domingo, outubro 26

Sifão




Domingão. Sol quente, céu limpo. Barulhada de passarada não deixa ficar muito tempo na cama. Cada um querendo mostrar seu canto, seu pio, seu grito, mais alto do que o outro. Tamanha algazarra que das duas uma: ou infensa ou provoca risos. Prefiro o sorriso da manhã.
Corro coar café. O cheirinho toma conta da casa. Abrindo a janela, respiro ar frio, sensação boa.

Rumando para o quintal, abro torneira do tanque, pressão forte, direto da rua. Gosto de lavar o rosto ali. Baixo a cabeça e deixo água correr solta na nuca, nos cabelos. Levanto de uma vez e, sem camisa, deixo a água escorrer fria pelas costas. Sinto-me na roça, beirando bica d’água. Desta vez senti molhar os pés descalços. Estranho. Mirei tanque por baixo. Nada errado à primeira vista. Abro a torneira e torno baixar. Lá está a causa da ducha entre dedos. Um trincado no sifão. Água corre lisa sobre piso e, em sinuoso micro rio, derrama não no mar, mas em verde grama.

Pronto. Assunto para resolver logo cedo. Faço o que tenho a fazer e rumo para imensa loja que de tudo vende. Mercearia agigantada.
Levo a peça machucada para não errar compra. Simpáticas vendedoras nos sorriem. Isca para bom negócio. Sonham comissões. Não, são educadas por natureza e treinamento. Encantam. Os estímulos multicoloridos perturbam e distraem. Entre labirinto de tapetes, são milhões em formatos e texturas, estão pias e vasos com formatos que vão do clássico ao surreal. Formigueiro de gente comprando. É a única que abre domingo. Passo por corredor de espelhos. Vejo-me mil vezes, em distorções e movimentos engraçados. Uma moça arruma os cabelos em um deles. Caraminholo. Por que entre tantos, escolheu justo aquele para se mirar?

Depois de algumas voltas encontro o que busco. Vejo medidas com cuidado, sou mestre em confundir 3/5 com meia, não gostaria de ter que voltar hoje ainda. Vendedor me explica que, de acordo com as polegadas do cano, posso cortar com segueta até chegar ao tamanho ideal. Pronto! Não tinha segueta, toco procurar seção de ferramentas. Claro, encontro. Todos os tipos, formatos de arcos, tamanhos e preços. Opto por uma miudinha, coisa de poucos reais.

Pego caminho da porta e ao ziguezaguear dos caixas, saio, não sem antes ceder aos encantos de prosa de vendedora e, ainda, comprar, além de sacola ecológica, um potinho de fragrância de bambu com palitinhos como dispersor. A capilaridade é minha aliada no perfumar.

Fila do caixa. Moça à minha frente se põe a admirar plantas em vasos. Percebo tremer de mão mineira. Ver com as mãos. Segundos difíceis para ela. Em impulso tocou e acariciou a flor. É de verdade! Exclamação quase infantil. Tão bonita, mas tão bonita que até parece de plástico, me disse baixinho. Ser de verdade em loja repleta de sintéticos é crime. Compartilhei feliz admiração dela.
Lembrei de meus passarinhos livres e canoros. Já pensou se tivesse que ouvir tantos cantos em disco ou relógios que os imitam de hora em hora? Vazio de natureza. Voltei correndo para casa, tudo por um sifão.






Publicado Jornal Correio em 26/10/2014 ( Dia do segundo turno de eleições para Presidente )



Sifão

domingo, outubro 19

Falar mal do governo !



Sensação menor bate no peito e alma. Tudo que se ouve sobre governos durante período eleitoral é gente falando mal uns dos outros. Todos partidos e políticos que ali, pelo menos a maioria deles já esteve no poder e de alguma maneira nos governaram, ou legislaram. Bem ou mal nós os colocamos lá. Nós demos voz e vez e voto para cada um deles. Agora, o que assistimos é torrente de acusações, tiroteio de todos os lados. Lembra-me e aposto que todos vocês também passaram por algo assim, os tempos de colégio. Tão comuns as briguinhas na saída. Os motivos podiam ser os mais variados, mas asseguro nada que realmente tivesse importância.

Ciúme da menina mais bonita da sala, geralmente loira de cabelos cacheados e olhos azuis, estereótipo enfiado na cabeça da molecada por padrões nada nossos. Bom lembrar que as meninas sempre estimulavam as disputas, ego em formação, reflexo de educação recebida ou resquício da evolução da espécie.

