segunda-feira, novembro 28

Superlua



Foto  da web

Pois então, dias atrás tivemos a “Superlua”. Trem de doido, a tão cantada em versos e prosas, inspiração dos “poetas, seresteiros namorados, correi…”, deu o maior 171 na gente. Não que tenha não ocorrido, as potentes lentes de jornalistas e astrônomos nos mostraram o fenômeno mundo afora em imagens televisivas. Aqui choveu a cântaros. Uma super bem-vinda água do céu a verter. Para ser sincero, mais importante do que a lua em grandeza diferente. Não, não é isso. Sou grande admirador e apreciador de luas, sóis e cometas, a ponto de me deixar largado no chão a contar pequenos pontos moventes como se fossem discos voadores, quando não passam de invenção humana, os satélites artificiais. São dezenas deles a toda hora, já parou para olhar?

Pois digo, os astros andam a nos pregar peças com uma constância danada. Outro dia foi uma chuva de meteoros que melou. Fiquei noite inteira, olhar fixo em um céu doente de tanta estrela, com minha lista imensa de pedidos a fazer para cada um avistado. Frustração. Nem um acertinho na mega-sena ou amor perfeito consegui emplacar. Há alguns anos foi Mr Cometa Halley, que deu as caras numa ressaca de deslumbre e beleza decepcionante. Aliás, a tal chuva de meteoros, dizem, é o rastro do tão falado cometa da enganação. Bom, vamos esperar 2061. Quem sabe toma tipo e produz um espetáculo decente? Talvez consiga algum patrocínio via lei Rouanet que lhe permita cobrir-se de brilho convincente. Quem viver verá.

O céu e suas peripécias, a bela Estrela d’alva nem estrela é. Para quem não sabe é Vênus, um planeta. Plutão que era planeta com P maiúsculo foi rebaixado a categoria de planeta anão. Não existia essa categoria, mas a União Astronômica Internacional (UAI), sabia que era coisa nossa de mineiro foi lá e criou o termo para não humilhar demais o astro. Não gostamos de nos desfazer de nada, nem de ninguém. Somos observadores atentos, mas maldade deixe para os outros.

O melhor foi a história de um amigo. Mesmo com a invernada que deu, tomou todas e foi para o quintal à caça da superlua. Não deu outra, ele viu e esparramou a notícia pelas redes sociais — Cara essa superlua é realmente super. Estou embriagado de tanta beleza, nunca vi nada igual. Vocês estão curtindo? Dedilhava freneticamente em seu celular.

Todos respondiam quase a mesma coisa: — Você bebeu demais. Tem lua não, as nuvens estão cobrindo tudo!

— Que nada, aqui tem chuvisco só e a tal é Super mesmo.

Intrigados, mais do que curiosos, alguns amigos foram à sua casa conferir. O encontraram encharcado no meio do gramado, em ataque eufórico, abraçado com uma garrafa de uísque. — Ali ó, olha que beleza, balbuciou quase em choro de alegria.

— Cara, vamos entrar e sair dessa chuva!

— Nunca! E perder esse espetáculo?!

— Vamos sô, você pode gripar!

— Saio não. Só na hora que ela for embora!

Cansados de tentar convencer bebum, um dos amigos perdeu a Brahma!

— Vai entrar sim, o que você está admirando seu mala é a antena parabólica do vizinho.

Pois é, os astros não mentem jamais, mas que enganam… Ah, isso fazem com frequência.






segunda-feira, novembro 21

Belo Horizonte




Nunca fui bom de matemática. Tabuada era um suplício. A de dez, de dois, com esforço a de cinco, eu me dava bem. Tinha a de um, mas esta a professora nunca pedia. Detalhe, não podia contar nos dedos, pois as mãos tinham que ficar sobre a carteira, para serem vistas pela mestra possuída, olhos de maritaca, de tão vermelhos de raiva. A régua na mão mais parecia um facão, pronto a decepar nosso pescoço em caso de erro. Verruga enorme no nariz. Claro, não era nada disso. Ela era bonita e carinhosa conosco, mas era como bruxa que a víamos em dia de tabuada. Talvez fosse essa a nossa maior preocupação infantil, a tal da matemática. O ano lembro bem, 1963. Ano do assassinato de Kennedy. Fomos dispensados das aulas do grupo escolar e lembro que, ao chegar em casa, todos choravam como se tivessem perdido alguém da família. Chorei também, mesmo não sabendo motivo.
O país vivia um frágil lampejo de democracia. O parlamentarismo acabava de ser derrota nas urnas. Jango presidente. O resto da história certamente todos conhecem.

