domingo, setembro 30

Hospital dos bichos

Ivan Santos,
a respeito de sua crônica “Hospital público para animais”, publicada em sua coluna em 27/9/2012, peço licença para tecer alguns comentários. Quanto a bicho ter alma é uma questão de fé, mas umbigo, gato, cachorro e quase todos outros animais carregam. Até aves e répteis têm umbigo! Só não é tão visível quanto o dos humanos. Alguns têm mais do que os outros, pois ralam o umbigo para sobreviver, enquanto outros apenas o enfeitam (enfeiam?) com adereços tribais brilhantes/coloridos. Ah! A atriz Fernanda Vasconcellos também não tem umbigo.

Talvez aqueles primeiros casais lá do paraíso não o tivessem, mas suas crias e descendência carregam a marca. Tinha cão e gato no paraíso? Questão teológico-filosófica digna de discussão em algum concílio eclesiástico a ser criado. SUS Cão/Gato também tem que pensar em passarinhos, como canário-belga e periquito australiano, e onde fica o direito dos peixes de aquário e dos furões-domésticos, hamsters e outros pets? Se, segundo o sr. Magri, cachorro também é gente, os outros bichos também são. Se não ampliarem as espécies atendidas no tal hospital, o velho porco de George Orwell promete outra revolução dos bichos.






Jornal Correio, Opinião do leitor 30/09/2012

sexta-feira, setembro 28

1956 - Parte I

Mil novecentos e cinquenta e seis. Alguém, um vulto tinha passado por ele no bar e jogado o pedacinho de papel bem dobrado quase dentro de seu copo. Olhou rápido por sobre os ombros na expectativa de ver quem era, mas um garçom esbaforido equilibrando bandeja repleta de taças, pratos e garrafas passou exatamente naquele momento. Entre eles, uma pequena ponta do casaco preto sumiu atrás das colunas centenárias do salão.

Abriu lentamente o pequeno e curioso bilhete. Em tinta azul brilhante lia-se apenas 1956, nada mais. O número fora escrito com caneta tinteiro em perfeita caligrafia. Cada algarismo que compunha a milhar era milimetricamente do mesmo tamanho, perfeitamente desenhado, como se por mãos de meticuloso artista. Capricho assim nunca havia visto. Acariciou o bilhete para sentir a textura do papel. Era liso, sem imperfeições, as bordas também perfeitas, não apresentavam o menor sinal de guilhotina, nada que lembrasse corte, parecia peça única e não parte de um bloco de notas ou caderno. Aquele pedaço tão pequeno de papel não foi recortado de folha maior, isso era certo.

Disfarçadamente como a evitar que alguém o tratasse por maluco ou pior, por pervertido, levou o papel ao nariz e o cheirou profunda e longamente. Deliciosas e levíssimas notas de bergamota, jasmim da Índia, baunilha e sândalo logo se fizeram evidentes. Outros aromas igualmente maravilhosos e indecifráveis se faziam notar e despertavam profusão de emoções, de sensações indescritivelmente boas. O bilhete certamente veio de uma mulher, uma jovem e linda mulher, poderia apostar. Mas com qual intenção? Por que de abordagem tão diferente? Não seria melhor chegar e se apresentar? E se tal ato fosse ousado demais, não bastaria sentar em mesa próxima, trocarem olhares lânguidos, insinuantes e então, como pessoas normais, flertarem até criar oportunidade de iniciarem conversa?

Qual o motivo de tanto mistério? E os números, o que poderiam significar? Qual o recado que a linda moça queria lhe passar? Já havia criado uma face, um corpo, um decote, mentalizava um vestido curto, bem cortado, colado ao corpo perfeito sob o casaco preto, única coisa que de verdade conseguira observar do vulto.

Mas e os números? Voltou a pensar, demonstrando ansiedade e uma aflição esquisita. Vamos por eliminação, tentava organizar seus pensamentos. Seria um número de telefone? Mas e o prefixo, raios! Quem sabe uma senha, mas de que e pra que? Quem sabe este seria o número de seu armário em alguma academia de ginástica sofisticada, uma deixa para ver o quanto ele era atento. Quem sabe uma placa de carro? Percorreria o estacionamento do bar ao sair para conferir. Qual nada, se assim o fosse não custava também com capricho deixar as letras iniciais. Não tinha sentido complicar tanto. Que diabos poderiam aqueles números significar? Começou a perder o encanto e a paciência.

