sábado, março 21

Final de partida



Nada de original no dizer, mas tenho que. Cada dia de nossas vidas um aprendizado, um susto, uma decepção, cada vez um pouco mais atento.

Um domingo. Fui assistir clássico das letras, UEC versus URT.

Tempos sem estádio visitar. Estranhamento ao ver o belo gigante do Sabiá quase às traças, a conservação exterior e de acesso um horror, bateu um calafrio. Deu uma saudade dos tempos da Dona Maria do Estádio. Cuidava do Sabiá como se fosse a casa dela. Zelosa, não deixava nada passar. Um sujinho aqui, já gritava por limpeza. Nem pombo fazia ninho na fiação exposta. Hoje, me lembrou a decadência do velho Juca Ribeiro.

O gramado não. Está impecável. Levando-se em conta os times que agora o Uberlândia Esporte enfrenta, com exceção os da capital, podemos considerá-lo o décimo segundo jogador do Verdão, pois não é fácil para a várzea, sem desmerecer ninguém, suportar a correria naquele tapete.

Falta time? Claro que sim. O pessoal está dando sangue, correndo feito louco, mas cadê investimento? Por onde andam patrocinadores de peso? Tiro o chapéu para o Café Cajubá. Este nunca abandonou o futebol local. A tão pujante Uberlândia é pobre em visão e, para variar, dão mais força para os de fora. Soube que uma grande empresa de nossa cidade patrocina um time de São Paulo. Tem base? Até em carnaval de outro estado a prefeitura já participou.

Pronto. Domingo fui assistir ao jogo. Já estava feliz com a vitória de meu Galo sobre o Cruzeiro no dia anterior e queria fechar a semana com festa dupla. Interessante como quase todos se conhecem pelo nome na pequena, mas fiel torcida. Parece encontro de amigos em churrasco.

Tinha tudo para ser um domingo normal. Enquanto aguardava em frente à bilheteria o companheiro de futebol domingueiro, sogro de minha filha e grande companhia, ao qual tive a liberdade de me convidar para acompanhá-lo, sabedor de que ele não costuma perder nem um jogo do Periquito, um pequeno corre-corre se formou à minha esquerda. Logo a ambulância dos Bombeiros chegou em sirene. Um torcedor foi ao chão de asfalto quente devido a um mal súbito e foi levado para uma UAI (Unidade de Atendimento Integrado). A notícia veio antes do início do jogo. O torcedor não resistiu e faleceu em pleno domingo de muito sol e céu azul. Fiquei muito tempo a olhar o gramado sem nada ver. Quem seria este homem? Como acordou naquela manhã? Despediu-se da mulher e filhos, vestiu a camisa de seu time e feliz foi ao jogo vibrar. Quem sabe depois comemorar uma vitória com os amigos ou tristemente encarar uma derrota? Custei a sintonizar no jogo e ter a grata satisfação de ver nosso Uberlândia Esporte vencer com placar de 2 x 1, com gol aos 47 minutos do segundo tempo.

Caro torcedor, que partiu tão precocemente, tinha 57 anos. Não o conhecia, mas acho que esta vitória deveria ser dedicada a você. Minhas condolências à família. Sim, houve um minuto de silêncio para uma pessoa que, apesar de não a ter conhecido, merece todo nosso respeito. Infelizmente, como em tantas partidas, poucos vão lembrar seu nome. Justa homenagem. Mas morrer tão cedo?

Será que ele sabia seu destino ao sair de casa, depois de tomar seu café, despedir-se da família e beijar as crianças? Sentiu em algum momento que não retornaria?

Efêmera vida.

Cada dia de nossas vidas um aprendizado, um susto, uma decepção. Cada vez um pouco mais atento e aberto a cada segundo, pois o próximo pode nem chegar.