Mas queria mesmo é falar de Belo Horizonte, minha Curral del Rei. Os ficus enfeitavam a Avenida Afonsa Penna e onde hoje está a rodoviária ficava a bela Feira de Amostras. Foi lá que, pela primeira vez, vi um formigueiro vivo, funcionando dentro de um terrário de vidro. Amor à primeira vista pelas miudezas da natureza mudou meu olhar. Passei a buscar ainda criança as maravilhas de um mundo quase invisível para a maioria das pessoas. Parafraseando Manoel de Barros, "meu quintal (tornou-se) é maior do que o mundo".

Cidade pacata, os bondes estavam sendo desativados, mas ainda os vi rodando em guinchos e suaves solavancos em morosa velocidade. A vida em BH era assim. Crianças como eu iam a pé para o Instituto de Educação. Correria e risadas na saída, carrinho amarelo da Kibon, saquinhos de Delicado, balas Chita e pirulitos de açúcar em tabuleiro de madeira. A vida era doce.
Pousei Uberlândia.

Outro dia, um domingo, fui convidado por um amigo/irmão para uma galinhada beneficente. O cabra estava num mau humor de fazer inveja em cachorro bravo amarrado. Danou a excomungar Belo Horizonte. — E você é de lá! Bramiu ao me ver.
— Como assim? Em espanto.
 —Como é que pode morar num inferno daquele?
E eu ainda sem entender.

— Imagina - continuou - Você chega ao aeroporto e até que te deixam sair se vão duas, três horas. Pega o buzu, pois o aeroporto fica literalmente nos confins do mundo, e são mais duas, três horas até chegar ao centro. Pega um táxi para o local de reunião, trânsito parado e lá se vão mais três, quatro horas. Isto quando consegue chegar. Entardece, aí vira loucura geral. Você tenta voltar para o hotel, outra eternidade. Toma um banho com o estômago nas costas de tanta fome e sai. Outra guerra. Aí quando você chega ao restaurante, ele está fechado! Tem dó gente! Como é que você consegue morar num lugar desse? 

Eu, calado, deixo desabafar. Não me contenho. Ataque de riso daqueles incontroláveis. O amigo estava assim porque teria que viajar e de carro, desta vez para a capital.
Rimos juntos. Ele já estava conformado.
 —Também não é assim, né mano velho! 
— É, suspirou. Tô fazendo drama.
E tome risadas.

Isto me fez lembrar de outro amigo que mora aqui no Prata. Fomos juntos a BH ministrar curso. Na Savassi, tempão para atravessar a Getulio Vargas. Ele, tranquilo, olhou para um lado, olhou para outro e me cutucou com pergunta: — Povo daqui trabalha não? Ao ver minha cara de desentendido completou: — Uai, eles só ficam andando de carro o dia todo!
Saudades de minha Belo Horizonte.






sexta-feira, novembro 18

Vento verde



Moleque nas cercas vivas. Criava ondas verde vegetal imitando um mar vertical. Trazia paz e lembranças de um mundo de água longe. O cheiro de maresia veio fundo enchendo pulmões. A espuma se formando a cada onda quebrada. As bolhas dos buraquinhos dos tatuis.

Senti cheiro de moqueca de Marlene e seus encantos culinários. Senti nos olhos e na garganta o gosto salgado de um tempo indefinido. Lágrimas são filhas do mar, mergulhei em onda imaginária, sentindo o prazer que quem só mergulhou conhece. Um abraço quase materno da água.

Um aperto carinhoso lhe segurando por todo o corpo. Cada milímetro. Vontade de virar peixe naquele imenso útero protetor. Vento trouxe outra onda verde, casal de bem-te-vis surfaram alegres entre a folhas. Ali deve ter ninho. Melancolia tomou conta. Tinha acabado de fechar a última página de “A morte de Ivan Ilitch”. Tolstoi produz um efeito estranho em quem o lê. A desconstrução da alma humana de seus personagem é certeira e direta. Sei que vou ficar dias impregnado de Ilich.

