sábado, novembro 26

Caminhada


Foto Jornal Correio

Peço vênia. Em trecho de crônica recente aqui no CORREIO, tive a infelicidade de não falar muito bem de meu sentimento pela caminhada. Hoje, um mês depois de obrigatoriamente aderir a esta modalidade de atividade física, vi que estava redondamente enganado. No começo penei. Procurava companhia e nada. As vezes que caminhei com alguém a coisa mudava de figura, o tempo passava ligeiro e prazeroso, mas sozinho, no começo era um suplício.

Mudei de ideia. Caminhar é um exercício de primeira linha e democrático, pode ser feito em qualquer lugar. Descobri os segredos ocultos da caminhada solitária. Além de exercício saudável, é momento especial de levar boa prosa com você mesmo. Sonhar novos planos, ter novas ideias, criar novos projetos.

Um exemplo: estávamos eu e parte de minha equipe presos a um dilema no que se referia à dinâmica de população de escorpiões e introdução de novas espécies em nossa cidade em um sítio de pesquisa aplicada onde desenvolvemos todas as técnicas que, com sucesso, aplicamos no campo aqui em Uberlândia. Numa andança descompromissada dessas veio a luz – e um grito mudo de Arquimedes de Siracusa. Consegui desenhar mentalmente toda a aplicação do experimento. Se tudo der certo, será testado já no mês que vem.

Caminho principalmente no meu bairro e no Parque do Sabiá, aliás, lugar de minha preferência: é lindo, bem cuidado e oferece prazer e segurança aos usuários. Oferece ainda o prazer de ver gente, muita gente. Recomendo a quem nunca foi que vá e não deixem de, após suar a camisa, tomar um coco gelado, você volta para casa novo e feliz. Caminho no clube que é muito bom também, pois ali sim sempre tem companhia, mas o Sabiá é hors concours.

Mas caminhar também pode ser uma aventura animal, principalmente quando se ganham as ruas em busca de qualidade de vida por meio da forma física.

Outro dia, uma surpresa: ao passar por um terreno vago senti sobre mim rasante de ave grande e brava, o boné quase foi embora. Curioso, saí à procura do gigante alado. Na realidade nem gigante nem tão bravo: apenas um casal de quero-quero a proteger filhote. Emociona e leva o pensamento longe tamanha dedicação. O que será que fez esse casalzinho se instalar em local tão estranho? Não sentirão falta da roça? Visito-os sempre, acostumaram-se comigo. Sentirei falta quando o filhote ganhar idade e for embora.

Outros momentos de caminhada podem ser considerados adrenalina pura. Cães soltos. Nunca se sabe o que se passa na cabeça deles. Por várias vezes correram atrás de mim, me obrigando a galope, ainda não estou preparado.

Dia desses, já no fim do bairro, beirando o mato passei por uma casa onde um imponente pit-bull bateu o peito no portão a latir. E se esse dando de portão rompe com a força que tem?

Olhei para um lado, olhei para outro, não havia uma árvore sequer para que pudesse correr e subir, braquiária pura a perder de vista. Seria mato adentro quebrando guatambu no peito e, se desse sorte, sairia com no máximo uma batata da perna a menos. Passo nessa ali mais não.

Os efeitos benéficos de meu novo lazer se fizeram mostrar em pouco tempo: emagreci e o famigerado triglicérides foi dominado. Caminhar é se ver por inteiro. Relembro o poeta sevilhano Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, sino estelas en la mar/Caminhante, não há caminho, somente sulcos no mar”.





Publicado no Jornal Correio aqui em pdf

quinta-feira, novembro 17

Madurou

Assim, ocultas pelo negrume da capa da noite, longe das vistas curiosas mudou de roupa. Deixou de lado verde rajado e, como a imitar o céu, de puro e brilhoso breu se vestiu, castas.

O amargor de sua essência alva foi substituto por doce puro mel. Bicharada noturna se farta.
Nobre colar em enfeite de festa enrola-se tronco acima até as grimpas em busca de luz, de palco. Apoteose.
Ao clarear, secando do frescor de banho orvalho, os do dia, aos poucos se juntam. Algazarra e cantos em orquestra desafinada e faminta. Pérolas negras de prazer alimentando em delícia multidão.
Poucos de nós se interessaram em competir com eles. Chamei muitos, veio ninguém.
Deixa lá, há quem goste mais e faça o devido proveito.