De cabeça quente de tantas conjeturas e querendo ficar aborrecido, começou a se achar vítima de alguma brincadeira boba, sem sentido.

Chamou o garçom para pagar a conta. Enquanto esperava tomou mais um gole de seu café frio e um pouco irritado enfiou o bilhete na xícara à sua frente. Ficou por alguns segundos a olhar o restinho do líquido que, por capilaridade, lentamente subia pelos poros microscópicos do fino e alvo papel até alcançarem sua borda mais alta e, em movimento sincronizado, colar nas paredes da porcelana. Espanto. A delicada folha aos poucos se pôs misteriosamente a se dissolver até não mais deixar vestígios. Nada. Era como se nunca tivesse existido. Coçou a orelha com o dedo mindinho estranhando aquela curiosa reação química.

Balançou a xícara como uma bateia de um lado para outro, como a procurar bamburrar em diamantina lavra, preciosa joia, mas nada mais havia do bilhete. No fundo, só resto pastoso do açúcar em excesso usado a escorregar de um lado para outro como caracol sem casca, como uma albina lesma de cristal líquido. 






Publicado no Jornal Gazeta do Triângulo em 28 de Setembro de 2012







quinta-feira, setembro 27

Sonho de vida



Assim, me deixa explicar. Imagine pé de serra. Serra alta, no meio do nada. Tempos atrás quando se formava o tudo, duas placas tectônicas movidas pelo embrulhar de estômago de um planeta ainda novinho, que nem cólica de criança miúda, recém-nascido, deram por se encontrar. Deram de topar ruidosamente silenciosas, lá no profundo. Pronto. Subiu serra.

Avança 300, 400 metros dali. Começa o quintal. Daquela milenar serra corre cachoeira que vem em queda até poção fundo e azul onde refrescamos em mergulhos em dias quentes. Em noites de lua cheia, a piscina natural é perfeita para passar horas a brincar com a fria e deliciosa fonte, revigorante. De lá formando rego de bom volume, vem a nossa água de uso.

Escavamos tronco de aroeira, conduzimos água. Passa dentro da cozinha corrente e forte. Ali é canaleta de concreto, pois é a água do dia a dia.

Do beber, cozinhar, lavar. Cardumes de pequenos lambaris acostumaram a brigar com a corredeira e ali ficam batendo cauda dia todo na esperança, sempre realizada de mordiscar algum restinho. De tanto comer, engordam rápido e escorregam água abaixo e caem em bica seguindo para rego do quintal. No pequeno, mas nem tão raso pocinho formado no pé da bica, gordas e negras traíras se refestelam com sobra de lavação de pratos, do limpar frango e outros peixes, além de, hora e meia, lambaris obesos.

No meio da varanda da cozinha, imponente fogão de lenha, bem centrado. Encostado na parede por onde corre serpentina de água quente só o forno e a chaminé. Assim pode-se ficar dos dois lados e em prosa e verso passar o dia. Mesa grande de madeira centenária maciça. Espaço não falta. Prazer de gente receber.
O rego segue horta/pomar abaixo quase totalmente coberto por imensas folhas de taioba. Serpenteia rodeando pés de fruta.

Fio d’água vai até despejar limpa água em represa mais adiante.

Cães imensos na varanda da casa. Grandes, mas mansos sabem bem quem é de perigo. Se chegar em paz fazem nada. Nem agrado. Ficam olhando sem atenção, atentos.

Vigiam, protegem. À noite ouve-se ronda. Um deitado logo junto à janela do quarto, sempre aberta para a brisa fria e prateado da lua. Outro ronda dando notícia de tudo. Se quero-quero cantar longe. Os dois botam reparo, apuram faro e ouvidos. Bicho fiel.

Da varanda conto agora. Alta, rodeia a casa toda. Três lances de degrau para nela chegar. Assim a casa fica mais no tope e a vista mais bonita. Vê-se longe, até bem depois da porteira e parte da estrada. Não tem como acercar de surpresa. Alguém dá notícia. Passarinho, cachorro ou poeira. Não passa batido.
Pasto é pouco, quase nada. O suficiente para duas vaquinhas de boa linhagem e produção. Leito do gasto.
Ali se produz mais mesmo são letras, casos, histórias.

Ali nascem príncipes e princesas. Belofonte e Pégasos reúnem-se a turbilhão de personagem e povoam todos os cantos do sítio, curupiras, sacis, ninfas, sátiros e minotauros. Princesas solitárias, cavalheiros de armadura andam entre angolas, frangos caipiras, galo-índio, pavões, patos e até curicacas e seriemas amansaram de coçar.