A onda verde. Vento morno para um outubro que não se faz anunciar. A beleza da primavera ainda se deixa notar tímida com seus ipês brancos, flores que lembram lenços de linho, a balançar em despedida de navio quando, lentamente, manobra em um desatracar do cais do porto.

O vento agora segura, em congelada imagem, andorinhas. Pairam em leveza, observam. O vento é sólido amparo para elas, gaviões e abutres. A maré virou. Agora em rodopios a cerca viva balança histérica. Parecem saias de monjas empurradas para o alto. Os bem-te-vis, juntinhos, pousam no chão. Suas penas também esvoaçam em descabelo, talvez preocupados com os filhotes, assustados com corcovear dos galhos como brinquedo de parque de diversão. Lembranças voltam a girar com aquele quase redemoinho.

Um telefone toca, um cão late, um carro passa com música alta e de péssima qualidade. Quem dotado de bom gosto musical colocaria música dessa altura numa merda de carro? Dizem que agora dá multa. Tá, mais uma lei para não ser cumprida. E tem quem fiscalize?

Já reclamei mil vezes dos imbecis que ocupam vagas de idosos e deficientes em shoppings, clube e supermercados. Apareceu alguém? Alguma “autoridade” se dispôs a sair do conforto de seu nada fazer para agir? Nunca!

O vento verde aquietou-se. Parecia cansado. O mormaço subiu em golfadas. O céu não estava com a mínima vontade de mostrar chuva. Concordo, e lá isso é prosa para um domingo? Avisei, estava tomado por Ilich. Não poderia ser de outra forma. Até passarinho na muda emudece.

Acho que vou ler algum “escritor maldito”. Quem sabe melhoro? Quem sabe reler Anthony Burgess e sua Laranja Mecânica? Não, quero não. Vou me refugiar nas belezas do mágico Manoel de Barros, pois ali sim um viver feliz guarda tons de serenidade:

“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo.”

E o vento verde em arco íris se transformou. Belo domingo!






segunda-feira, novembro 7

Boi boi



Passou a noite na macega a campear bezerro sobre ano fujão. Como havia emprenhado muito mato adentro o anoitecer o abraçou sem que percebesse. Podia culpar o horário de verão, mas este, ali, não fazia a menor diferença. Nem relógio usava! Galo cantou, pulava da cama para as obrigações da roça. Trato para galinhas e porcos no mangueiro que era um mundo. Apartar bezerro, tirar leite, colocar latão na porteira. Só então tinha tempo para um café forte coado. Deu fome? Merenda. Arroz, feijão com toucinho, um ou dois ovos fritos de gema amarelo ouro, mole por cima. Um suco de tamarindo.

A pasta ainda era do ano passado. Deu sono? Cochilava onde dava. No paiol, na rede da varanda ou até sobre o arreio de cavalo a campear. Horário de verão? Existia isso não. Dormia e acordava com as galinhas, literalmente.

Hora ou outra dava nisso, bezerro fujão, javali empurrado para cerrado atentando suas marrãs no cio, raposa no galinheiro, o obrigava a contragosto, diga-se de passagem, a montar guarita com sua velha flober. Às vezes, dava sorte e comia um javaporco ou mesmo um bruto puro javali na bala. A Florestal permitia. O bicho era invasor, a espalhar-se na velocidade de vôo de falcão-peregrino que, visitante, vem fugindo do frio lá do norte. Carne na lata por muito tempo. Fartura. Raposa não matava não, mas atirava perto para passar susto e ver se não voltava. Dava um tempo, porém, sumido o medo e apertando fome, voltava sorrateira.

E assim, perdido em pensamentos e uma ponta de raiva por conta do sono, abriu o amanhecer no meio do nada. Perdeu a batida do garrotinho. Deu conta de que estava perto da casa do compadre Belarmino. Tocou pra lá.

Encontrou o amigo tirando leite no curral. O sereno da manhã teimava em transformar-se em chuva fininha e fria.

— Dia compadre, andando cedo? — Pois então compadre, correndo batida de boi fujão, noite toda e nada.
 — Passa pra dentro do curral, acabando aqui vamos tomar um café. Você está com cara de cansado. — Não é pra menos compadre, mas fico de cá mesmo. 
— Ara, passa pra dentro do curral homem! 
— Passo não. Se eu pisar aí esse boi me pega. Conheço bem ele. 
— Pega nada sô! Pula pra dentro! — Não compadre, esse danado já correu comigo. Se eu entrar é cabeçada certa.

