro sofrimento.

– Pega minha pinça de sobrancelha – gritou uma. – Tadinho…

– Já diz, não pode ter dó! Ai é que não morre nunca.

Tarde caindo, fome apertando, o galo exausto quase se matando para ter sossego. O que se via eram nove meninas descabeladas, suadas, espalhadas pelos cantos. Não deu outra, desistiram e, banho tomado, refeitas e maquiadas, faceiras foram comer galeto frito no Sobrado, felizes da vida ver os moços e serem vistas. De lá para o Pedal (D.A. da Pedagogia, Economia, Direito, Artes e Letras).

Quanto ao frango. Bom, este também se refez, trocou penas, saiu da requeima do pretenso sacrifício, mudou-se para terreiro de vizinho das meninas. De lá, toda madrugada, cantava forte atazanando-as até que formadas, foram embora cada uma para seu canto.







Jornal Correio em 15 de novembro de 2015




Nove moças e um frango

segunda-feira, novembro 9

Fim de temporada

Fim de temporada de corridas no asfalto, uma ou outra pode surgir, mas meu calendário 2015 oficial encerrou. Fechado com chave, ops, com medalha de OURO na #Udi21. Ficam algumas trilhas por fazer. Pois que venha 2016 com muito, mas muito chão.





Sincericida



Pois não é?! A gente chega a certa idade em que as coisas ficam de uma simplicidade que só. Não me refiro à idade contada em primaveras, luas, sóis, mudas de pele ou carnavais. Falo de uma era que está dentro de cada um. Conheço muito menino velho e um tantão de velho menino. Aqui, uma pausa para, pela última, vez, explicar gênero. Meninas velhas e tais estão também incluídas.

O lance é que, da mesma forma que me nego a adotar a tal nova ortografia, a questão de gênero nos escritos não me pega. Sou, sim, plenamente concordante quando diz respeito ao ser humano, suas escolhas, sua liberdade. Não me refiro aqui a essa chata linguística, mas à diferença e discriminação de escolhas pessoais e intransferíveis. Achei um absurdo negarem este direito à discussão nas escolas mornas e carregadas de preconceitos, debate vazio de bom senso, sobrou hipocrisia.

O linguista, semiólogo, filólogo, poeta, entre outras coisas, Aldo Bizzocchi, lança luz sobre o dito: “[…] há uma pitada de “politicamente correto” nessa história, já que gênero seria, supostamente, uma palavra mais “neutra”, sem conotações sexistas […]”. Sinceridade? Uma afronta à inteligência de nossas crianças que, assim, perdem uma oportunidade ímpar, em pleno século 21, de colocarem a cabecinha para pensar aberto, a entender e respeitar diferenças. Seremos lembrados como o século da caretice. Uma pena.

Explicada a minha posição em relação aos “os” e “as” definitivamente? Então, pronto. Como eu dizia, os jovens velhos são, literalmente, um pé no saco. Parecem abacate madurado embrulhado em jornal ou dentro da saca de arroz, da tulha ou ‘tuia’, aqui em nossa Minas. Sem gosto, sem sal, sem doce. Chatos precoces, se acham. Ô paciência! Vai discutir com eles Kant, Maquiavel ou Dante – aprendido no wikipédia – interpretações de arrepiar careca. Moinhos de Don Quixote, amor de Quasimodo pela cigana Esmeralda, fariam Cervantes e Victor Hugo dar piruetas no céu dos escritores.

O que vem acontecendo comigo é que peco quando em vez por excesso de sinceridade. Minha cota de sapos finalmente se esgotou. Sei que posso, às vezes, passar por mal-educado ou até grosso. Não, grosso não, mas me nego a esconder o que penso e como penso. Acontecidos errados, injustos que vejo/ouço não me calo mais: conto, defendo, denuncio publicamente. Amiga comadre, que padece do mesmo mal, recentemente me alertou que gente como a gente pode estar sujeito a um “sincericídio”, pois o ditado popular nos alerta; “o peixe morre pela boca”. Não adianta procurar no dicionário, pois é palavra criada, língua viva. O “sincericida” não é, mas pode se tornar ato dramático ou, no mínimo, injusto. A liberdade de expressão só livre se agrada, caso contrário, fadado a perseguição e inimizades.