Sento à varanda tardezinha e em deleite observo. Tento registrar tamanha variedade em penas e pelos. Máquina estragou em exata hora. Frustração de retratista amador. Agora sabe-se lá quando conserta. Uso então da memória.
Até ter de volta caixinha de guardar sonhos, vou tentando contar.
Paciência, até as gentes se estragam quando em vez.







sexta-feira, novembro 11

Saúde do homem – I e II




Imagem de Prefeitura de Biguaçu

E pensar que esta história começou com um grande Irmão Psiquiatra, que literalmente me tirou de rota de colisão comigo mesmo, me fez assumir novamente o manche de minha vida, me permitiu voar em céu de brigadeiro, resgatando meu perdido norte.

Por mais que relutemos em aceitar o passar do tempo, chega uma hora em que temos que nos submeter a um check-up geral, daqueles que te reviram de ponta cabeça mesmo. As mulheres são muito mais cuidadosas do que nós. É só surgir a primeira menstruação e já criam rotina saudável de agendar visitas periódicas ao ginecologista. Com elas, qualquer sinalzinho diferente na pele é motivo para irem correndo ao dermatologista. Quer mais? Homem só vai ao dentista quando dente dói!

O percentual de mulheres com as cadernetas de vacinação completas é surpreendentemente maior do que o dos homens. Na nossa, geralmente temos a antitetânica e a febre amarela, pois uma é quase sempre exigência trabalhista e, sem a outra, não se atravessa, se frequenta regiões de pesca onde a doença reina selvagem. Homens geralmente gostam de pescar. Eu particularmente só pesco de rede.

Isso mesmo, rede. Chego à beira do rio, acho bela sombra, estendo minha rede, em local mais alto, me deito, pego um bom livro, uma cerveja e, vez ou outra, dou olhada para as canoas. Pesco não.

Que fique bem claro que, infelizmente, estou falando de uma camada da população que domina o conhecimento e tem acesso a serviço médico de qualidade, infelizmente uma minoria. Basta ver as alarmantes estatísticas de casos de câncer de útero, de próstata, de mama, e outras tantas doenças evitáveis, cuja prevenção e atenção médica em muitas cidades estão distantes, fora do alcance da população. Enumerá-las aqui seria um desafio.

Em quase todos nós, ao contrário das mulheres, a segurança absoluta de saúde plena já começa a balançar nas antessalas dos consultórios médicos. Um medo inexplicável vem do quase nada. Digo quase nada, porque, na realidade, ele é totalmente justificado. Já notaram as feições dos outros que estão ali sentados? Uns folheiam revistas vencidas sem ler, batem o pé sem parar em visível estado de tensão, outros lhe dirigem sorrisos sem graça, sorriso esse que pode ser de autopiedade ou de dó da gente a pensar: ”coitado, esse aí está pior do que eu”. Mesmo que você tenha entrado ali para buscar uma receita para outra pessoa, no clima da antessala do doutor você já começa, mentalmente, a escanear seu corpo. Será que aquela dorzinha de cabeça que tive em abril poderia ser um aneurisma? E o formigamento que senti mês passado? A dor no estômago outro dia estava estranha. O pensar que se tem é, às vezes, pior do que ter, pois o que se pode ter, geralmente, é simples de resolver.

Cada um, acredito, tem seu “timing”, seu momento em que percebe que já não é mais o super-homem de ontem que podia todo santo dia se deliciar com dobradinhas do Cidão, feijoadas aos sábados e picanha gorda domingo com a família. Sem contar as cervejas geladas ao fim da tarde, de terça a domingo. Claro, segunda-feira não pode.

Em entrevista que vi de um integrante do famoso Harlem Globetrotters, o atleta respondeu magistralmente à pergunta sobre a hora de parar de jogar: “The head says go the legs say no”, resumindo filosoficamente a condição humana para tudo, não apenas esporte.

O mais interessante, constatei, é que, geralmente, o alerta vem não de seu próprio corpo, mas das conversas entre amigos e colegas, principalmente de trabalho. Se você não tem nada, não faz uso de nenhum medicamento, considere-se fora da roda.

Ou é doença ou futebol. Como não entendo de futebol, além do fato de ser torcedor do Atlético Mineiro, resolvi dar uma geral no corpo para me integrar, pois o antidepressivo que ultimamente ando tomando não conta para o grupo. Não puxa assunto, é medicamento para secar papo. Todos te olham de lado, dando-lhe as costas e continuam:
— Já viram aquele genérico novo para pressão? E aquele outro para gota?

Pois lá fui eu cumprir minha via-crúcis, saindo de meu Pretório particular em busca de Calvário próprio, mas que gerasse assunto e aceitação.

