segunda-feira, abril 24

Óculos

Pronto, lá se foi o boi com a corda. É cada uma que parece duas. Tenho me aventurado muito pelo centro de nossa cidade. Voltei a sentar em praça como em pleno fim de semana, (mais essa, não se hifeniza fds), e puxar prosa com desconhecido. Vendedor de pequi veio do norte de Minas e me conta isto de peito estufado, sotaque cantado de linda terra. Montes Claros? Pergunto certeiro

E não é? Responde em pergunta. De Moc mesmo! Apelido carinhoso das paragens de gente marcante como o antropólogo e escritor Darci Ribeiro, da artista plástica Yara Tupynambá e José Dias Nunes. Sabe quem é não? Pois não é que é nosso querido Tião Carreiro, da música sertaneja de raiz autentica, sem Telós e ridículos "ai se te pego"? Tomara que este se redima no espetáculo "Bem Sertanejo – O Musical", que vem por aí.
Para compensar tem Seo Godofredo e filho Beto Guedes.
Terra de Marília Fonseca Rocha, professora, colega veterinária e uma das maiores sanitaristas na área de zoonoses que conheço e que admiro como a poucos contados nos dedos.

É também terra de Dona Nazinha, Terezinha Freire, minha avó materna. É muita gente boa, vou listar mais não, pois aí perco o fio da meada e história fica sem contar.
Prosa assim nasceu só de um perguntar pelo preço da dúzia de pequi em nossa agradável praça.

Vendedor de bilhete puxou assunto, falou do tempo dos gansos na praça e lhe contei que muitas carreiras me deram na época de estudante, quando ali cortava caminho para pegar ônibus rumo a lonjura deserta, o ermo que era o campus Umuarama.

Era cedinho que só. Deixei-me ali ficar, contando pombos, esperando loja abrir para consertar óculos. Havia rolado por cima deles noite passada ao dormir relendo Dante Alighieri. Quisera eu ser Virgílio, senhor da razão e mão segura a conduzir Dante pelas terras do purgatório e inferno.
Sem eles, meus óculos, mal conseguia observar escorpiões no biotério que me restou. Serpente então, nem de longe.
O ar fresco da manhã me permitia, mais uma vez, apreciar o acordar de uma cidade que amo de paixão.

Um casal de idosos bem idosos, atravessou praça de mãos dadas. Observei em êxtase. Crescemos enquanto cidade sem perder a beleza de cotidiano puro.

O ranger e o raspadear de portas de enrolar se abrindo me trouxe de volta.
Levantei do banco, deixando fresca sombra para trás. A fonte lá adiante ensaiava alguns acordes enquanto afinava a belas águas dançantes.
Passei rente ao lago e pude observar criança bem segura pela mãe que, lá de um alto, tentava tocar as carpas preguiçosas que, como peixes de puro cristal e ouro líquido, deslizavam ainda na sombra. Talvez andasse esperando comida, a hora do trato, cevadinhas que só.
Segui meu trecho flutuando em paz.

A loja de consertar óculos ainda não estava aberta. Encostei-me ao muro em frente, paciente. Tempo de ver gente em roda de uma outra loja logo adiane. Coloquei tento. Era o Seo Salomão, com rosto em sangue. Tinha acabado de ter sua loja assaltada e foi covardemente agredido por gente armada.
Misto de raiva, impotência e tristeza. Uma bela manhã não merecia tanta ruindade. Sua esposa vociferava e com toda razão, frente tamanha violência.
Deixei os óculos para tratamento, primeira e triste figura a entrar na ótica.
Só se falava do assalto. Preço alto estamos a pagar.
Em suspiro saí a buscar moinhos de ventos. Eu e meu Rocinante imaginário.
E lá se foi o boi com a corda. Acorda!