— O que é isso homem, medo de boi? Tô te estranhando. Aí era demais. Não podia nem fingir medo. Bateu a botina na primeira tábua do curral e fincou os dois pés na lama de dentro.

Foi nada não. Mal sentiu o baque do corpo no chão, o boi de olhos bem abertos, como quem quer mesmo, veio com tudo pra cima dele, que ligeiro negaceou. O bicho foi lá adiante, virou nos cascos e investiu outra vez. Ele negou de lado, já jogando o chapéu na cara do desalmado.

Agora nem se afastou. Só virou o corpo e levou a cabeça do filho do cão à força, que fez vento pertinho dos fundilhos do moço. Deu de banda mais uma vez. A lama espalhava pra todo lado, a cada repicada de casco no chão.

Ligeiro passou, deu volta no corpo, rodopiou em salto único e caiu de lá do curral.

Sem fôlego, agachado com mãos apoiadas sobre as pernas, mal conseguiu sussurrar: — Falei, num falei compadre, que esse excomungado ia me pegar?

—Uai, compadre e pegou?






Jornal Correio em 6 de novembro de 2016

Bichos de verão




Chega a hora e não tem quem segure. O ciclo da vida raramente pode ser interrompido, quando não há interferência humana. O entardecer veio em pintura. Tantos tentaram reproduzir, um ou outro mestre na genialidade na lida com pincéis conseguiu. A maioria falha até em foto. A beleza ali é única, perfeita, imexível. Magri criou, ficou. A língua viva permite. Se fosse um poeta ninguém notaria ou então elogiaria sua “criatividade”. Como foi político, sindicalistas caíram de pau. Gosto de inventar palavras.

O imexível pôr do sol se faz. As primeiras luzes vão se acendendo na calmaria. Pronto, é o sinal. Brotam da terra aos milhares, em um balé confusamente sincronizado no chão e se atiram ao ar. As luzes as atraem e ali rodopiam até cansar. Ao pé de cada poste, um sapo, às vezes, dois. Calmamente, em banquete glutão, empacham-se e ficam mais redondos. Morcegos velozes/felizes soltam gritos de um alegre caçar fartura. É tempo de nascimento de filhotes. Estes virão fortes por mães bem alimentadas. A revoada tem que ser grande, poucos se salvarão. Assim se faz o enredo da vivência.

Nas casas, luzes amarelo fraco transformam o chão e parede em algo possuído. Movimentam-se como se vida tivessem. Hora da farra das Taruíras. Nossas lagartixas exibem barriga imensa de tanto festar. O aviso foi dado, vai chover. Aleluias aprenderam a ler o tempo. Carecendo voar, agora arrumam par para criar família. Não adianta brigar, jogar veneno. O máximo a fazer é desligar luz, aprender a ler os bichos, seus sinais, seus vôos, seus pios, seu andar, seu voar.

Ao amanhecer restarão milhares de asas e pequenos corpos espalhados por toda casa. As formigas, antes do sol se mostrar tímido, entre nuvens, em correria, se apressarão em carregar o máximo do espólio daquela batalha de sobrevivência. A nós cabe tentar varrer os restos. Missão ingrata, asas voam por sobre nós e pousam sem corpos logo ali. Bom seria um aspirador. Pano molhado, balde e muito torcer. Amanhã tem mais.

Estranho, por essas bandas as gentes quase todos, odeiam mandarovás e pouco tempo se tem de apreciar a beleza azul das borboletas imensas, em seu bater de asas silencioso e coreografado em que se transformarão. Esquecem das podas naturais que fazem. Cortam árvores em desverdejamento constante, inquietam a vida, a harmonia em prol de estética ou puro desprezo pelos viventes. Conhecer jeito dos bichos para controlar os das doenças sem matar as nossas borboletas, difícil não farão.

