O perfume do quarto lembrava sua infância. O quarto da empregada ficava no fundo do quintal. Era uma casa grande e quintal maior ainda. Para chegar até lá passava-se por gramado bem aparado que só terminava à sombra de uma goiabeira. Ali não nascia mais nada, era terra pura. Na época de fruta não vencia e a sombra em terra cobria-se de amarelo, a maioria ou rachada pela queda ou comida de passarinho. O cheiro de goiaba madura se perdendo era insuportável, só foi encontrar este repugnante odor anos depois quando os órgãos de saúde pública começaram a borrifar com seus canhões de fumaça o famigerado e tóxico malation, numa tentativa frustrada de acabar com mosquitos que atormentavam e continuam a adoecer o povo. Contaminou e não resolveu. Antes era a SUCAM, hoje as prefeituras, mas os venenos são outros. O tempo dirá se resolve.
Além do cheiro das goiabas apodrecendo à sombra, milhões de moscas e drosófilas , aquela mosquinha de fruteira, formavam nuvem de alvoroço quando alguém passava por perto.
Relembrou a horrível sensação de se pisar em uma goiaba das grandes, era exatamente a mesma de se pisar em cocô de cachorro. Se descalço estivesse era pior ainda, a polpa da fruta entrava meio os dedos e a vontade era de correr até a torneira e lavar tudo o mais rápido possível. Lembrou da torneira, era estranha. Brotava do nada e ficava incrustada em bloco de concreto. Sempre a gotejar. Sentiu um arrepio.
Havia também no quintal um abacateiro gigantesco. Impossível colher frutos com facilidade pois não dava para escalá-lo. Tronco de coqueiro.
Fazia-se uma vara enorme com uma lata na ponta. Apanhava verde ainda e amadurecia enrolado em jornal, abafado em caixa de papelão em pequena despensa que ficava na varanda.
As lembranças daquele tempo findo, sem saber o motivo o perturbavam naquele momento de forma sufocante.
Nunca mais visitara a casa em que nascera e não havia motivo aparente para tantos lampejos desagradáveis.
O perfume, só podia ser o perfume do quarto da empregada. Era uma mistura de aromas. Mofo, amaciante da roupa de cama. A madeira velha do armário que na verdade nem era de madeira, era daqueles compensados já empenados pela umidade. As portas fugiam de enquadramento, nunca fechavam. Notou um calço de jornal, dobrado ao máximo no pé do armário, era esse o macete para deixar a porta quieta.
A janela dava para a parede lateral de outro prédio, não tinha vista para nada, mas os sons da rua lhe chegavam altos e estridentes. Freadas bruscas, apitos de guardas de trânsito, buzinas e mais buzinas.
Aos cheiros do quarto ainda mais esse de cano de descarga da manada de carros em disparada avenidas afora.
O quarto da empregada no fundo do quintal. Quantas incursões fizera àquele nicho. Saía na quietude da noite sem fazer barulho. O cão da casa cismava em lhe fazer festa e às vezes latia de alegria, para resolver essa, levava consigo um osso de canela de boi, o açougueiro da rua sempre tinha uma para lhe presentear. Corrompia com propina óssea o cão. Seguia a desviar de goiabas e folhas secas.
Encostado na parede bem abaixo da janela do quarto, o coração a mil conseguia ouvir o radinho ligado lá dentro. Boleros talvez. Se fosse hoje em dia seria bem provável que o som fosse de televisão, de novela. Aí não haveria motivos para corromper o cão, novela hipnotiza, o mundo lá fora deixa de existir. Como taruira ia devagar subindo lento pela parede até pequeno buraco por ele feito às escondidas durante o dia com canivete.
Por aquele pequeno furo, via o paraíso. A moça geralmente sentava-se à cama cantarolando totalmente nua, quando não, envolta em sua toalha de banho.
Penteava por horas o cabelo. Depois se levantava e punha-se a se mostrar para o espelho na parede. Virava de um lado para outro, ficava de frente para a janela e dobrava o pescoço por sobre os ombros para se ver.
Era o enlevo absoluto. Exausto, pernas bambas saía de lá apenas quando ela apagava a luz.
Lembrou que este caminho foi feito por ele tantas vezes que poderia chegar ainda hoje a fazê-lo sem pestanejar e de olhos fechados.
Tinha tempo para um descansar, seu ônibus só sairia em quatro horas e o hotel, se é que poderia ser assim chamado, ficava perto da rodoviária. Tomou um banho frio não por que quisesse. Água quente não havia.
Meio vestido ainda sem camisa sentou-se distraído na beira da cama. Cabeça pesada em lento virar se viu no espelho. O rosto envelhecido, a barba rala emendava com cavanhaque grisalho, as pálpebras meio caídas lhe davam ainda mais ar de idade que não tinha, estava gasto pelo tempo. Vestiu a camisa e ainda olhando sua imagem apertou o nó da gravata. Sua magreza o assustou, estava chupado pelo tempo. Suspirando ainda conseguiu esboçar sorriso, afinal seu apelido era Abraham Lincoln, mais pela aparência do que pelos predicados, até ponta em novela de época já fizera interpretando o décimo sexto presidente norte-americano.
Foi o dublê do ator principal na cena do assassinato durante a peça Our American Cousin encenada no Teatro Ford, bem no início de sua frustrada carreira mambembe.
A moldura de madeira ovalada do espelho lhe despertou a atenção.
Centrou sua imagem o mais que pôde, fez ar de tédio disfarçado forjou sorriso sem graça, era a encenação máxima de nota de cinco dólares que ali se podia ver refletida naquele espelho de hotel de quinta. Riu, agora sonoramente, pois apesar de ser seguramente a única figura parecida com nota de cinco dólares fora de espelho no mundo, era sósia de uma cédula cuja soma nem em seu bolso havia.
Pegou trecho, hora de ir. Foi a pé até a rodoviária assim podia ver gente e ficar menos triste, menos para dentro. Tempo não era problema para ele, já havia consumido sua cota, o que viesse de agora em diante mano, era puro lucro.
21 de setembro de 2012
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