Assim, me deixa explicar. Imagine pé de serra. Serra alta, no meio do nada. Tempos atrás quando se formava o tudo, duas placas tectônicas movidas pelo embrulhar de estômago de um planeta ainda novinho, que nem cólica de criança miúda, recém-nascido, deram por se encontrar. Deram de topar ruidosamente silenciosas, lá no profundo. Pronto. Subiu serra.
Avança 300, 400 metros dali. Começa o quintal. Daquela milenar serra corre cachoeira que vem em queda até poção fundo e azul onde refrescamos em mergulhos em dias quentes. Em noites de lua cheia, a piscina natural é perfeita para passar horas a brincar com a fria e deliciosa fonte, revigorante. De lá formando rego de bom volume, vem a nossa água de uso.
Escavamos tronco de aroeira, conduzimos água. Passa dentro da cozinha corrente e forte. Ali é canaleta de concreto, pois é a água do dia a dia.
Do beber, cozinhar, lavar. Cardumes de pequenos lambaris acostumaram a brigar com a corredeira e ali ficam batendo cauda dia todo na esperança, sempre realizada de mordiscar algum restinho. De tanto comer, engordam rápido e escorregam água abaixo e caem em bica seguindo para rego do quintal. No pequeno, mas nem tão raso pocinho formado no pé da bica, gordas e negras traíras se refestelam com sobra de lavação de pratos, do limpar frango e outros peixes, além de, hora e meia, lambaris obesos.
No meio da varanda da cozinha, imponente fogão de lenha, bem centrado. Encostado na parede por onde corre serpentina de água quente só o forno e a chaminé. Assim pode-se ficar dos dois lados e em prosa e verso passar o dia. Mesa grande de madeira centenária maciça. Espaço não falta. Prazer de gente receber.
O rego segue horta/pomar abaixo quase totalmente coberto por imensas folhas de taioba. Serpenteia rodeando pés de fruta.
Fio d’água vai até despejar limpa água em represa mais adiante.
Cães imensos na varanda da casa. Grandes, mas mansos sabem bem quem é de perigo. Se chegar em paz fazem nada. Nem agrado. Ficam olhando sem atenção, atentos.
Vigiam, protegem. À noite ouve-se ronda. Um deitado logo junto à janela do quarto, sempre aberta para a brisa fria e prateado da lua. Outro ronda dando notícia de tudo. Se quero-quero cantar longe. Os dois botam reparo, apuram faro e ouvidos. Bicho fiel.
Da varanda conto agora. Alta, rodeia a casa toda. Três lances de degrau para nela chegar. Assim a casa fica mais no tope e a vista mais bonita. Vê-se longe, até bem depois da porteira e parte da estrada. Não tem como acercar de surpresa. Alguém dá notícia. Passarinho, cachorro ou poeira. Não passa batido.
Pasto é pouco, quase nada. O suficiente para duas vaquinhas de boa linhagem e produção. Leito do gasto.
Ali se produz mais mesmo são letras, casos, histórias.
Ali nascem príncipes e princesas. Belofonte e Pégasos reúnem-se a turbilhão de personagem e povoam todos os cantos do sítio, curupiras, sacis, ninfas, sátiros e minotauros. Princesas solitárias, cavalheiros de armadura andam entre angolas, frangos caipiras, galo-índio, pavões, patos e até curicacas e seriemas amansaram de coçar.
Ali nascem todos os dias histórias de estrelas e paisagens, de gente e de bichos. Roça literária por excelência.
Em meio a tanta beleza e tantas letras, nesse mundo imaginário de calmo verde, bicho e muita água, é onde quero passar meus dias.
Publicado no Jornal Correio em 27/09/2012
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