Ali nascem todos os dias histórias de estrelas e paisagens, de gente e de bichos. Roça literária por excelência.

Em meio a tanta beleza e tantas letras, nesse mundo imaginário de calmo verde, bicho e muita água, é onde quero passar meus dias.





Publicado no Jornal Correio em 27/09/2012



quarta-feira, setembro 26

Off-line

Clara Clarice
E não foi uma das mais belas surpresas do dia? Carteiro entregar envelope volumoso. Sua caligrafia, já conhecida de outros envios me fez já saber de notícia boa. Chácara da Barra. Nome bonito de se morar deu um viajar de imaginação.
Piedade. Sentimento nobre.
Mas o melhor ainda não tinha visto. Um encanto de contos desses tamaninho, cada um mais rico do que o outro.

Mas o seu, carimbado com um primeiro lugar me encheu de orgulho de ser seu amigo.
Adorei o presente, li em alegre desassossego, todos eles. Em meio faxina de casa. Parei tudo. Um silêncio mais do que o já tão habitual me deixou em quietar absoluto para saborear um lanche literário da tarde. Prato principal? Off-line
Beijo de parabéns e de obrigado por compartilhar.


"Vaidoso, vivia nas redes sociais.
Um dia, ao se buscar no Google, teve uma crise de identidade...
Sem backups, acabou se deletando."

Clarice Villac
1º Lugar no II Concurso de microcontos de humor de Piracicaba



terça-feira, setembro 25

Adeus, Lula


Marco Antonio Villa, O Globo

A presença constante no noticiário de Luís Inácio Lula da Silva impõe a discussão sobre o papel que deveriam desempenhar os ex-presidentes. A democracia brasileira é muito jovem. Ainda não sabemos o que fazer institucionalmente com um ex-presidente.

Dos quatros que estão vivos, somente um não tem participação política mais ativa. O ideal seria que após o mandato cada um fosse cuidar do seu legado. Também poderia fazer parte do Conselho da República, que foi criado pela Constituição de 1988, mas que foi abandonado pelos governos — e, por estranho que pareça, sem que ninguém reclamasse.

Exercer tão alto cargo é o ápice da carreira de qualquer brasileiro. Continuar na arena política diminui a sua importância histórica — mesmo sabendo que alguns têm estatura bem diminuta, como José Ribamar da Costa, vulgo José Sarney, ou Fernando Collor.

No caso de Lula, o que chama a atenção é que ele não deseja simplesmente estar participando da política, o que já seria ruim. Não. Ele quer ser o dirigente máximo, uma espécie de guia genial dos povos do século XXI. É um misto de Moisés e Stalin, sem que tenhamos nenhum Mar Vermelho para atravessar e muito menos vivamos sob um regime totalitário.

As reuniões nestes quase dois anos com a presidente Dilma Rousseff são, no mínimo, constrangedoras. Lula fez questão de publicizar ao máximo todos os encontros. É um claro sinal de interferência.

E Dilma? Aceita passivamente o jugo do seu criador. Os últimos acontecimentos envolvendo as eleições municipais e o julgamento do mensalão reforçam a tese de que o PT criou a presidência dupla: um, fica no Palácio do Planalto para despachar o expediente e cuidar da máquina administrativa, funções que Dilma já desempenhava quando era responsável pela Casa Civil; outro, permanece em São Bernardo do Campo, onde passa os dias dedicado ao que gosta, às articulações políticas, e agindo como se ainda estivesse no pleno gozo do cargo de presidente da República.

Lula ainda não percebeu que a presença constante no cotidiano político está, rapidamente, desgastando o seu capital político. Até seus aliados já estão cansados. Deve ser duro ter de achar graça das mesmas metáforas, das piadas chulas, dos exemplos grotescos, da fala desconexa.

A cada dia o seu auditório é menor. Os comícios de São Paulo, Salvador, São Bernardo e Santo André, somados, não reuniram mais que 6 mil pessoas. Foram demonstrações inequívocas de que ele não mais arrebata multidões. E, em especial, o comício de Salvador é bem ilustrativo.

Foram arrebanhadas — como gado — algumas centenas de espectadores para demonstrar apoio. Ninguém estava interessado em ouvi-lo. A indiferença era evidente. Os “militantes” estavam com fome, queriam comer o lanche que ganharam e receber os 25 reais de remuneração para assistir o ato — uma espécie de bolsa-comício, mais uma criação do PT. Foi patético.