Comecei com o tabu masculino, coisa de brasileiro machão besta, o urológico. Não precisa dizer que, quando voltei à roda, além dos sorrisos cínicos, todos queriam saber como foi. Senti-me incluído. A propósito, passei com louvor no exame. Supercompetente, meu amigo de longa data e urologista solicitou sangue completo para ver o que corria nessas veias abertas de mineiro medroso. O PSA era de criança, mas aí veio o susto. Meu triglicérides estava a ponto de se tornar tetra e a caminho do penta.

Toco a marcar consulta com outro amigo, médico dos bons, que me recomendou medicamento, dieta e exercícios para baixar o tal, isso antes da consultar, pois iria demorar um pouco e queria fazer o cardiológico primeiro.

Outra médica atenciosa e competente. Passei com nota média na esteira, o eco mostrou que ainda tenho coração e o Mapa não registrou nenhuma anomalia. Não preciso dizer que ficar 24 horas com aquele aparelho é duro e incômodo. Dia sem banho e, em uma reunião séria, a mangueirinha do aparelho se soltou. Tem coisa que só acontece comigo. Moral da história: nem um remedinho a mais para tomar. Que falta de assunto para o grupo! Só recebi um “que bom”.

Resumindo, estou criando penas de tanto comer carne de frango. Sinto-me ruminante com tanta salada e sabiá com tanta fruta. Contrariado faço caminhadas diárias sozinho e ainda acho a coisa mais chata do mundo, pois andar com destino é uma coisa, andar por andar não é fácil. Já emagreci mais de 2 kg, mas ainda não posso me dar ao luxo de dizer que me sinto diferente, pois, na realidade, não sentia absolutamente nada antes dos exames.

Sinto falta mesmo é da dobradinha do Cidão, da picanha gorda de domingo e da cerveja gelada. Com essa até sonho. Sorte minha que não fumo há mais de década, senão seria mais um vício a largar. Logo vou ao consultório de meu amigo para avaliação final. Espero que cheguemos a um meio-termo e que, pelo menos uma vez por semana, eu possa me dar ao luxo de alguns excessos. Não precisam ser muitos, a ponto de me atribuírem o pecado da gula, mas que sejam prazerosos, porém controlados.

E para os machões de plantão, uma recomendação se me permitem. Façamos como nossas mulheres, que não são de Atenas. Não vacilem nem demorem muito para check-ups periódicos. Queira ou não, para seu próprio bem, um encontro com um urologista está marcado, mas fique tranquilo, sua virilidade não será em nada maculada e, a partir dessa consulta, poderá descobrir que sua vida estava por um fio e você nem desconfiava.






Publicado no Jornal Correio em 11/11/11 , data um tanto quanto cabalística, essa e parte 2 em 12/11/11

quinta-feira, novembro 10

Vida viva

O mais belo vídeo sobre polinização que já vi. E claro nossos morcegos não são meros figurantes

Branca

Usa de sua exuberante beleza para, ao sol brilhar, atrair pequenos/grandes outros.
Certeza de perpetuação. Permanecerá eternamente branca e rara.



Registrei em área perto da cidade. Recolhi mudas.
Clica na foto para detalhes sutis

domingo, novembro 6

Carro de boi


Foto: Ana Paula Junqueira
Composição: Maurício Tapajós e Cacazo
Música: Milton Nascimento




Que vontade eu tenho de sair
Num carro de boi ir por aí
Estrada de terra que
Só me leva, só me leva
Nunca mais me traz
Que vontade de não mais voltar
Quantas coisas eu vou conhecer
Pés no chão e os olhos vão
Procurar, onde foi
Que eu me perdi
Num carro de boi ir por aí
Ir numa viagem que só traz
Barro, pedra, pó e nunca mais

sábado, novembro 5

Calango




— Mãe tem um jacaré na piscina!
— O que isso menina, onde já se viu! Estamos em Uberlândia e não em uma fazenda no Pantanal.
— Mas mãe, tem um jacaré na piscina lá no quintal, vem, mãe, vem ver!
_ Ô menina,tem não, isso é coisa de sua imaginação. Andou escutando histórias de seu pai outra vez?
— Nem conversei direito com o papai hoje, e não é história. Tem um jacaré na nossa piscina. Vem mãe, juro que tem e se a gente não salvar ele vai morrer afogado.

— Então tá, vamos lá ver o tal jacaré. Deve ser aquele do Peter Pan, que comeu a mão do capitão Gancho. Brincou a mãe com o apavoramento da pequena criança.
Numa toada ligeira a menina puxava a mãe pelo bolso da calça jeans, com tanta força que se fosse outro tecido teria estourado.