Diário de Uberlândia 20 de março de 2020

Nove moças e um galo - reminiscências





O ano? Não me lembro mais. Época boa, estudante morando em república, precisa mais? Apertos comuns a todos e já deles falei, mas que eram recompensados por uma vida em que a maior preocupação era fechar todas as matérias do período. Apesar de o curso ser integral, dava-se jeito de trabalhar à noite. Aulas de inglês. Puxado, mas divertido. As repúblicas faziam alegria e aborrecimento da cidade, morar vizinho de uma podia ser sinal de dor de cabeça. Sempre tivemos vizinhos muito bons e compreensivos, nos suportavam, relação harmônica.

Pois foi nesse tempo que aconteceu ótima passagem. República só de garotas. Nove de uma vez, cobiçadas, viviam cortejadas por filas imensas de estudantes vorazes em adolescência. Moravam em um prédio baixo, três ou quatro andares apenas. O apartamento delas parecia dormitório de colégio interno de freiras. Sete camas militarmente enfileiradas e, ao fundo, um beliche.

Sempre imaginava como seriam as noites ali. Lá pelas tantas, os falares dormindo, os roncos, é, acha que não? Meninas também roncam e alto às vezes. Pensa-se que cozinhar não seria problema, pois dezoito prendadas mãos estariam ali sempre alegres e dispostas a fazer almoço e jantar. Vai nessa. Pena que em nosso tempo não existia Restaurante Universitário (RU). Ali nas meninas custava sair um café. Nove de uma vez, cada uma com um gosto, cada uma com desgosto de alguma coisa. Coentro nem pensar, sal de mais, sal de menos, comida no óleo, comida na banha. Melhor era cada uma comer onde bem entendesse.

Ciclos menstruais sincronizados têm disso, convivência. Casas dos horrores de cólicas e humor tétrico, TPM voando pela janela em rosnares. Ai do moço estudante que aparecesse por lá nesse período rubro-negro do mês. Assim eram as nove meninas. Um belo dia, resolveram, depois de muita, mas muiiiita conversa, fazer um frango caipira. Uma delas trouxe de casa na roça um vivo. Começou o dilema, quem ia matar o penoso. A faca de pouco fio, como quase toda faca de república feminina, passava de mão em não.

– Não pode ter dó senão não morre!
– Eu não faço isso nunca, faço veterinária para cuidar de bichinhos e não matá-los.
– Ah sei, mas churrasco no Vila Verde você come, né!
Passa o tempo. Tentam imobilizar o frangote. Uma segurando numa asa, outra noutra e nas pernas mais duas. Seis para imobilizar, uma para sangrar. Arrancar as penas do pescoço outro sofrimento.
– Pega minha pinça de sobrancelha – gritou uma. – Tadinho…
– Já diz, não pode ter dó! Aí é que não morre nunca.
Tarde caindo, fome apertando, o galo exausto quase se matando para ter sossego. O que se via eram nove meninas descabeladas, suadas, espalhadas pelos cantos. Não deu outra, desistiram e, banho tomado, refeitas e maquiadas, faceiras foram comer galeto frito no Sobrado, felizes da vida ver os moços e serem vistas. De lá para o Pedal (D.A. da Pedagogia, Economia, Direito, Artes e Letras).
Quanto ao frango. Bom, este também se refez, trocou penas, saiu da requeima do pretenso sacrifício, mudou-se para terreiro de vizinho das meninas. De lá, toda madrugada, cantava forte atazanando-as até que formadas, foram embora cada uma para seu canto.






Diário de Uberlândia  13 de março de 2020

Marcadores



Existem, sabemos, vários marcadores de vida ou do passar dela, de nossa existência. Marcadores físicos são facilmente identificáveis, embora depois do botox, do silicone e em dias de avanços da medicina, nem sempre o que vemos por fora reflete a idade cronológica. Porém, inquestionável sinal do tempo passar está dentro de cada um e este não tem como esconder, nem fugir dele. Temos em nosso corpo estruturas denominadas telômeros, do grego "parte final”:

"As extremidades dos cromossomos, como aquelas pontas de plástico dos cadarços do tênis. Eles são partes do DNA muito repetitivas e não codificantes - sua função principal é proteger o material genético que o cromossomo transporta.