O ex-presidente deveria parar de usar a coação para impor a sua vontade. É feio. Não faça isso. Veja que não pegou bem coagir:

1. Cinco partidos para assinar uma nota defendendo-o das acusações de Marcos Valério;
2. A presidente para que fizesse uma nota oficial somente para defendê-lo de um simples artigo de jornal;
3. Ministros do STF antes do início do julgamento do mensalão. Só porque os nomeou? O senhor não sabe que quem os nomeou não foi o senhor, mas o presidente da República? O senhor já leu a Constituição?

O ex-presidente não quer admitir que seu tempo já passou. Não reconhece que, como tudo na vida, o encanto acabou. O cansaço é geral. O que ele fala, não mais se realiza. Perdeu os poderes que acreditava serem mágicos e não produto de uma sociedade despolitizada, invertebrada e de um fugaz crescimento econômico.

Claro que, para uma pessoa como Lula, com um ego inflado durante décadas por pretensos intelectuais, que o transformaram no primeiro em tudo (primeiro autêntico líder operário, líder do primeiro partido de trabalhadores etc, etc), não deve ser nada fácil cair na real. Mas, como diria um velho locutor esportivo, “não adianta chorar”. Agora suas palavras são recebidas com desdém e um sorriso irônico.

Lula foi, recentemente, chamado de deus pela então senadora Marta Suplicy. Nem na ditadura do Estado Novo alguém teve a ousadia de dizer que Getúlio Vargas era um deus. É desta forma que agem os aduladores do ex-presidente.

E ele deve adorar, não? Reforça o desprezo que sempre nutriu pela política. Pois, se é deus, para que fazer política? Neste caso, com o perdão da ousadia, se ele é deus não poderia saber das frequentes reuniões, no quarto andar do Palácio do Planalto, entre José Dirceu e Marcos Valério?

Mas, falando sério, o tempo urge, ex-presidente. Note: “ex-presidente”. Dê um tempo. Volte para São Bernardo e cumpra o que tinha prometido fazer e não fez.

Lembra? O senhor disse que não via a hora de voltar para casa, descansar e organizar no domingo um churrasco reunindo os amigos. Faça isso. Deixe de se meter em questões que não são afeitas a um ex-presidente. Dê um bom exemplo.

Pense em cuidar do seu legado, que, infelizmente para o senhor, deverá ficar maculado para sempre pelo mensalão. E lá, do alto do seu apartamento de cobertura, na Avenida Prestes Maia, poderá observar a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, onde sua história teve início.

E, se o senhor me permitir um conselho, comece a fazer um balanço sincero da sua vida política. Esqueça os bajuladores. Coloque de lado a empáfia, a soberba. Pense em um encontro com a verdade. Fará bem ao senhor e ao Brasil.



Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade de São Carlos, em São Paulo


sexta-feira, setembro 21

Cinco Dólares fora do espelho


O perfume do quarto lembrava sua infância. O quarto da empregada ficava no fundo do quintal. Era uma casa grande e quintal maior ainda. Para chegar até lá passava-se por gramado bem aparado que só terminava à sombra de uma goiabeira. Ali não nascia mais nada, era terra pura. Na época de fruta não vencia e a sombra em terra cobria-se de amarelo, a maioria ou rachada pela queda ou comida de passarinho. O cheiro de goiaba madura se perdendo era insuportável, só foi encontrar este repugnante odor anos depois quando os órgãos de saúde pública começaram a borrifar com seus canhões de fumaça o famigerado e tóxico malation, numa tentativa frustrada de acabar com mosquitos que atormentavam e continuam a adoecer o povo. Contaminou e não resolveu. Antes era a SUCAM, hoje as prefeituras, mas os venenos são outros. O tempo dirá se resolve.

Além do cheiro das goiabas apodrecendo à sombra, milhões de moscas e drosófilas , aquela mosquinha de fruteira, formavam nuvem de alvoroço quando alguém passava por perto.

Relembrou a horrível sensação de se pisar em uma goiaba das grandes, era exatamente a mesma de se pisar em cocô de cachorro. Se descalço estivesse era pior ainda, a polpa da fruta entrava meio os dedos e a vontade era de correr até a torneira e lavar tudo o mais rápido possível. Lembrou da torneira, era estranha. Brotava do nada e ficava incrustada em bloco de concreto. Sempre a gotejar. Sentiu um arrepio.
Havia também no quintal um abacateiro gigantesco. Impossível colher frutos com facilidade pois não dava para escalá-lo. Tronco de coqueiro.
Fazia-se uma vara enorme com uma lata na ponta. Apanhava verde ainda e amadurecia enrolado em jornal, abafado em caixa de papelão em pequena despensa que ficava na varanda.

