segunda-feira, maio 28

Prá casar




Crônica no Jornal clique AQUI


Abriu os classificados de seu jornal matinal por acidente, nunca olhava aquele caderno, "perda de tempo", pensava ele. Como estava com tempo deu uma passada d'olhos naqueles quadradinhos anunciando desde armários usados a promessas de desfazer feitiços, curas contra mau olhado, terrenos no paraíso e até prazeres inimagináveis:

"Louro, um metro e noventa, musculoso, inteligente, atende a domicílio ou em motel homens, mulheres ou casal. Completo."

Ficou a imaginar o que seria o tal de completo, talvez a garantia que não faltaria no moço algum pedaço? O "inteligente" também chamou a atenção. A vida anda dura mesmo, com tantas qualificações e ainda tem que colocar um anúncio de três por três em meio a outros milhões daquelas páginas? Alguém chegaria a ler? Bom certamente, pois ele o fez. Por puro acidente que fique bem claro, justificou para si mesmo.
Passou o dedo sobre tantos outros: "Morena, olhos verdes, universitária, pele bronzeada, corpo escultural, atende executivos, total sigilo." O título do anúncio era "Morena fogosa". Endireitou-se na cadeira, curiosidade aguçada pelas ofertas daquele mercado de carnes e almas.


"Vendo máquina usada de overlock, ótimo estado procurar..." Pulou esse, que diabos seria overlock? Vai saber...

"Procura-se homem de bem para casar". Parou o dedo, levantando a sobrancelha:
"Mulher de meia idade, nem muito bonita, nem muito feia, situação financeira remediada, porém com emprego fixo, tímida, sem atrativos físicos especiais, procura homem honesto para compromisso sério, para casar. Ligar para ..."

A primeira reação foi de riso: "só pode ser gozação", pensou com seus botões. Ou quem sabe seria algum daqueles códigos secretos que só poderiam ser entendidos pelos que de alguma trama ou conspiração participassem, como se vê no cinema? Matutou. Chegou a mudar de página, mas a curiosidade o fez voltar. Procurou o estranho anuncio até de maneira afobada, ansioso. Custou a encontrá-lo perdido entre tantas bicicletas velhas, balcões frigoríficos em bom estado, jogo de panelas semi-novos, aluguéis e vestidos de noiva e claro outras máquinas de overlock - o que seria aquilo? Não podia esquecer de perguntar para alguém de sua confiança, não queria parecer um idiota desinformado.

Com o auxilio de uma régua recortou o anúncio procurado e instintivamente guardou-o no bolso da camisa.

Seu dia passou como sempre, arrastado. Parecia que nada de novo acontecia em sua vida. Telefonemas aborrecidos, reuniões entediantes, conversas sem graça e sentido com os colegas sobre futebol, que ele detestava, ou fofocas de todo tamanho sobre os ausentes, odiava assuntos assim até mais do que futebol.

Olho no relógio a cada dois minutos, aguardando o fim do expediente, o tempo não passa no trabalho.

Entre um bocejo e outro ou um espreguiçar disfarçado, mais um telefonema chato, um ou outro memorando escrito através de modelo já pronto - daqueles que só se mudam as datas para não se dar ao trabalho nem de criar algo novo, lá se foi levando de rastos, aos barrancos e trancos o dia.


Despediu-se mudo de todos e seguiu para casa, não sem antes parar em um bar e estalando os dedos e apontado a geladeira a pedir sem som uma cerveja gelada. Seu único prazer em dias de trabalho era esperar os fins de semana, não sabia por que, motivo especial não havia, a não ser pela glória de não ter que ver ou ouvir aqueles do escritório, no mais todos eram iguais: café da manhã na padaria, o jornal na praça, o bar, as cervejas, almoço sozinho, cochilo, ressaca suportável, lanche leve, banho, televisão ou um livro e cama.

Bebeu o primeiro copo de um gole só, o amargo da bebida desceu suavemente doce. Bateu a mão no bolso em busca de um invisível maço de cigarros que já não o acompanhava há mais de dez anos, parara de fumar.

Os dedos porém repicaram naquele pedaço de papel de jornal amarrotado que já havia até esquecido. Curioso, tornou a observá-lo.

"Para casar" leu e releu atento. Já havia sido casado, um fiasco, foram poucos anos e nada sobrou, nem filhos, e por incrível que pareça nem mágoas ou fotos ficaram. O quê levaria alguém a publicar anúncio assim em épocas de tanta violência e pessoas mal-intencionadas? Um perigo, um perigo.

Cerveja quase no fim. Pediu outra, coisa rara em dia de semana.

Ligaria. O que tinha a perder? Pelo menos ouviria uma voz diferente daquelas que estava acostumado em seu vazio dia-a-dia.

Com certo desconforto teclou em seu celular o número do anúncio - quem sabe dá ocupado e tiro essa ideia maluca da cabeça? - Sinal de chamada se fez ouvir com força em seu ouvido. Tocou uma, duas, três vezes. Aflito desligou. "Que bobagem, olha a que ponto cheguei!"