Na medida em que nossas células se dividem para se multiplicar e para regenerar os tecidos e órgãos do nosso corpo, a longitude dos telômeros vai se reduzindo e, por isso, com o passar do tempo, eles vão ficando mais curtos.” - BBC News abril 2018.

Ficando mais curtos, estes marcadores biológicos do envelhecimento, vão ditando como uma ampulheta o tempo que nos resta neste plano e agendando nosso encontro com a energia maior, o Divino para quem crê ou para o nada como alguns querem acreditar, com Ele, não para acerto de contas, mas para em plenitude usufruir da eternidade. Carl Sagan nos dizia que somos poeira das estrelas, “Era o modo lírico dele de explicar nossas origens no Universo.”

Contudo, existem outros marcadores de tempo dos quais raramente nos damos conta. Podem ser músicas cantaroladas em reuniões de bons amigos, que pedem: Toca aquela do Adoniran! Ou, entre suspiros, alguém que de olhos fechados sussurra: Que saudade, me lembra Pierrot apaixonado, Fita amarela e Último desejo ou Palpite infeliz, estas do grande e eterno Noel Rosa.

Particularmente me deixo levar longe quando ouço Beatles, Pink Floyd, Led Zeppelin, Deep Purple, The Who, Elis Regina, Chico Buarque, Milton Nascimento e o pessola do Clube da Esquina ou outros gênios como Duke Ellington e seu mágico piano, de onde saiam o melhor jazz de todos os tempos. Posso ficar meses aqui lembrando marcadores: livros, quadros, peças de teatro, cheiros, viagens, amigos, gostos, paisagens, o perfume do primeiro e infantil amor, Lírio do Vale. Mas, vou ficar com um especial, lembrado por Irmãos também especiais.

Quando criança só usava calça Farwest e tênis Bamba. Eventualmente rolava um kichute e, para as ocasiões especiais, o sapato era um Vulcabrás lustroso. Dormia com a musiquinha dos cobertores Paranayba... Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar...

No inverno as casas Pernambucanas cantarolavam: não adianta bater eu não deixo você entrar... Acordava cedinho e logo tomava um banho com sabonete Gessy Lever. Lavava os cabelos com shampoo e os enxaguava com Creme Rinse.

Cabelo penteado com pente Flamengo (que nome horrível) e ajeitado com Gumex. Na adolescência o ritual do banho se encerrava com desodorante de leite de rosas e uma bela passada de perfume Lancaster, antes de colocar a camisa Volta ao mundo, engomada e tratada com anil.

O escovar de dentes era com Kolynos. No desjejum Toddy, com leite em litro de vidro da Itambé.

Na pasta de escola do Instituto de Educação e de todas as escolas públicas a cartilha Caminho Suave. Havia um estojo escolar Faber Castell, com tampa decorada com tucanos e papagaios. Alguns levavam também a caneta tinteiro Parker 51. No pulso um belo relógio de Georges Beguelin, automático!

Merenda? Pão com goiabada, cobiçada. Os cadernos tinham na contra capa as bandeiras do Brasil e de Minas, além do hino nacional. Presentes para namorada tinham que ser das lojas Slopper, senão era rompimento. Depois do almoço o sofrimento da colher de sopa de Emulsão Scott, o temido óleo de fígado de bacalhau. Aquele vidro com o homem com o peixe nas costas nos dava arrepios.

A roupa era lavada com sabão de quadro e com o já citado anil. O carro da família era uma DKW-Vemag Belcar. Antes dele foi um Simca Chambord. Paqueras. A bicicleta era uma Göricke, as Phillips eram muito caras, Irmão Ézio e depois da conquista, sorvete na sorveteria São Domingos.

Há ainda alguns lembrados pelos Irmãos/amigos Ézio, Daniel, Roni e tantos outros: Conmel, bicicletas Humner e Reileih, Geladeira Admiral Springer, Óleo de Rícino, Gelada Kibon, pílulas de vida do Dr. Ross, Óleo de Lavanda, 1,2, 1,2 Regulador Xavier... Poderíamos ficar horas aqui detalhando estes marcadores que tantas lembranças nos trazem. Contudo, encerro citando início de uma das marcantes músicas do filme Casablanca de autoria do magnífico Louis Armstrong:

“You must remember this/
A kiss is just a kiss, a sigh is just a sigh/ The fundamental things apply/
As time goes by”.