As lembranças daquele tempo findo, sem saber o motivo o perturbavam naquele momento de forma sufocante.
Nunca mais visitara a casa em que nascera e não havia motivo aparente para tantos lampejos desagradáveis.
O perfume, só podia ser o perfume do quarto da empregada. Era uma mistura de aromas. Mofo, amaciante da roupa de cama. A madeira velha do armário que na verdade nem era de madeira, era daqueles compensados já empenados pela umidade. As portas fugiam de enquadramento, nunca fechavam. Notou um calço de jornal, dobrado ao máximo no pé do armário, era esse o macete para deixar a porta quieta.

A janela dava para a parede lateral de outro prédio, não tinha vista para nada, mas os sons da rua lhe chegavam altos e estridentes. Freadas bruscas, apitos de guardas de trânsito, buzinas e mais buzinas.
Aos cheiros do quarto ainda mais esse de cano de descarga da manada de carros em disparada avenidas afora.
O quarto da empregada no fundo do quintal. Quantas incursões fizera àquele nicho. Saía na quietude da noite sem fazer barulho. O cão da casa cismava em lhe fazer festa e às vezes latia de alegria, para resolver essa, levava consigo um osso de canela de boi, o açougueiro da rua sempre tinha uma para lhe presentear. Corrompia com propina óssea o cão. Seguia a desviar de goiabas e folhas secas.
Encostado na parede bem abaixo da janela do quarto, o coração a mil conseguia ouvir o radinho ligado lá dentro. Boleros talvez. Se fosse hoje em dia seria bem provável que o som fosse de televisão, de novela. Aí não haveria motivos para corromper o cão, novela hipnotiza, o mundo lá fora deixa de existir. Como taruira ia devagar subindo lento pela parede até pequeno buraco por ele feito às escondidas durante o dia com canivete.
Por aquele pequeno furo, via o paraíso. A moça geralmente sentava-se à cama cantarolando totalmente nua, quando não, envolta em sua toalha de banho.
Penteava por horas o cabelo. Depois se levantava e punha-se a se mostrar para o espelho na parede. Virava de um lado para outro, ficava de frente para a janela e dobrava o pescoço por sobre os ombros para se ver.
Era o enlevo absoluto. Exausto, pernas bambas saía de lá apenas quando ela apagava a luz.

Lembrou que este caminho foi feito por ele tantas vezes que poderia chegar ainda hoje a fazê-lo sem pestanejar e de olhos fechados.

Tinha tempo para um descansar, seu ônibus só sairia em quatro horas e o hotel, se é que poderia ser assim chamado, ficava perto da rodoviária. Tomou um banho frio não por que quisesse. Água quente não havia.
Meio vestido ainda sem camisa sentou-se distraído na beira da cama. Cabeça pesada em lento virar se viu no espelho. O rosto envelhecido, a barba rala emendava com cavanhaque grisalho, as pálpebras meio caídas lhe davam ainda mais ar de idade que não tinha, estava gasto pelo tempo. Vestiu a camisa e ainda olhando sua imagem apertou o nó da gravata. Sua magreza o assustou, estava chupado pelo tempo. Suspirando ainda conseguiu esboçar sorriso, afinal seu apelido era Abraham Lincoln, mais pela aparência do que pelos predicados, até ponta em novela de época já fizera interpretando o décimo sexto presidente norte-americano.

Foi o dublê do ator principal na cena do assassinato durante a peça Our American Cousin encenada no Teatro Ford, bem no início de sua frustrada carreira mambembe.
A moldura de madeira ovalada do espelho lhe despertou a atenção.
Centrou sua imagem o mais que pôde, fez ar de tédio disfarçado forjou sorriso sem graça, era a encenação máxima de nota de cinco dólares que ali se podia ver refletida naquele espelho de hotel de quinta. Riu, agora sonoramente, pois apesar de ser seguramente a única figura parecida com nota de cinco dólares fora de espelho no mundo, era sósia de uma cédula cuja soma nem em seu bolso havia.
Pegou trecho, hora de ir. Foi a pé até a rodoviária assim podia ver gente e ficar menos triste, menos para dentro. Tempo não era problema para ele, já havia consumido sua cota, o que viesse de agora em diante mano, era puro lucro.