Chegando ao quintal depararam com cena inusitada. Um calango, daqueles criados, que hora se debatia e nadava em círculos, hora se deixava ficar exausto a boiar, como a buscar fôlego e forças para conseguir se livrar daquela imensidão de água, que teimava em tentar engoli-lo. O instinto de sobrevivência jamais iria abandoná-lo e aquele lagarto iria tentar se safar enquanto o menor músculo de seu esguio corpo respondesse aos seus primitivos comandos neurais. A água estava baixa, estratégia para evitar que pombas às dezenas ali não viessem saciar sede e sujar toda as pedras das quais tão bem delas cuidava.

Calango deu azar, talvez distraído com alguma borboleta e sonhando com almoço garantido, errou a pisada e despencou piscina adentro.

— Não falei que tinha! Eufórica e, com ar de vitória, comemorou a mocinha do alto de seus poucos anos de vida.

— Jacaré né? Riu a mãe
- É um calango filha. Certo que é dos grandes, mas é um calango e não vai te pegar. Disse isto, fazendo careta e fazendo cosquinhas nas costelas da menina.
— Agora me ajuda a salvar o pobre coitado, pega a redinha de catar folhas.

Com cuidado pescaram o bicho e o colocaram sobre macia grama. Afastaram alguns passos e ficaram a observar o coitado, ofegante, a se aquecer e lentamente recuperar forças. Passaram-se poucos minutos e a mando da mágica da vida, um pulo, uma carreira e lá se foi buscar refúgio na segurança fechada de exuberante canteiro de samambaias.

— Feliz agora? Seu "jacaré" está são e salvo. Me deixa correr para as panelas pois senão o almoço hoje não sai.

Beijou carinhosamente a filha e se foi a pensar que de um jeito ou de outro estavam no caminho certo. Pelo menos conseguiram passar para os filhos o amor e respeito a todas as coisas vivas. Mostrar a elas o mal que os homens estavam a fazer destruindo o lar de tantas criaturas. Derrubando o cerrado, enchendo a paisagem de falsos lagos, represas sem fim que de tão grandes, tudo destruíam à sua volta. As balelas que eram os programas de recomposição e preservação de margens que, no fim, viravam clube particular de alguns poucos.

Pelo menos, seus filhos cresciam dotados da consciência de que era preciso mudar para que o planeta, como o calango salvo, pudesse se recuperar novamente. Eles jamais jogariam lixo na rua, nunca como certos párias da raça humana ou colocariam fogo em mato, terrenos ou em montes de folhas rasteladas, espalhando fumaça para todos os lados em clara demonstração de egoismo e arrogância. Cresceriam sabemdo que os recursos são limitados e, se queremos continuar aqui devemmos aprender a ppensar como a terra.

Estava quase chegando à cozinha quando novamente ouviu grito estridente da filha: — Mãe tem uma onça na mangueira!
Sem disposição a deixar a conversa se estender, já meio de mau humor, voltou ao quintal.
_ Cadê? Deve ser algum gato perdido à caça de passarinho. Então, me mostra! Resmungou.

A menininha, meio trêmula, apontava o dedinho para mancha escura em meio à folhagem densa da mangueira.
Olhou, apurou a vista, chegou mais perto. Uma carga elétrica percorreu seu corpo de ponta-a-aponta, ficou lívida e imobilizada. Agarrou a filha no colo e saiu em desembestada carreira casa à dentro.
Era uma onça.





Versão 3.300 para Jornal Correio Publicado em 5 de novembro de 2011
Aqui em PDF


Obs: Tirei as fotos outro dia, nasceu o conto. Clique que aumentam e veja a beleza dos detalhes fo "jacaré"

quinta-feira, novembro 3

Brilhante

Recebi do amigo Júlio, Procurei pelo autor via Google nada encontrei. O mesmo texto se encontra presente em dezenas de sites e blogs, nenhum faz menção à autoria. Se alguém souber por favor me conte que imediatamente aqui disponibilizo. A César o que é de César, sempre









Uma analogia simplesmente brilhante ...


