Mil novecentos e cinquenta e seis. Alguém, um vulto tinha passado por ele no bar e jogado o pedacinho de papel bem dobrado quase dentro de seu copo. Olhou rápido por sobre os ombros na expectativa de ver quem era, mas um garçom esbaforido equilibrando bandeja repleta de taças, pratos e garrafas passou exatamente naquele momento. Entre eles, uma pequena ponta do casaco preto sumiu atrás das colunas centenárias do salão.
Abriu lentamente o pequeno e curioso bilhete. Em tinta azul brilhante lia-se apenas 1956, nada mais. O número fora escrito com caneta tinteiro em perfeita caligrafia. Cada algarismo que compunha a milhar era milimetricamente do mesmo tamanho, perfeitamente desenhado, como se por mãos de meticuloso artista. Capricho assim nunca havia visto. Acariciou o bilhete para sentir a textura do papel. Era liso, sem imperfeições, as bordas também perfeitas, não apresentavam o menor sinal de guilhotina, nada que lembrasse corte, parecia peça única e não parte de um bloco de notas ou caderno. Aquele pedaço tão pequeno de papel não foi recortado de folha maior, isso era certo.
Disfarçadamente como a evitar que alguém o tratasse por maluco ou pior, por pervertido, levou o papel ao nariz e o cheirou profunda e longamente. Deliciosas e levíssimas notas de bergamota, jasmim da Índia, baunilha e sândalo logo se fizeram evidentes. Outros aromas igualmente maravilhosos e indecifráveis se faziam notar e despertavam profusão de emoções, de sensações indescritivelmente boas. O bilhete certamente veio de uma mulher, uma jovem e linda mulher, poderia apostar. Mas com qual intenção? Por que de abordagem tão diferente? Não seria melhor chegar e se apresentar? E se tal ato fosse ousado demais, não bastaria sentar em mesa próxima, trocarem olhares lânguidos, insinuantes e então, como pessoas normais, flertarem até criar oportunidade de iniciarem conversa?
Qual o motivo de tanto mistério? E os números, o que poderiam significar? Qual o recado que a linda moça queria lhe passar? Já havia criado uma face, um corpo, um decote, mentalizava um vestido curto, bem cortado, colado ao corpo perfeito sob o casaco preto, única coisa que de verdade conseguira observar do vulto.
Mas e os números? Voltou a pensar, demonstrando ansiedade e uma aflição esquisita. Vamos por eliminação, tentava organizar seus pensamentos. Seria um número de telefone? Mas e o prefixo, raios! Quem sabe uma senha, mas de que e pra que? Quem sabe este seria o número de seu armário em alguma academia de ginástica sofisticada, uma deixa para ver o quanto ele era atento. Quem sabe uma placa de carro? Percorreria o estacionamento do bar ao sair para conferir. Qual nada, se assim o fosse não custava também com capricho deixar as letras iniciais. Não tinha sentido complicar tanto. Que diabos poderiam aqueles números significar? Começou a perder o encanto e a paciência.
De cabeça quente de tantas conjeturas e querendo ficar aborrecido, começou a se achar vítima de alguma brincadeira boba, sem sentido.
Chamou o garçom para pagar a conta. Enquanto esperava tomou mais um gole de seu café frio e um pouco irritado enfiou o bilhete na xícara à sua frente. Ficou por alguns segundos a olhar o restinho do líquido que, por capilaridade, lentamente subia pelos poros microscópicos do fino e alvo papel até alcançarem sua borda mais alta e, em movimento sincronizado, colar nas paredes da porcelana. Espanto. A delicada folha aos poucos se pôs misteriosamente a se dissolver até não mais deixar vestígios. Nada. Era como se nunca tivesse existido. Coçou a orelha com o dedo mindinho estranhando aquela curiosa reação química.
Balançou a xícara como uma bateia de um lado para outro, como a procurar bamburrar em diamantina lavra, preciosa joia, mas nada mais havia do bilhete. No fundo, só resto pastoso do açúcar em excesso usado a escorregar de um lado para outro como caracol sem casca, como uma albina lesma de cristal líquido.
Publicado no Jornal Gazeta do Triângulo em 28 de Setembro de 2012
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