Folhas que abrigam ninhos tombam em tristeza. Mais uma mãe perdeu as crias. Temos abelhas e joaninhas de menos, disse uma amiga virtual que atende pelo delicado nome de Passarinho.
Aleluias. A prometida chuva derrama a cântaros. O ciclo se fecha mais uma vez. Pergunte aos bichos se sabem de horário de verão? As andorinhas migratórias abrem o verão. Uma só? Milhares. No velho mundo adoradas, aqui odiadas, “sujam” muito.

Pare um dia. Observe a chegada delas e a sincronia de um voar. O belo nos foi dado, basta querer ver. Hoje deve chover. Agradeça a sorte de poder se molhar. Aproveite o dia.






Jornal Correio em 30 de outubro de 2016

Aranha



Domingo quente esse. Parecia Palmas, no Tocantins, onde cada um tem um sol só para si, dizem. Estive lá e conferi. O meu sol estava guardado em caixa reluzente e me foi dado assim que desci do avião. Sorte que ao partir ele, o sol particular, me foi delicadamente recolhido. Acredito que, após passar por recarga, fica ali a espera do próximo visitante.
Domingo quente. Já havia corrido, nadado. Sentei à mesa imensa para almoço convidado. Olhava o tempo sem ver, quando movimento mínimo me atraiu atenção. Uma micro aranha papa-mosca passou aos pulos sobre minha mão, na maior falta de cerimônia. Passei a segui-la.

Displicentemente chegou à borda do copo. Em sucessivos giros observou o ambiente. Mexia-se aos pequenos trancos, erguendo a cabeça como buscar foco e escorregou até o fundo, rodopiando em passos de balé contemporâneo.
Dei leve toque no cristal, senti sua vibração, diapasão.

Ela pareceu me olhar aborrecida, afinal a imobilidade em que se pôs lembrava tocaia. Cara, se não pode ajudar não atrapalha! Pensei ter ouvido em sussurro amplificado pelo bojo do cristal. Pedi desculpas baixinho. Vai quê!
Subiu a parede gigantesca de vidro resmungando, acredito.

Lá do alto mirou o infinito. Estava com fome e os insetinhos miúdos não andavam por perto.
Uma mosca pousou ao alcance de seu bote. Mirou bem, deu uma dançadinha de lado. Desistiu. Muito grande. Se pego me leva, avaliou. Tomou rumo naquele mundo de panos, garfos, facas, taças, garrafas e pratos. Não eram obstáculo para seus olímpicos saltos. Foi até ao final da mesa, distancia considerável para tão minúsculo animal. Calculei a relação com a gente. Umas duas maratonas, talvez três. Não me pareceu cansada ao chegar à borda do abismo. Parecia irritada de fome. Ligeiro, peguei em fruteira uma banana nanica, já pintadinha. Esta atrairia mosquinhas de fruta, ou Drosophilas, para os que dominam as ciências dos bichos e seus nomes horrivelmente científicos. E isto é nome para se dar a uma mosca em miniatura? Quer outro exemplo? Didelphis marsupialis.

Sabe o quê é? Nada mais do que um gambá de terno e gravata. Imagine só em festa de muita pompa o anunciar:
Senhoras, senhores, o conde Sir Didelphis marsupialis e Lady Lutra longicaudis. Todos se viram em curiosidade e me entra um gambá e uma lontra na maior das prosas, falando alto e às gargalhadas. É pra acabar de vez com o pequi de Goiás e com a jabuticaba de Sabará.

Voltando à nossa amiguinha. A isca de banana não funcionou. Ninguém a visitou além de moscas verdes e uma maritaca sem medo, que pousou no respaldar de uma cadeira da mesa e ficou olhando gulosa.
O mar não estava pra peixe para a pobre aranhinha, pelo menos ali. Não pensou duas vezes. Em salto acrobático atirou-se ao infinito. Assustado ajoelhei para acompanhar a queda. Quase que encosto nariz na pequena. Ao pular lançou seu mais perfeito fio de seda e como trapezista ficou a balançar elegante. Teceu, teceu e chegou ao chão com classe. Tentei tocar o fio na tentativa de trazê-la junto, mas ela já tinha desaparecido entre pés de cadeira, mesa e os desenhos do piso.
Suspirei triste. Perdi minha companhia de fim de tarde.

Colocando o queixo entre as mãos, tornei a matutar e me disse em segredo, baixinho: domingo quente esse.






Jornal Correio em  23 de outubro de 2016
e
Jornal Voz Ativa  - Ouro Preto MG