Pagamos o preço de ser absolutamente livres; não tememos represálias nem opressão. Paz de consciência. Ah, e somos bons no que fazemos, além de modestos, é claro. Se é disso que vou morrer, me vou tranquilo, “Duela a quien duela”, mas palavras de certo caçador por nome Fernando. Quer mais? Não carece.








Jornal Correio em 07 de novembro de 2015




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terça-feira, novembro 3

Panta rei



Maravilhosa chuva de quarta passada, pena, não choveu em toda cidade, todos mereciam seu frescor revitalizante. Aos primeiros pingos grossos, podia-se notar a poeira da calçada se debatendo em agonia. Milhares de grãos de terra levantavam em minicogumelos atômicos, espalhando pó para todos os lados. Durou pouco. Logo a chuva ritmou em nota única e debruçou forte lavando chão, telhados, folhas e almas. O pó se foi enxurrada abaixo. Aos poucos, outras notas eram ouvidas; bicas d’água nos telhados, o batido da água em folhas e grama, o tamborilar em latas e baldes. Metais, cordas, sopro, percussão. A regente? A chuva. Bem-te-vis aguardavam quietinhos o poslúdio de bela sonata.

A primeira vontade foi de sair e abrir os braços sob o toró. Cheguei a tirar as sandálias e caminhar para a porta. Em outras épocas, iria direto para a chuva e ali me deixaria ficar. Parei na varanda. Me peguei olhando de um lado para outro como se estivesse prestes a cometer ato falho. Não deixou de ser, pois dei um pause na minha mais forte vontade, um dedo repressor imaginário me apontava.

Casa nova, vizinhança pouco conhecida, me deu certo receio. Explico, mudei para onde estou há pouco tempo, depois de morar quase três décadas no mesmo lugar. Como em Pasárgada, na casa que escolhi construída a gosto e jeito.

Não conto história com tristeza ou mágoa. Conto fato, como certeza da permanente mutabilidade de nossos rumos. Não sou vítima nem algoz de absolutamente nada. Sou consequência, ou parte dela. Não dominamos nem o segundo mais próximo a nós, imagina uma vida inteira.

Agora morando só em lugar diferente, respirando ares novos ainda não me sinto tão à vontade. Caminho para isso. Tempo.

Parei na pequena varanda e me satisfiz com os respingos que, em segundos, molharam minha perna, meus pés, meus pensamentos. Encostei na parede, me dei por saciado com o carinho que a fria água fazia. Afago gratuito, sem cobrança, sem pedir nada em troca.

Um beija-flor pousou em trepadeira florida que se dobrou bela bem defronte à minha porta, aproveitava sabiamente os mesmos respingos para se banhar nas folhas. De tão miúdo, um único pingo poderia lhe trazer sérios problemas, uma asinha quebrada, uma dor de cabeça imensa caso o acertasse em cheio entre os olhos. Olhos estes que, quando me dei conta, pareciam me fitar. Com curiosidade devia pensar: “Poxa, uma coisa tão grande e com medo da chuva? Ou esse humano sabe de algo que não sei?” Deu de ombros, deu de asas e bico e continuou seu banho de fazer inveja, pensamento livre de medos e solidão. Ele, pequena joia, se bastava em sua felicidade.

O ar agora cheirava, finalmente, à primavera. Outubro se vai ligeiro, as águas aguardam em algum porto o momento de desembarcar e saciar nossa sede de vida.

Nada é para sempre. Nem os sentimentos mais profundos, meras impressões do vivido, nem as mais prolongadas secas. Panta rei, tudo muda. Mesmo quando verdes musgos tudo dominarem e as roupas e casas cheirarem mofo e alguns começarem a maldizer invernada. Ovos nos mourões de cerca e rezas para Santa Clara, fica a certeza. O sol voltará a brilhar. Heráclito era o cara.







Em Jornal Correio de 1º de novembro de 2015



Panta rei