Curiosamente uma das poucas espécies em que macho é mais “feio” do que fêmea é a nossa, humana. A natureza em seu aperfeiçoamento dos bichos, foi dotando ao longo de milhares de anos os machos com cores deslumbrantes, cantos belíssimos, porte e força física, sempre com objetivos de preservar a espécie premiando o mais belo, o mais canoro e o mais forte com o maior número de parceiras e a garantia de perpetuar sua genética.

No mundo animal o macho escolhe parceira, via de regra. Nas gentes é certo que elas detêm o poder de escolher seus parceiros, quase sempre. Isso porque ainda resistem culturas mundo afora onde mulher é vista como um nada. Mas estas são distorções criadas pelos humanos.Em condições normais de pressão e temperatura, meu amigo, mandam as mulheres e não tem papo.

Outro dia vi/ouvi um candidato com pretensões de se eleger presidente, descarregar um monte de besteiras tão, tão… bestas, que quase não acreditei no que ouvia. Declarações homofóbicas em seu mais alto grau. Afronta não apenas pessoas por suas escolhas legitimadas primeiro pelo amor, mas também por lei. Outro dia ouvi algo interessante que diz tudo, me perdoem, mas desconheço autoria, é algo assim: “Não aprova o casamento gay? Não se case com um gay. Não gosta de cigarro? Não fume. Não gosta de tatuagem? Não faça. As coisas seriam tão simples se cada um cuidasse da própria vida e respeitassem o querer alheio.”

Viva e deixe viver. Não gosta? Mas respeite. Voltando na baixaria política do período eleitoral me veio à cabeça, mais uma vez, charge extratemporal do genial de Henfil. Uma tira da Graúna onde, revoltada com tanta corrupção, desvio de verbas, descaso com o povo e para piorar, os constantes sumiços na época, dos famosos caminhões-pipa, indispensáveis para a sobrevivência do povo da caatinga, definhando em seca e pó, brada irritadíssima: “Hoje eu estou macha! Vou meter o pau no governo!” (E olha que estávamos nos mais duros dos anos de chumbo quando esta tirinha saiu.) Outro personagem da tira, o Bode Francisco Orelana, olha de soslaio para a Graúna e retruca irônico: “Se tu está macha de verdade defende o governo…”








https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhZTdvdmppTW5DWjg/view?usp=sharing







Publicado Jornal Correio em 19 de outubro de 2014

quarta-feira, outubro 15

Eleição



 Domingo passado teve eleições. Independentemente do resultado fica claro que o nosso país passa por um período histórico no que diz respeito à democracia. Acredito eu que seja o mais longo sem golpes ou falcatruas explícitas contra o estado de direito. Delitos e saques aos montes continuam como desde o tempo de Cabral. Nesse quesito, para nossa decepção, “fica tudo como dantes no castelo de Abrantes”.

Não me dou de política falar. Mas não me pensem algum alienado, um distraído cívico. Pelo contrário. Reflito, penso tempo todo e me preocupo com ela de fato. Não vendo voto, não barganho em troca de nada e, o mais importante, conheço bem meus candidatos. Deixo o escrever sobre, para os especialistas, sou simples observador atento.

Sobre o que se passou nos dias que precederam pleito, afetou todas as cidades do país. Absurdos visuais e auditivos extrapolaram o bom senso.
A Justiça Eleitoral criou regras rígidas que diminuíram sobremaneira a sujeira dos ilustres candidatos. Em termos. Os famigerados cavaletes esconderam praças e canteiros floridos, cobriram grama sofrida e castigada por seca prolongada impedindo tenros brotos de mostrarem vida. Transformaram em exposição de péssimo gosto de rostos maquiados e trabalhados a photoshop de gosto duvidoso, ruas e avenidas inteiras. Parece que esses senhores e senhoras descobriram a cobiçada fonte da juventude. Ficam mais novos a cada eleição. Frases de efeito sem efeito nenhum acompanham sorridentes falas fáceis como a dizer:
— Olhem pra mim! Olhem pra mim!

Particularmente acho pouquíssimo provável que alguém em sã consciência escolha em quem votar olhando aqueles cavaletes ridículos.

A história de serem retirados depois das 22 horas é outra incógnita, mais difícil de decifrar do que o enigma da esfinge de Édipo Rei de Sófocles, “Decifra-me ou devoro-te”. Fomos, todos, engolidos em bocada de sucuri beira-rio. Após as 22 horas aquelas peças de péssimo gosto que ficassem ao relento, pouco mais importam à população, pois se de dia só são notadas para maldizê-las, à noite ficam sem plateia. Obstruíram visão de esquinas em horários de pico; à noite, entre o crepúsculo vespertino e o matutino não seriam mais nocivos do que à luz do dia enfrentando a beleza de manhãs, a indignação dos pássaros e das gentes.