Sim meus amigos, Time goes by. Mas como valeu e ainda vale muita a pena!





Diário de Uberlândia em 3 de março de 2020

Infelicidade, TV e pescaria



Estudo recente realizado pela Universidade de Maryland, EUA, comprova que pessoas infelizes ficam mais tempo à frente da televisão. Quem sou eu para duvidar de pesquisas sérias e com base científica? Mas constatações dessa natureza me levam sempre a um devaneio.

Os tempos atuais, que daqui a pouco já serão versão beta, mudaram radicalmente nosso comportamento. Calma, sei, eu não disse nada de novo. Os perigos mudaram de endereço. Saíram dos quintais e das ruas pacatas de outrora, onde o maior risco era uma queda de muro ou de uma árvore, uma briguinha por causa de um jogo de bete ou pique bandeira, no meu caso, um tombo de carrinho de rolimã nas ladeiras ainda seguras de uma Belo Horizonte que, drumonianamente, virou retrato na parede e, estão agora vivendo lado a lado conosco em nossas casas. O mundo virtual transformou-se em campo minado, com grande poder de fogo, ameaça para nossos filhos, atraindo-os para armadilhas por vezes fatais. Paradoxalmente desenvolvemos diariamente mecanismos para patrulhar um mundo autorizado a entrar sem cerimônia em nossas alcovas.

Até o então inocente telefone virou arma de crime, e não estou me referindo às agressões cinematográficas com aqueles aparelhos pretos enormes não, falo de golpes variados praticados com o uso da invenção de Graham Bell. O isolamento familiar aumenta a olhos vistos. Raras as famílias que podem desfrutar de um almoço de domingo juntas. Não que todos não estejam em casa, mas um está no computador, outro, esse deve ser o mais infeliz, vendo televisão.

A prosa doméstica vem diminuindo. Se o filho quer falar com o pai, que mande um e-mail, ou um SMS. Viu as fotos de meu filho? Não? Estão no Instagram. O garoto está crescendo sô, tem tempo que não o vejo offline.

Até boletim escolar é virtual e pais só têm acesso se tiverem a senha. Se tiver nota vermelha fica uma semana sem computador ou sem ver televisão. Isso é que é castigo severo. Realmente as janelinhas de plasma, ficam mais tempo abertas do que as da casa, e o sol, a vida de verdade, presos do lado de fora. Também, quem liga?

Levantar da cama e correr para o quintal é coisa do passado na maioria das residências. Abrir as cortinas, deixar os sonhos ou pesadelos saírem e se dissiparem à luz do dia está cada vez mais difícil. Cá pra nós, tem coisa mais estranha do que levantar e ficar de pijama até a hora do almoço? E luz acesa de dia? Mas voltemos à televisão como indicador de infelicidade e por tabela da falta de prosa doméstica. Outro dia um amigo me contou história que demonstra que os tempos modernos estão contaminando até nós mineiros de alma simples e caipira. O caso: Dois compadres estão na barra do rio Tijuco pescando, bebendo uma cervejinha gelada e observando com atenção a boia, quando um deles diz:

- Tonho, vou me separar da minha mulher. Já faz três meses que ela não fala comigo.

O outro, após refletir por alguns momentos, lhe diz:
- Pensa bem Zé, hoje em dia é muito difícil achar uma mulher assim, com essas qualidades...

Quanta tristeza. Estes dois devem ver televisão demais da conta. Resta ainda uma dúvida a ser esclarecida pela tal pesquisa: se a felicidade leva as pessoas a ver menos TV, ou se o tempo em frente à TV leva à infelicidade.

Portanto, amigos, há esperança.





