Moleque nas cercas vivas. Criava ondas verde vegetal imitando um mar vertical. Trazia paz e lembranças de um mundo de água longe. O cheiro de maresia veio fundo enchendo pulmões. A espuma se formando a cada onda quebrada. As bolhas dos buraquinhos dos tatuis.
Senti cheiro de moqueca de Marlene e seus encantos culinários. Senti nos olhos e na garganta o gosto salgado de um tempo indefinido. Lágrimas são filhas do mar, mergulhei em onda imaginária, sentindo o prazer que quem só mergulhou conhece. Um abraço quase materno da água.
Um aperto carinhoso lhe segurando por todo o corpo. Cada milímetro. Vontade de virar peixe naquele imenso útero protetor. Vento trouxe outra onda verde, casal de bem-te-vis surfaram alegres entre a folhas. Ali deve ter ninho. Melancolia tomou conta. Tinha acabado de fechar a última página de “A morte de Ivan Ilitch”. Tolstoi produz um efeito estranho em quem o lê. A desconstrução da alma humana de seus personagem é certeira e direta. Sei que vou ficar dias impregnado de Ilich.
A onda verde. Vento morno para um outubro que não se faz anunciar. A beleza da primavera ainda se deixa notar tímida com seus ipês brancos, flores que lembram lenços de linho, a balançar em despedida de navio quando, lentamente, manobra em um desatracar do cais do porto.
O vento agora segura, em congelada imagem, andorinhas. Pairam em leveza, observam. O vento é sólido amparo para elas, gaviões e abutres. A maré virou. Agora em rodopios a cerca viva balança histérica. Parecem saias de monjas empurradas para o alto. Os bem-te-vis, juntinhos, pousam no chão. Suas penas também esvoaçam em descabelo, talvez preocupados com os filhotes, assustados com corcovear dos galhos como brinquedo de parque de diversão. Lembranças voltam a girar com aquele quase redemoinho.
Um telefone toca, um cão late, um carro passa com música alta e de péssima qualidade. Quem dotado de bom gosto musical colocaria música dessa altura numa merda de carro? Dizem que agora dá multa. Tá, mais uma lei para não ser cumprida. E tem quem fiscalize?
Já reclamei mil vezes dos imbecis que ocupam vagas de idosos e deficientes em shoppings, clube e supermercados. Apareceu alguém? Alguma “autoridade” se dispôs a sair do conforto de seu nada fazer para agir? Nunca!
O vento verde aquietou-se. Parecia cansado. O mormaço subiu em golfadas. O céu não estava com a mínima vontade de mostrar chuva. Concordo, e lá isso é prosa para um domingo? Avisei, estava tomado por Ilich. Não poderia ser de outra forma. Até passarinho na muda emudece.
Acho que vou ler algum “escritor maldito”. Quem sabe melhoro? Quem sabe reler Anthony Burgess e sua Laranja Mecânica? Não, quero não. Vou me refugiar nas belezas do mágico Manoel de Barros, pois ali sim um viver feliz guarda tons de serenidade:
“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo.”
E o vento verde em arco íris se transformou. Belo domingo!
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