sexta-feira, setembro 7

Andanças



O cismar à toa nos faz cada coisa esquisita que só. Apura o senso de observação e a imaginação voa solta, como ave em rota migratória, pois, até a dormir, inventamos moda.

Recentemente fiz uma descoberta no mínimo diferente:
Manchas no asfalto. Isso mesmo, manchas de masseiras de cimento no negrume do asfalto. Acho um absurdo. O cara vai reformar alguma coisa que carece pedreiro e, em vez de providenciar caixa para misturar cimento, joga areia, brita e cal ali mesmo. Sobre o espaço público da rua, bate a enxada e revira a massa, a ser puxada casa adentro em carrinhos de mão gemedores, rodas normalmente murchas, presas a arame, sempre com seu som característico de ranger metal. Finda a obra, para felicidade geral, lá se vão os pedreiros, largando para trás as sobras de cimento que rapidamente secam ao sol.

Pois foi exatamente a observação dessas marcas da falta de educação e respeito no lidar com o espaço público que descobri beleza.

Passei a observar e a fotografar tais manchas, seus formatos e significados ocultos.
Como um navegante, comecei a descobrir mundos. Bem ali, aos meus pés, vi Pangeia a flutuar maciça em Pantalassa negra, como céu sem lua. Adiante a fragmentação do continente. Um Brasil perfeito. Oceania, mãe África, o continente berço de todos os humanos ali estava desenhada em puro concreto.

Indonésia com seus milhares de ilhas salpicadas. Itália bota. Perfeita representação da península Ibérica, toda a Europa.

Vi o Japão solto ao mar. Dos restos de reforma ou construção, uma aula de geografia ao alcance de quem quiser olhar.

Toda tarde saio agora de meu porto seguro como um navegador genovês, não a mando de reis de Espanha, mas movido pela mesma curiosidade exploratória de seus fantasmas, na busca de novos continentes de cimento, argamassa moldada a pneus de pesados carros e caminhões. Jamais sei o que irei encontrar em revoltas ruas, repletas de monstros metálicos prestes a te partir ao meio. Seus condutores, imersos em outros pensamentos, jamais se dão ao luxo de ver quem lhes cruza o caminho. Somos Moby-Dicks, baleias brancas cobiçadas por arpões de capitães loucos em fúria.

Felizmente expedições em mares urbanamente perigosos nos fazem mais atentos. Fritamos o peixe e vigiamos o gato. Um olho nos imaginários mapas criados ao acaso, outro no movimento de bólides raivosos.

Perigos à parte, sigo minha empreitada cartográfica imaginária. Fotografo um mundo que existe apenas no meu pensar e nele coloco gente, bicho e ideologias. Traço ao meu bel-prazer uma nova geopolítica do asfalto.

Faço de minhas andanças trabalho topográfico poético. Crio histórias para a população de cada mancha, crio idiomas, culturas, lendas e crenças. O infinito imaginário a meus pés. Centenas de viagens sem passaporte, destino incerto, mas com volta garantida. Assim, do nada, nasce uma aventura saborosa. Afinal, andar pelas ruas sempre é enriquecedor.

Criando/descobrindo países em manchas. Aventura para sonhadores que jamais se emendam. Incorrigíveis por natureza.

Outro dia, deitado em rede a olhar as nuvens, vi nitidamente a flutuar em azul mar céu, um Brasil perfeito. Vi Oceania, vi mãe África, o continente berço de todos os humanos, e Pangeia a flutuar maciça em Pantalassa de um azul indescritivelmente belo, como céu de maio em franco e ligeiro movimento.






Publicado no Jornal Correio em 7/09/2012




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