Diário de Uberlândia  em 28 de março de 2020

Psicografia



Como soco seco em vazio estômago, sobe em peristaltismo contrário e acaba na garganta como sufocante bolha de ar. O escrever. As letras mansas como gado tangido em corredor de terra, a vontade, a ideia, a vontade que conduz vem rápida. Ou se guia o gado ou o rebanho, como as palavras, se desfaz em nuvem pó, cada uma toma um rumo. Nunca mais.

Eu queria ter mais letrinhas na cabeça assim escreveria uma história que de tão grande a boiada sonora seguiria em longa fila. Das gerais das Minas ao sertão de imenso Goiás sem pedágio que a interrompesse. A caneta meu berrante, meus óculos minha visão.

De tão grande que o tropel levantaria nuvem de poeira densa. Se faria noite por seis dias, apagando estrelas por seis noites. E quando cortado o trecho e o pó em mansidão se assentasse, não haveria sujeira e tristeza, mas sim colorida e imaculada paisagem. Seria como se as mais puras das geladas brisas das montanhas em julho, lá da serra por ali fossem sopradas e a escuridão do tropel seria substituído por sol em invulgar brilho. Reinando. As gentes seriam felizes, belas e doces.

Eu queria tanto ter mais letrinhas na cabeça e o dom de juntá-las em harmônico conto. Seria conto de amor a longa história. Eu queria. O escrever sem ter lido. Estranho. Descobrir Kant, ou a saga de Tristão e sua salvadora e venenosa língua de dragão, troféu.
É como conduzir caminho vazio, sem carga. Porém o condutor se sente feliz pois para ele, seus olhos e seu corpo, a carga é farta em algo que alimenta, irá satisfazer almas.

Entre arrumações de camas, vassouras e faxinas, as ideias vão brotando. Entre trocas de pês e bês atrabalhando e atrapalhando. As histórias se formando, os poemas nascendo assim como que sozinhos, alguns cheirando a detergente outros a temperos raros: Anis estrelado em céu azul?

Psicograficamente, do nada, é o vazio da criação. Se algum valor literário pode ou não a escritos assim serem conferidos, se ruins ou bons podem assim soar, não importa. Quem escreve, quem compõe lava a alma, limpa a casa. Vive de ideias só suas sem sorver sentimentos alheios, sem se alimentar da alma do outro. Pensamento completo, só seu, difícil, inteiro, completo/completo/completo. Vampiro de suas próprias emoções.





Diário de Uberlândia 21 de março de 2020

2020, desafio final?



Acordo sentindo um peso de quase uma tonelada no peito. Estranho, deitei cedo ontem com um nó na garganta e desperto assim. Uma lembrança irritante vem me deixando angustiado dias seguidos. Outro dia topei com uma pessoa que muito conheço, que me chamou pelo nome e seguiu. Até hoje não consigo lembrar seu nome. Este incômodo foi o catalisador de uma série de pensamentos hostis.

Fico quieto. Nem estico o corpo. Qual motivo real para tamanha ansiedade depois de uma noite de sono profundo, sem sonhos? Nada, nenhum motivo aparente. Aparente, repito e reflito. Dou uma olhada para o passado recente e avalio, busco respostas, possibilidades, frustrações, perdas. Encontro resquícios e muitas cicatrizes. Algumas conheço bem, pois são antigas, outras não sei mais explicar origem. Recuso-me a sair da cama. O quarto ainda escuro me proporciona um abrigo seguro nesse estranho momento. Penso, repenso. Respostas, grito em silêncio. Peço ajuda aos Orixás, a santos que desconheço e, claro, ao meu São Jorge/ Ogum. Não clamo a Ele, pois seria egoismo ocupá-lo com tão pouco em momento no qual o mundo anda tão desarranjado, afundado em egoísmos e mal fazer. Opa! Uma luz se faz brilhar, tênue. Brilho que talvez me ajude a encontrar fonte louca de minha melancolia. Começa um play-back mental. Som precede as imagens que vão se formando. Motivo de tanto corroer pode aflorar. Talvez a psicologia tenha um nome, um rótulo, para o que estou sentindo guardado em algum pequeno frasco na prateleira dos tormentos humanos. Desconheço e batizo o que sinto de cafubira mesmo, pois deixa um coçar atazanado.

