segunda-feira, março 21

Cabelo arrepiado



Seguia caminho sem rumo certo. Puro andar, ver gente. Depois que criaram a amarela zona azul no centro da cidade ficou gostoso outra vez. Arrisco dizer que foi uma das maiores conquistas que nós, reles pedestres, recebemos ultimamente. Incluo-me pedestre, pois sinto prazer em parar carro, comprar algum tempo só para mim. Nada de coisa arranjada de visitar loja em promoção, banco pagar conta, nada disso. Compro algum tempo só para mim. Andar sem atropelo ou pressa, olhar as gentes, sorrir para um e receber em troca olhar acolhedor, às vezes, um carrancudo desvia o olhar. Problema está nele. Ligo não.

Uma mão em cuia, velha conhecida, se estende em minha direção: — Me dá uma moeda? Não determina valor. Uma moeda basta. Percebe que sou eu, recolhe ligeira a mão e solta sorriso amarelo, pois me sabe. Paro olho como quem vai dar bronca. Tiro do bolso nota de dois reais. Ajoelho e lhe entrego sussurrando em sorrisos: — Mala.

Me agradece com um levantar de ombros, como a dizer — — Fazer o quê patrão? O sorriso agora é com os olhos. Sem vergonha, sussurrei amizade. Levanto. Batendo com o nó dos dedos leve comprimento em seu joelho. Sigo, olho fachadas bonitas, infelizmente entre feiura de cartazes de propaganda. Acho ângulos, me encanto com detalhes esquecidos. Bando de curicacas passa rente a prédios. Sinto-me um privilegiado.

Compro garrafa d’água, banco de praça. Frondosa sombra. Adiante crianças brincam como antigamente pulando corda: “Suco gelado, cabelo arrepiado, qual a letra de seu namorado: A, B, C” e por aí afora vai. Percebe-se o erro proposital quando chega a letra do príncipe merecedor dos encantos/criança. Quando erra antes, mãozinha na cintura, dedo em negativa: não, não, não! Não valeu e inventa-se desculpa de corda afrouxada de propósito ou a outra não bateu direito levando ao tropeço. Pezinho com chinelinho de plástico bate irritado no chão.

Pode pensar que estou em bairro longe, sossegado. Nada, estou no Centro, em pleno dia de semana. Diminua o acesso aos carros e as pessoas voltam como abelhas, borboletas, joaninhas atraídas pelo espaço livre e pelo vento correndo, polinizando convívio.

Sonho que o centro da cidade deveria ser das pessoas. No máximo, bicicletas seriam admitidas.
Sei, os comerciantes iriam protestar, reclamar prejuízos. Será mesmo? O novo, as mudanças assustam. Vejo nosso Centro como imenso Quartier Latin sem o encantador Sena, sem a imponente Sorbonne, templo do saber. Boulevard Saint Michel lá, aqui boulevard Tubal. Mas não faz diferença. As mesas nas calçadas, as fachadas livres de cartazes, coloridas. Um café, um jornal, um copo d’água. Pode ocupar sem pressa, não carece comprar tempo. Nada de garçons aflitos, Buenos Aires.

Meu tempo, o comprado, está acabando. Dou imenso gole no bico da garrafa. A água está morna, como a calma que sinto. Existe, então, um lugar onde se pode comprar tempo. Pena que não trás de volta.
Lento caminho cantarolando adaptado: “Suco gelado, cabelo arrepiado, qual a letra de minha namorada”. A cada passo uma letra, o abecedário vai ser recitado muitas vezes. Parei longe. Nem imagino uma primeira letra.

Tempo esgotado.






Jornal Correio em 20 de Março de 2016 ( Aniversário de João Lucas)




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segunda-feira, março 14

Campanha política


Foto: Francisca Schueroff  (site na web)
 
Houve um tempo no passado que um político do interior só tinha prestígio se tivesse poder para nomear, demitir, mandar prender e soltar.” Assim começou a coluna de Ivan Santos, quarta-feira, no segundo dia de um março, normalmente, com abundantes águas a fechar um verão, poetando-me em Jobim. Sempre começo leitura do CORREIO de Uberlândia pela coluna de Ivan, pois é como o editorial que sinto falta. “Folha” e “Estadão”, sempre pelo editorial inicio. Cada um tem um sistema de ler jornal. Daí, talvez, a dificuldade em trocar de diário. Outro dia, em Brasília, comprei o “Correio Braziliense”.

Levei bom tempo para saber por onde começar. Folheei de frente para trás e de trás para frente. Como sou ambidestro, poderia ser ambisinistro, mas escolheram a direita para mandar, ao começar uma refeição sempre fico a passar garfo/faca de uma mão a outra até decidir qual corta e qual espeta. Assim me sinto sempre ao abrir jornal a mim estranho, da cidade em que estiver.

Bom, depois da coluna de Ivan, desloco para olhar para “Ponto de Vista”, mas só leio dependendo de quem assina. Pulo para a A3 e foco no “Confidencial”, para então relaxar e correr para o Revista, onde me delicio. Isto feito, pulo para o “Opinião do leitor” e bato perna pelo jornal todo. Leio horóscopo, classificados e até o “quem morreu”, tomando o cuidado de observar se lá não estou listado.