Publicado em Uberlândia Hoje  a 23 de Março de 2017



terça-feira, abril 11

Pescaria

As histórias são tantas que se perdem no tempo. Um acontecido, com o passar das datas vai se tornando lenda, cresce ou diminui. Conforme o contador, acrescenta-se pontos e contos. Que nem cupinzeiro, brota miúdo, um remover de terra sem de muito notar, num devagar quase morto vai tomando forma e jeito, desenvolve verruga imensa nascida do chão, acabando com pasto e tudo quanto há. Vira cidade organizada. Só quem gosta é tamanduá e cascavel. Um pra comer, outro pra moradia segura. Protege até contra descontrole de queimada que quando vem é destruição que só.

Assim, histórias nascem do andar das gentes.
Uma delas aconteceu, contam, lá pelas beiradas do Mato Grosso. Naquele tempo um só, nada de Sul e Norte, era Mato Grosso e pronto. Gigante de beleza e fartura, muita mata mesmo. Soja era nem em sonho. Terra virgem e bela.
Ali nesse pedaço do paraíso se deu o acontecido. Se foi assim de fato, difícil dizer, pois, como disse, o. tempo se encarrega de mudanças em toda banda, no corpo, nas paisagens, nos sonhos, nos contos

O rio era o Salobra, que nasce miúdo na Bodoquena, ruma feito sucuri de cristal beirando sempre a crista da muralha de pedra, indo dar longe no Miranda.

Pois sim, eram dois. Primeiro um que chegou na beira do rio com ideia de buscar peixe para a janta. De nascimento paulista e, por assim ser seu nome poucos sabiam, era tratado como Paulista por todos. O sol ainda andava torto no céu, faltava longe para se esconder no rio. Era ali que sumia tingindo de mil cores o Salobra, em festival de sem fôlego não deixar de sentir o mais duro dos homens.

Agachou Paulista sentando no calcanhar da botina, iscou meio lambari, resultado este e mais um saco, de tarrafada no meio de lufada, tinha isca pra mais de metro.
Pois ali deitou anzol. Não passou muito tempo chega de manso um conhecido do moço, que por nome ninguém chamava, mas era ali tratado de Mineiro, pois como reza a cartilha do certo/errado de lá, das Gerais tinha vindo.
Encostou em um Carandá erado. Pouca sombra mas tronco forte. Calmo, enrolou um palheiro e sem palavra de nada dizer, deu baforada funda. Virou o cigarrinho para seu lado e, atento na brasa, deu sopradinha para não apagar.
Paulista mais abaixo, peixe nada de nem beliscar.
Hora e tanto passou no silêncio, som só de bugios mata e vento.
— Se fosse você jogava essa linha mais ali no alto, tem cara de pesqueiro rico, resmungou Mineiro.
É talvez razão tivesse, observando o pé de Acuri que deitava quase relando a água.
Quem sabe uma bela Caranha não tiro dali? Tem muita fruta caindo n’água, resmungou para dentro.
Mudou ponto, bando de araras arrancou em barulho nervoso e colorido, interromperam o comer com receio.
Mineiro desceu mais um tanto e se pôs meio longe ainda a pitar observando. Passou um tempo comprido. De novo em fala pausada:
— Se fosse você saia dessa sombra e ia lá na curva perto do remanso.
Paulista já fazendo ar de desgosto, para não fazer o pau cair a folha, para lá seguiu.
Por mais três vezes Mineiro palpitava novo lugar e mudava seu ponto de observar e peixe nem sombra.

O sol buscava pouso e nenhum peixe. Foi quando Mineiro, outra vez, começou a contar novo palpite.
Paulista explodiu em raiva contida, estouro de boiada, vermelho de irritação, veia do pescoço estufada, gritou ódio:
— Ô Mineiro dos infernos, pára pelo amor de todos os santos de dar palpite! Se acha que muito sabe, por que você não vem pescar?
Mineiro olhou para um lado, olhou para o outro, ciscou o chão com a ponta da botina, suspirou mansidão.
Tirou o chapéu devagar e, olhando bem dentro do olho de Paulista, falou baixinho:
— Eu não, num tenho paciência

William H. Stutz


Publicado em Uberlândia Hoje   9 de abril de 2017