Saboreou mais um pouco da sua cerveja pensativo. Ouviu passar às suas costas um grupo de colegas de seu trabalho em normal e antipático estardalhaço, vociferando como se fossem os únicos, os donos no mundo. Encolheu-se ao máximo, e em mimetismo instantâneo virou parte do balcão para que não o notassem, sentiu mais antipatia ainda de sua vidinha.

Com raiva dedilhou novamente o número: tímida, ela assim se descreveu, talvez da voz mansa e baixa, era tudo que ele queria.

Desta feita o telefone tocou até a ligação cair. Tentou outra vez, de novo e de novo. Nada.

Frustrado foi para casa. Morava sozinho em pequeno apartamento quarto/sala. Sua janela sem vista alguma dava sim para gigantesco e iluminado relógio de algum banco. Ali também contava cadenciadamente os minutos de sua existência.

Tentou comer alguma coisa, mas a fome não passava na garganta apertada.

Sentado na cama tentou o discar novamente.

Desta vez uma voz masculina rugiu na outra ponta. Meio assustado conseguiu sussurrar:

- Estou ligando pelo anúncio.

- Anúncio? Que anúncio, mano?

- O do jornal, sobre o casamento.

- Casamento? Jornal? Olha aqui cara, não sei qual é a sua, mas deve ser engano.

- Mas o número...

- Olha aqui, comprei essa merda de telefone não tem nem dois meses e já me arrependi desse mico, esta não é a primeira ligação esquisita que recebo e pelo visto não vai ser a última. E quer saber, sai fora meu.

- Mas o que... de quem você...

De lá agora o sinal de ocupado.

Desolado, se jogou no chão frio e encolhido como criança em fetal posição chorou um amor que nem existira.

Acordou suando em bicas no meio da madrugada. Em sonhos, agora determinado encontrara a solução:

- Classificados boa noite!
- Gostaria de publicar um anúncio.
- O texto, por favor.

- Homem de meia idade, nem muito bonito, nem muito feio, situação financeira remediada, porém com emprego fixo, tímido, sem atrativos físicos especiais, procura mulher honesta para compromisso sério, para casar. Ligar para ..."






Jornal Diário de Uberlândia em 27 de maio de 2018

William Stutz
Veterinário e escritor

segunda-feira, maio 21

Carona



No jornal clique AQUI


Moço novo, primeiro emprego. Tinha promessa de trabalhar fora do Brasil, aprendizado seria sem tamanho. Daí a conquistar o mundo um pulo. O giro do viver o tirou da rota. O lá fora virou aqui dentro, em escritório enfumaçado de tanto cigarro que seu chefe queimava. Era um atrás do outro, sem trégua para os pobres bofes. O pigarro, os acessos de tosse, o chiar da voz, eram fundo musical de sua aborrecida rotina de fazer contas e mais contas. Elaborava fórmulas de comida de bicho. Era ração para tudo quanto é bicho de criação. Odiava! Queria o campo aberto, o cheiro de terra depois da chuva, o vento a carregar pólen e passarinho. Estradas de terra tinhosas, poeira com pouco sol, atoleiro com um quase nada de água, massapé onde tudo brota fácil. Queria banho de rio com a namorada, riso fácil. Queria conhecer mesmo era o interior bravo onde ainda havia caçadas de onça e “almoncas” de capivara guardadas na lata. Queria sumir desse inferno urbano, desse chefe defumado. Queria distância da louca ambição que treinamentos e conversas com graúdos e colegas de trampo lhe enfiavam na cabeça, dia após dia. Pink Floyd estocava em sua mente como tortura de Laranja Mecânica:
“Money, get away./Get a good job with more pay and you're okay./Money, it's a gas./Grab that cash with both hands and make a stash. (…)”.
 
Queria ser estradeiro, à conquista agora de seus próprios caminhos. Ali plantaria milhões de árvores, margaridas a ladear seus trechos. Não haveria atalhos, pois o caminho era sempre prazeroso. Córregos com mil borboletas a enfeitar os cabelos de sua amada, pé no chão, vestido de chita, descalço. Sombra boa para cochilar olhando nuvens e passarinhos, lá bem no alto quase sumindo, pequenos pontinhos rodopiantes em fundo de um azul, azul.

Acordou do pensar com a tosse do chefe. Tosse gosmenta, asquerosa. O pulmão hora estoura.
Atrás de morro tem morro, como sempre disse amigo antigo, que sumiu no mundo.
Sentindo que o rapaz não aguentava mais o ali ficar, o mandaram para o campo, vender ração e ideias. Aceitou em um já tão ligeiro, que assustou as gentes. Ia embora dali e isso bastava. Escolheu região pouco aberta para a empreita, a ponta de Minas, Goiás e um longe Maranhão. Pelo menos até Carolina, com esticadas a São Raimundo das Mangabeiras e, vez ou outra, a Benedito Leite, já na divisa com o Piauí. Ganhou o mundo, esqueceu de tudo de ruim. De lembrança carregou por bom tempo um pigarro de fumante passivo.
A estrada virou sua fiel companheira. Asfalto, chão ou pedra pouco lhe importava. Ria e cantava sozinho. Chorava às vezes, mas não sabia se era felicidade ou algum vazio que nunca acabava. Estranhava, pois tinha tudo e mesmo assim, de vez em quando, sentia que nada tinha.
Quantas vezes deitou-se no capô do fusca da tal empresa, parado em pátio de posto de gasolina para dormir. Um dia viraria estrela.