Penso primeiro nas loucuras locais. Um bando de vereadores é preso e eles passam Natal e ano novo literalmente na prisão. Até aí tudo certo. Errou, fez besteira, foi comprovadamente desonesto, abusou do cargo em benefício próprio, tem que pagar e caro.

Mas aí vem o torniquete da realidade, lentamente a apertar alma. Aos poucos fazem acordos, confessam falcatruas e um a um vai sendo solto. Alguns até voltam a exercer o cargo perdido. A justiça é cega, mas não é boba, Quem tiver culpa comprovada vai pagar, grita a voz da esperança dentro de mim. Para finalizar, custam a arrumar suplentes para aqueles que pediram para sair ou foram saídos. Todos fogem de exposição. Será algum medo?

Ainda local. Os servidores municipais ativos e aposentados são mais uma vez ignorados pelo executivo no que diz respeito a salários. Em um discurso vazio contam a todos do “aumento” oferecido. A ver navios novamente ficam os carregadores de piano municipais e, pasmem, alguns até aplaudem o recebido. Gado tangido por migalhas como recompensa em seus cargos comissionados. Espectros humanos.

Avanço para nosso espoliado Estado de Minas. Tragédias e mais tragédias. O horror de Brumadinho faz as gentes esquecerem Mariana. Nada como outra tragédia para apagar a anterior. A Vale continua mandando e desmandando. Corpos ainda não encontrados esperam enterro digno que não a lama fétida, espalhada pelas veias de nossa amada Minas.
Uma cerveja intoxica e mata, sem explicação lógica até hoje de como a bebida se contaminou. Teorias da conspiração pipocam nas redes.

As besteiras federais não param. Ministros e secretários brincam de troca de cadeira. Alguns viajam em avião da FAB como se fossem donos do país. A história da terra plana é fichinha perto do que está por vir da boca dessa gente. O presidente muda de opinião a cada minuto, “tá ok”?

Desconsidera a vida de quarenta e poucos brasileiros isolados na China em meio a uma emergência sanitária mundial. Seu ídolo do norte declara que onde estiver um cidadão norte-americano, este terá toda ajuda de seu país. O mandatário de plantão esquece o que falou, que era caro, que eram poucos, “só” uns quarenta, e felizmente, a pressão popular e o falar do outro do Norte o faz mudar de ideia. E nós, outra vez, gado.

Coronavírus, desonestidade, tapeação, mentiras e falcatruas. O torniquete chegou no último aperto? Que nada. Quando pensamos assim e olhamos no entorno estamos sós. Celulares deterioram as relações de afeto. No social as prosas pouco mudam e algumas vezes degeneram em falas inoportunas. Estorvo. Amigos de verdade, poucos. A vontade de levar vantagem pessoal em tudo se espalha em epidemia de caráter. Muitos “King of the hill” para poucas cadeiras.

Caramba, levantei brigando com o mundo hoje! Talvez um simples cansaço existencial, talvez choque de realidade para me tirar do mundo da fantasia criado por mim. Defesa, escudo, prancha de salvação. O ano nem começou, mas sinto que 2020 vai ser duro de encarar.

Meu amigo, minha amiga, se aviso fosse bom seria vendido e não dado, mas aqui vai um muito antigo: “No melhor pano cai a nódoa”. Se estiver triste, amargo, nunca escreva. E se escrever não publique. Fiz os dois. Dá um tempo, deixa passar. Pois vai passar, afinal o carnaval está aí. Vista sua fantasia de Pierrot, Palhaço ou Colombina e, se não der mesmo, finja alegria. Aos poucos tudo volta ao normal. Cantarole com a multidão: “A minha fantasia ninguém muda/ Este ano vou sair de Buda…”

E quer mesmo saber? Continuo não lembrando o nome do cara.




Diário de Uberlândia em 14/02/2020