21  de setembro de 2012

Iris azul

Clica nas flores para ampliar imagem, os detalhes são especiais nesta pequena e ligeira de vida flor




terça-feira, setembro 18

Pomba na cozinha

A calma do ambiente, só pode ser. Tem ninho de tudo quanto há espécie de passarinho espalhados por todos cantos da área.
Essa rolinha foi longe, quis fazer ninho em vaso de planta dentro da cozinha.
Fizemos almoço, lavamos louça, proseamos e ela nem ai prá nós.
Lerda que só.

Clica nas fotos para aumentá-las





quinta-feira, setembro 13

Alda

Como disse minha irmã Denise
Escrita da minha mãe poeta que voou ontem. Saudade sempre

24/10/1925 12/09/2012







Herança

Não trato meu texto como um tecido qualquer

os fios com os quais construo herdei de outras mulheres

antigas artesãs, irmãs de oficio

na lida dos dias enrolavam os fios

na calada das noites os teciam

adeptas da magia

silenciosas escreviam

escribas secretas

nutridas pelo vicio da poesia

tais como eu subsistiam




Alda Freire Soares de Sá

segunda-feira, setembro 10

Bilhete - Recuerdo

Sentado no canto mais escuro do bar, coçava a barba por fazer. Daquele ponto podia observar todo o ambiente. O entre e sai das gentes. O apressado engolindo cafezinho, que pelo cheiro que emanava da cafeteira prateada mergulhada em cuba d’água sempre aquecida devia ser esquentado, feito há dias talvez.

Outro, a comer lambuzado pão com molho de almôndegas vindas de travessa onde ficavam a boiar em vermelho caldo na vitrina de salgados, como estranhos seres alienígenas que ainda não foram pescados. Ali também havia ovos cozidos de cascas azuis e vermelhas, pastéis ressecados, e claro, moscas, muitas moscas.

Do seu canto observava também uma parte da movimentada rua. A porta do bar, uma moldura. Enorme boca parecia tentar engolir carros e pessoas que ao seu alcance passavam. Um quadro em movimento, mutável, tristemente dinâmico, vazio. Cinza.

Fazia um calor insuportável. Abaixou os olhos para o seu copo de cerveja, estava quente. Com as costas da mão conferiu a temperatura da garrafa, sentiu a umidade do vidro suado, mas pressentiu que o que ainda lá restava também já não estava gelado, nem fresco.

Assim mesmo tornou a encher o copo, espuma branca e abundante tomou quase o copo inteiro, uma pequena cachoeira escorregou alva pela borda e derramou pela mesa de lata, virou amarelo líquido rapidamente. Com a ponta do dedo ensaiou um desenho sem sentido com a cerveja derramada. Um círculo, algumas letras, um rio e suas curvas.

Bateu a mão no bolso da camisa procurando o maço de cigarros. Mania, parara de fumar havia muito tempo. Tamborilou no encosto da cadeira do lado uma música que nem conhecia. Ansiedade.

Buscou com os olhos alguém conhecido.

— Mais uma cerveja, por favor, tem torresmo? - Ia ficar ali um bom tempo.

Procurou no bolso o guardanapo de papel rabiscado. Era o bilhete que havia recebido no dia anterior. Entregue por um menino vendedor de flores, aquelas rosas mumificadas embrulhadas em papel celofane.

— Moço, mandaram entregar. Baixou os olhos para a encomenda um segundo e quando outra vez os ergueu o pequeno mensageiro havia sumido, mágica, não tinha para onde ir tão rápido, estranho.

Além da caligrafia bonita, do perfume que não mais se podia sentir, o que mais encantava era o beijo de batom. Vermelho vivo. Um convite ao desejo. Prometia encontro naquela mesa, na proteção da tarde quando poucos ao bar se aventuravam. Não conhecia a dona daquela caprichosa mão e de tão perfeita boca. Sonhava.

As horas avançavam, o entra e sai aumentava, a moldura da porta adquiria tons escuros, faróis agora acesos cruzavam seu campo de visão. Ninguém. Com paciência sofrida, colou o bilhete no casco da última cerveja, o vermelho do batom escorreu papel abaixo em contato com água condensada. Observou a cena sem emoção especial. Quem sabe amanhã? A solidão ainda permite sonhos.





Publicado na Gazeta do Triângulo em 07 de setembro de 2012





sexta-feira, setembro 7

Andanças



O cismar à toa nos faz cada coisa esquisita que só. Apura o senso de observação e a imaginação voa solta, como ave em rota migratória, pois, até a dormir, inventamos moda.