Outra coisa boa. Acabou o horário eleitoral gratuito. Claro que tem que ser gratuito! Já pensou o cara ligando para uma operadora de televisão e contratando um pay per view de horário eleitoral:
— Gostaria de comprar os horários eleitorais completos de Minas Gerais, São Paulo e Rio de janeiro. Se tiver desconto pode incluir Bahia e Rio Grande do Sul.

Bom, quando falo que acabou o horário eleitoral , tenho que me lembrar do segundo turno.
Bom, este sim é mais democrático e esclarecedor (será?). Pelo menos o tempo dos que pleiteiam o trono da Alvorada é igual. Os debates tornam-se mais objetivos, cessam as agressões, passa-se às ideias, acho.

Pois com está, só buscando no poeta de Alegrete, o genial Mário Quintana, uma definição para tamanho furdunço: "(...) o excesso de gente impede de ver as pessoas...!”







Publicado Jornal Correio em 12/10/2014




quarta-feira, outubro 8

Dia das Crianças

O tempo passou ligeiro, voo risco colibri. As mãos  um pouco maiores, mais calejadas é verdade. De fato, só mudou o bicho a segurar. Essa criança mora em mim.

William H Stutz
Veterinário, poeta, escritor, olheiro da vida




domingo, outubro 5

Curto e grosso





Contam – discordo frontalmente – que quando começo aula, palestra, apresentação, nunca respeito o tempo a mim conferido. O número de caracteres que disponho para compor esta coluna, às vezes, me aperta. O gostar de escrever é culpado. Quando me ponho a caso contar me transporto para dentro dele. É prazeroso.
Assunto me pega em voo solo e manso, esqueço e sigo em frente. Quando vejo, prosa ficou imensa, corro a revê-la para caber direitinho nesta parte que cabe nesse diário que tão generosamente me acolheu. Se tenho, por exemplo, que escrever um capítulo inteiro de uma publicação inicialmente travo. Vejo-me perdido inicialmente naquele mundo de espaço em branco. Bicho pega.

Gosto de começar a escrever à noite. Barulho só de grilo, pio de Urutau, grito de coruja.O vento misturando as copas de minhas árvores é música e inspiração. Não tem telefone, vozes humanas nem barulho de rua. Vez ou outra sirene longe. Polícia, bombeiro ou ambulância? Me disperso em pensar tragédia ocorrida. Tomo litros d’água, detesto café. Sigo adiante como Maria Fumaça. Patino em trilho de ferro, rodas vão em reverso, vapor para todo lado. Caldeira quase em ponto de explosão, solto a manivela devagar. Ideias passam como paisagem, começo lentas, bem distintas. Vejo braço erguido de moleque em adeus sem dono, vejo o olhar calmo de gado.





À medida que pego velocidade, visões se misturam. Serra e mata se tornam um só, riacho transforma-se em mancha azul de aquarela, túneis passagem em flash de lambe-lambe. Escuro/claro/escuro/claro. O som do apito passa por minha janela em risco reto. De locomotiva rangendo em ferro e parafusos soltos a trem bala. Não existe mais nada lá fora. Um vazio externo me cerca e afundo todo em texto. Em freada brusca volto ao mundo.

Ministrando treinamento. Quatros horas a mim conferidas em dias alternados. Avançamos hora de almoço adentro, o intervalo quase não existiu e ainda ficou coisa para debater. Culpa minha? Não senhor, não senhora. Quando se percebe o envolvimento das pessoas não tem medição em hora, a conversa flui solta. E se não tem mediador vai longe mesmo.

Congresso em Gramado (RS). Minha apresentação tinha 20 minutos, segue tranquila. Do nada uma plaquinha é deixada à minha frente nela assustadora mensagem: “Cinco minutos.” Toquei.  Outra placa: Tempo esgotado. Aflito, pois nem meus slides havia mostrado, pedi desculpas e saí.
Ministrada aula teórica pela manhã, em algum lugar do Brasil, partimos para prática de campo à tarde. Prática bruta de captura consome força física. Sol de rachar. Solicitam-me uma aula na Faculdade de Medicina à noite. Aceito com prazer, e aviso aos companheiros que dali à uma hora estaria de volta para jantarmos. Três horas depois, volto. Claro que todos já tinham jantado e aos risos confirmaram que nem me esperaram. Haviam apostado que eu não conseguiria falar apenas uma hora. Mas a turma era interessada, como parar?

Os adoro, mas naquele dia comeram sanduíche e nós, deliciosa moqueca com camarão graúdo. Pronto, tirem suas próprias conclusões que o espaço aqui estourou.

Publicado Jornal correio em 5/10/2014 (dia de eleição)