No ventre de uma mulher grávida estavam dois bebês.
O primeiro pergunta ao outro:
- Você acredita na vida após o nascimento?
- Certamente. Algo tem de haver após o nascimento.
Talvez estejamos aqui principalmente porque nós precisamos
nos preparar para o que seremos mais tarde.
- Bobagem, não há vida após o nascimento.
Como verdadeiramente seria essa vida?
- Eu não sei exatamente, mas certamente haverá mais luz do que aqui.
Talvez caminhemos com nossos próprios pés e comeremos com a boca.
- Isso é um absurdo!
Caminhar é impossível. E comer com a boca? É totalmente ridículo!
O cordão umbilical nos alimenta. Eu digo somente uma coisa:
A vida após o nascimento está excluída – o cordão umbilical é muito curto.
- Na verdade, certamente há algo.
Talvez seja apenas um pouco diferente do que estamos habituados a ter aqui.
- Mas ninguém nunca voltou de lá, depois do nascimento.
O parto apenas encerra a vida.
E afinal de contas, a vida é nada mais do que a angústia prolongada na escuridão.
- Bem, eu não sei exatamente como será depois do nascimento,
mas com certeza veremos a mamãe e ela cuidará de nós.
- Mamãe? Você acredita na mamãe? E onde ela supostamente está?
- Onde? Em tudo à nossa volta! Nela e através dela nós vivemos.
Sem ela tudo isso não existiria.
- Eu não acredito! Eu nunca vi nenhuma mamãe, por isso é claro que não existe nenhuma.
- Bem, mas às vezes quando estamos em silêncio, você pode ouvi-la cantando, ou sente, como ela afaga nosso mundo.
Saiba, eu penso que só então a vida real nos espera e agora apenas estamos nos preparando para ela…

quarta-feira, novembro 2

Prédios






Tenho por costume ler dois jornais diários, nosso CORREIO e a “Folha”, em que, particularmente neste último, sempre me deparo com quantidade incalculável de novos lançamentos de prédios em páginas inteiras estrategicamente colocadas, muitas vezes entre reportagens de grande interesse, de forma que ninguém passe incólume por elas.

Não que isso me aborreça nem um pouco, pois a possibilidade de um dia morar na capital paulista é a mesma de algum dia ter dinheiro suficiente para adquirir um desses imóveis que, pela descrição no jornal, mais parecem um clube exclusivo. Várias piscinas, minicampo de golfe, sala de fitness, bosque privativo, um pouco de verde, que em Sampa deve valer milhões. Pista de caminhada, área de churrasqueira, salão de festa e de beleza, serviço de quarto como em um hotel e a tal segurança 24 horas.

Segurança absoluta e impenetrável, alguns se vangloriam de serem tão inexpugnáveis quanto Fort Knox, o prédio do Tesouro americano, onde é guardado o ouro do mundo.

A ideia de morar por lá jamais passou por minha cabeça e, mesmo que eu venda o pouco que possuo e empenhe a alma para o coisa ruim, seria capaz de arrecadar milésimo do montante para comprar uma vaga em um desses shoppings de moradia. A não ser que algum parente desconhecido, distante e rico, tenha morrido na epidemia de gripe espanhola de 1918, cuja fortuna administrada em banco suíço, tenha deixado em testamento a incumbência a este de, mesmo que demorasse século, encontrar herdeiros legítimos e, após exaustiva busca, tenha me encontrado numa longínqua e exótica América do Sul.

Ou quem sabe, algum tio-avô ou um primo perdido na árida estepe russa, berço de minha família por parte de pai, que durante décadas e duas gerações sobreviveu com sobrenome fictício para fugir à perseguição de 1917. Recurso muito utilizado à época pelos hebreus, pois o povo de origem judaica foi perseguido e assassinado sem dó nem piedade pelo regime bolchevique. Caso este parente, após a queda da União Soviética, tenha ficado trilhardário com negócios de petróleo ou algum ramo da máfia russa, a Bratvae, redimido, venha tentando reencontrar família de sangue espalhada pelo mundo para distribuir sua riqueza infinita.

Como podem notar a probabilidade de algo assim acontecer é menor do que aquela da propaganda de refrigerante em que o cara tem problema no motor de seu carro, no meio do nada e, desse mesmo nada, surgem duas deusas em beleza e curvas a lhe acudir. Ou seja, nem por milagre nessa minha horta chove. Bem que gostaria de ser encontrado por parente com os bolsos forrados e receber de presente alguns milhões. Mas uma coisa é fato, jamais investiria um centavo para morar em gaiola de ouro em São Paulo. Sem chance. Admiro quem tem coragem de morar em apartamento. Deve ser o rei da tolerância, paciência e da obstinação. Mas não é a minha praia.

Moro em rancho na roça, mas de prédio fujo. Sem céu sobre a cabeça, sem quintal, sem pé no chão, fico de jeito algum.

Mas o que me deixa extremamente intrigado mesmo a cada jornal aberto é: Será que ainda tem espaço livre naquela cidade gigante, barulhenta e com cheiro de fuligem para construir mais alguma coisa? Na toada que vai, muito em breve a cidade de São Paulo descerá a serra e será mais uma capital beira-mar, com praia, mas sem gente bronzeada.





Publicado no Jornal Correio em 1º/11/2011
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