Recentemente fiz uma descoberta no mínimo diferente:
Manchas no asfalto. Isso mesmo, manchas de masseiras de cimento no negrume do asfalto. Acho um absurdo. O cara vai reformar alguma coisa que carece pedreiro e, em vez de providenciar caixa para misturar cimento, joga areia, brita e cal ali mesmo. Sobre o espaço público da rua, bate a enxada e revira a massa, a ser puxada casa adentro em carrinhos de mão gemedores, rodas normalmente murchas, presas a arame, sempre com seu som característico de ranger metal. Finda a obra, para felicidade geral, lá se vão os pedreiros, largando para trás as sobras de cimento que rapidamente secam ao sol.

Pois foi exatamente a observação dessas marcas da falta de educação e respeito no lidar com o espaço público que descobri beleza.

Passei a observar e a fotografar tais manchas, seus formatos e significados ocultos.
Como um navegante, comecei a descobrir mundos. Bem ali, aos meus pés, vi Pangeia a flutuar maciça em Pantalassa negra, como céu sem lua. Adiante a fragmentação do continente. Um Brasil perfeito. Oceania, mãe África, o continente berço de todos os humanos ali estava desenhada em puro concreto.

Indonésia com seus milhares de ilhas salpicadas. Itália bota. Perfeita representação da península Ibérica, toda a Europa.

Vi o Japão solto ao mar. Dos restos de reforma ou construção, uma aula de geografia ao alcance de quem quiser olhar.

Toda tarde saio agora de meu porto seguro como um navegador genovês, não a mando de reis de Espanha, mas movido pela mesma curiosidade exploratória de seus fantasmas, na busca de novos continentes de cimento, argamassa moldada a pneus de pesados carros e caminhões. Jamais sei o que irei encontrar em revoltas ruas, repletas de monstros metálicos prestes a te partir ao meio. Seus condutores, imersos em outros pensamentos, jamais se dão ao luxo de ver quem lhes cruza o caminho. Somos Moby-Dicks, baleias brancas cobiçadas por arpões de capitães loucos em fúria.

Felizmente expedições em mares urbanamente perigosos nos fazem mais atentos. Fritamos o peixe e vigiamos o gato. Um olho nos imaginários mapas criados ao acaso, outro no movimento de bólides raivosos.

Perigos à parte, sigo minha empreitada cartográfica imaginária. Fotografo um mundo que existe apenas no meu pensar e nele coloco gente, bicho e ideologias. Traço ao meu bel-prazer uma nova geopolítica do asfalto.

Faço de minhas andanças trabalho topográfico poético. Crio histórias para a população de cada mancha, crio idiomas, culturas, lendas e crenças. O infinito imaginário a meus pés. Centenas de viagens sem passaporte, destino incerto, mas com volta garantida. Assim, do nada, nasce uma aventura saborosa. Afinal, andar pelas ruas sempre é enriquecedor.

Criando/descobrindo países em manchas. Aventura para sonhadores que jamais se emendam. Incorrigíveis por natureza.

Outro dia, deitado em rede a olhar as nuvens, vi nitidamente a flutuar em azul mar céu, um Brasil perfeito. Vi Oceania, vi mãe África, o continente berço de todos os humanos, e Pangeia a flutuar maciça em Pantalassa de um azul indescritivelmente belo, como céu de maio em franco e ligeiro movimento.






Publicado no Jornal Correio em 7/09/2012




quinta-feira, setembro 6

Vereda

No seco cerrado a vereda se impõe perene. Alimenta bichos, semeia vida.
Um pouco de fresco ao aflito e quente ar que respiramos. E já se faz setembro



Clica na foto que amplia



©2012 Foto de Bia Stutz

terça-feira, setembro 4

Viva a liberdade

Hoje alguém me disse em tom de advertência para tomar cuidado com minhas posições políticas partidárias.O cara não me conhece.
O que este cidadão esquece que sou um homem Livre e de Bons Costumes portanto não cabe medo nesse peito.

Sou profissional e conheço bem meu fazer. Conquistas aqui apenas por mérito. Sem falsa modéstia domino um "pouquinho" o que faço, os bichos com os quais lido, e saúde coletiva. Viver com medo e improdutivamente não é viver, é rastejar pela vida.

Ameaças veladas não me dizem respeito, não me assustam.
Se não conseguem conviver com liberdade de expressão e diversidade de opiniões, não servem para governar.
Aqui não pica-pau, aqui é Aroeira.