Domingo passado, falei de passagem como professor rural em escola de pequeno distrito, longe, longe. Como disse, bateu saudade de um tempo feliz. Bernard Shaw: “Reminiscências fazem alguém sentir-se deliciosamente maduro e triste”.

A coluna de Ivan me fez lembrar um acontecido naquela região onde morava. Não sei se é fato ou fita, mas o fato é que contam como sucedido, de fato. Um candidato tradicional fazia campanha pelas vilas de seu imenso município e lá pelas voltas de Estrela da Barra seguia sua comitiva. Rural Willys, Jeeps e um caminhão Ford palanque.

Foguetório na entrada da vila para juntar povo para comício. Festança de bandeiras, distribuição de camisetas e bonés e, o mais esperado, dois bois no rolete e muito chope. Gente assim juntou de tanta. Muito palavrório, promessas, chamada de palmas e gritos pelos capangas do candidato, com seus reluzentes Smith Wesson na cintura e imponentes e vistosas Winchesters nos ombros.
Seguindo discurso:
— Meu povo, se eu ganhar e conto com o voto “docêis”, vou espalhar um mundo velho de pontes em todas as estradas da região!
Uma voz na multidão: — Seu moço, aqui tem córrego mais não!
— “Não tem córrego? Então, “nois faiz uai!”- e seguiu converseiro.
— Pensa bem meu povo, hora que eu assumir a vitória, vou fazer túnel para a Mogiana fazer curva e passar aqui. Vai ficar fácil viajar e carrear produção.
A mesma voz no meio do povão:
— Uai sô, mas aqui não tem serra, nem montanha!
— Não tem ainda! “Nóis faiz”!
Toca adiante comício.
— Se eu ganhar essa política vou mandar fazer escola para a meninada toda. Ninguém fica sem aula!
A voz:
— Carece não, tem mais criança por essas bandas não, e faz tempo.
Retruco na lata:
— Não tem criança? Sem problema, nem aborrecimento. “Nóis faiz”, uai!
Foi eleito disparado.








Jornal Correio em 13 de março de 2016




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terça-feira, março 1

Controle de Aedes

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A contemplação sempre nos traz ideias, algumas factíveis outras meio loucas. Geralmente estas últimas é que funcionam. Assim foi toda minha vida. Quando poderia imaginar que um programa de controle de escorpiões, implantado em uma cidade onde o escorpião não era considerado bicho perigoso, poderia vingar e transformar-se em um dos modelos de controle para nosso Brasil?

Pois é, de mirar para dentro um dia perdido no tempo, do perceber a necessidade não sentida de uma gente sendo agredida constantemente por esse bicho, nasceu nosso trabalho. Não mais nosso, e sim, um direito da população que felizmente aprendeu a cobrar por ele, perpetuando algo que lhe pertence e não pode sofrer interrupções. Fico feliz e realizado. Foi assim também com o controle da raiva canina. Quando começamos a brigar contra ela, era um Deus nos acuda. Quatro, cinco casos por semana davam entrada no Hospital Veterinário. Neste ano, completamos trinta, isso mesmo, trinta anos sem um caso sequer da doença em cão ou gato. Deu trabalho, mas como valeu à pena. Vidas salvas, missão cumprida.

Outro dia, ao entardecer ou anoitecer, não sei, pois os estertores do horário de verão são cruéis com o dia e com a noite, fazendo-os cumprir hora extra. Custa a escurecer e nunca amanhece, me peguei melancólico. De tanta picada que estava a levar, me veio uma ideia de como controlar o mosquito da dengue e, de quebra, diminuir, razoavelmente, os pernilongos comuns, cantantes de pé de ouvido.
Raquetes elétricas. Simples assim, ecologicamente corretas, não poluem e consomem faiscazinha de eletricidade ao serem carregadas na tomada. Calma, explico. Resolvi batizar de Projeto Guga meu divagar, seguindo exemplo da Polícia Federal e os nomes curiosos que dá às suas ações.

Seguinte: Uberlândia tem por volta de 300 mil domicílios, aí considero casas e apartamentos dos edifícios, cada vez mais abundantes, destruindo nossos horizontes. Vamos supor que cada domicílio destes receba uma raquete elétrica com instruções de uso e obrigação de detonar, digamos, 6 Aedes por dia. É pouco pela quantidade que temos voando para todos os lados.

Teríamos, pois a bagatela de 1,8 milhão eliminados por dia, certo? Por mês seriam 54 milhões e por ano 640 milhões bichos a menos atazanando nossas vidas. Super significativa, esta quantidade de Aedes fora de combate diminuiria, e muito, a transmissão da tríade do mal: zika, dengue, chikungunya. Além de levar atividade física para toda a população de uma vez só, diminuiríamos filas nas Unidades de Saúde e gastos com medicamentos. Todos ganham menos os mosquitos, é claro.

No varejo cada raquete dessa custa, digamos, R$ 25. Custo do Projeto Guga R$ 7,5 mil. Contudo, com uma compra grande licitada e bem fiscalizada, o custo vai cair e muito. Gasta-se mil vezes mais do que isso apenas com folhetos, explicando o que todos já sabem. Verdade, mas não fazem.

Aí, está. O projeto tem tudo para dar certo se aliado, é claro, ao básico que é acabar com água parada. Isso todo mundo já faz, ou não. Fica apenas a pergunta: quem vai colocar o guizo no pescoço do gato?







Jornal Correio de 28 de fevereiro de 2016



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