Lutamos tanto para nos ver livres desse tipo de coisa.
Aos pobres de espírito, seres mesquinhos e carregados de rancor e ódio, fica aqui meu mais profundo sentimento de dó.




Ninho

Tantas peças quem nem usamos podem servir de morada para passarinhos hoje expulsos de seus habitats. A soja e a cana principalmente detonaram tanto nosso entorno que os bichos, sem ter para onde ir, migraram para cidade.
Podemos ajudar e muito oferecendo recantos de reprodução e ainda ganhamos beleza e cores com o convívio dos pequenos.
Um coité, uma cabaça, uma chaleira, uma panela de ferro.
Ajude a compensar um pouquinho tanta maldade que nossa raça está a fazer.
O prêmio? Paz de espírito.



domingo, setembro 2

Primeira vez


A maioria das primeiras vezes a gente nunca esquece, como aquela história da menina moça e seu sutiã Valisère. Outras coisas carregam essa sina. A primeira vez que se entra em um cinema para assistir ao filme censura 18 anos. A primeira cerveja tomada em público, esta faz o garoto se sentir o máximo. Doce ilusão.

Marca a vida de quase todos a primeira transa, o primeiro do que se pensava amor. Atingir a tal maior idade soa como uma carta de alforria. Só mesmo tempo para colocar a devida ordem ao, muitas das vezes, tortuoso trilheiro ao qual se dá o nome de vida.

Para compensar, o verdadeiro amor à primeira vista o qual culmina via de regra, quando correspondido é claro, com relação pura, terna e duradoura, muitas das vezes por uma vida inteira este sim nunca se esquece.

O primeiro, o segundo nascer de filhos; para isso não tem primeira vez. Pois o sentimento, a emoção é ímpar e sempre único, do primogênito ao caçula.

A primeira traição, bom em termos de traição em qualquer circunstância, seja afetiva, de amizade ou de trabalho, regra geral, quebra de confianças em todas as suas formas são quase impossíveis de esquecer.

O primeiro contato com a morte, a primeira grande perda, inesquecível e permanente dor que vai nos acompanhar eternamente. A primeira desilusão com a raça humana. Posso passar dias e dias lotando páginas com inesquecíveis primeiras vezes. Aliás, contou quantas vezes escrevi a palavra primeira? É de sinonímia difícil essa danada.

Claro que com o passar do tempo amenizam-se sentimentos, mecanismo natural de defesa a ponto de algumas virarem simples contar de caso, principalmente quando se pontua o quão imaturo se era à época. Destaco dentre tantas e tamanhas a tal primeira cerveja e a tal “traição” daquilo que se acreditava amor.

Com o andar da carruagem nada como rir de tamanhas infantilidades geralmente contadas aos sorrisos, às vezes de vergonha, de se falar do passado em roda de verdadeiros e maduros amigos e amores. Mas as boas primeiras coisas, essas não esquecemos mesmo. O primeiro emocionar com boa música. O primeiro pôr do sol nas montanhas ou no mar. A estreia em uma corrida.

Participei da 2ª Corrida do Cerrado realizada em fantástico domingo de céu de azul especial. Nunca pensei em me envolver em eventos como este. Valeu muito. Claro, não estava ali para vencer, subir em pódio coisas e tais. Nem mesmo competir era meu objetivo. Fui movido pelo simples e forte prazer em participar de algo diferente, de uma experiência nova e alegre. Não deu outra. Encontrei dezenas de pessoas que não via há anos. Ambiente alegre e descontraído, repleto de pessoas bonitas e ricas em disposição e saúde.

Fui com minha filha, também marinheira de primeira viagem nesse tipo de evento, mas corredora experiente, o que me deixou feliz absoluto. Parabéns a todos os patrocinadores e organizadores, em particular a este jornal CORREIO de Uberlândia e a uma pessoa especial, Daniel Rotelli, este moço deu sangue para que tudo saísse perfeito como de fato aconteceu. Acompanhei de longe sua angústia e ansiedade. Tudo recompensado ao final.

Quanto à experiência pessoal, foi algo inexplicável. Descobri o puro significado de “runner’s high” ou “o barato do corredor” como certa feita escreveu Duda Teixeira na “Veja”. Que porre de endorfina. Que venha logo a 3ª edição da Corrida do Cerrado. Estarei lá firme a me divertir.





Publicado no Jornal Correio em 2/009/2012