Conheceu gente de tudo que era jeito e tipo, do bem, do mal, ricos e pobres, andou por cidades grandes, currutelas, fazendas sem fim e muitos sítios miúdos. Vendas e praças de todos os jeitos e formas. Andava muito, vendia pouco. Não tinha o menor jeito para empurrar produto que vendia a quem dele não carecia. Chegou a tirar de cabeça de produtor que queria comprar, pois provava no riscado que não ia ser de valia nenhuma para ele. Ia perder o emprego, ligava não. O que importava era o que estava vivendo. Aprendizado que carregaria para o resto de sua vida, mas o vazio também iria sempre junto.

Certa feita, saindo de uma fazenda, pronto para visitar outra estrada de muito pó, topou com velhinho a pedir carona, carregando embornal. Tempo bom aquele, podia-se dar carona sem medo.
Parou beirando o barranco.
− Vai prá onde senhor?
− Pra onde Deus manda, mas nesta hora sigo para meu sítio duas légua adiante.
− Entra aí, é o meu caminho, levo o senhor de bom grado.
− Ô meu filho, não sabe a caridade que me faz. Estas pernas eradas já não comandam o trote, canso fácil. Toda semana é essa latumia de passar na vila para comprar coisinha ou outra. Aí tomo uma canjebrina da boa na venda do Seo Canveco e toco caçar carona. Quase não passa carro essas horas por aqui, foi São Cristovão que lhe mandou.
Já iam de prosa solta caminho afora, quando o velhinho pousou a mão no braço do moço e meio sem jeito falou baixo, como se tivesse mais gente no carro:
− Pode parar um instantezinho, é que a bexiga está carregada, coisa de velho.
− O que é isso, é prá já!

O homem desceu com a peculiar dificuldade de quem anda de fusca e encostou-se numa bela cerca paraguaia esticadinha. Os mourões todos com a cabeça sextavada, pintadas de branco. Ao fundo se via maravilhosa alameda bem arborizada, árvores centenárias a fazerem guarda por todo caminho até a sede. Uma sombra só. A sede um primor, varanda ampla, janelas azuis enormes, jardim bem cuidado, um grande lago ladeado por pomar de dar inveja. Mais ao fundo, um bosque dava a impressão de que aquela casa jamais seria quente no verão mineiro. Uma brisa balançava suave a copa das árvores e lambia cálida a lavoura de milho ainda baixinha.
O moço estava em êxtase admirando tanta beleza. Saiu do transe com o bater da porta do carro e o velhinho entrou com cara alegre de alívio.
− Menino nem te conto, como é bom fazer um belo xixi no que é nosso!
O moço tomou um susto danado, olhando a beleza da aquarela que se abria diante deles e perguntou quase engasgado:
− Essa maravilha é toda sua!?
O velho olhou pela janela e num sinal de “toca prá frente” respondeu sem muito pensar.
− Não sô, estava falando da minha botina!






Publicado em Diário de Uberlândia em 20 de maio de 2018

segunda-feira, maio 14

Improviso




Crônica  no Jornal, clique AQUI


Antes de perguntar conto um fato acontecido, de fato. Convém lembrar que a chance do “jeitinho brasileiro” dar certo, por certo vai dar merda. Escute o que conto.
Não, não estou a repetir palavras por falta de vocabulário. Tenho por mania buscar sonoridade canora quando escrevo, pois sinto o escrever como composição musical. Mania e não improviso.

Quem se deliciou com o“Tigre e a Neve” dirigido pelo genial Roberto Benigni e estrelado por ele e Nicoletta Braschi, percebe que o improviso ali deu certo sempre, ma prego, são tutti buona gente italiana e no mais é filme. Ainda assim convém lembrar do triste final de “A vida é bela”, com o mesmo Benigni. Ali morava um improviso, Toscano na verdade, mas presente.

O contar: Fim de semana em fazenda de compadres. Lá pelas tantas o compadre sugere um passeio de lancha. Não uma lancha qualquer. Refiro-me a uma super marítima, gigante, com cabine, sonar e tudo mais. Faltava uma coisa só. Marcador de combustível. Bom, havia um. Era um cabo de vassoura com riscos a canivete, por meio dos quais se adivinhava mais ou menos quanto tinha no tanque. Toca a andar. Não foi nada não, quando deu na barra do Tejuco, no meio da represa, apagou geral. Breve resumo: saímos lá pelas 10 da manhã e só conseguimos voltar à fazenda na volta da meia noite. Não me alongo por conta do espaço, mas prometo a história com detalhes para breve.

Aí, agora pergunto, diante do acontecido, já sabendo resposta. Quem nunca passou por situação de ter que improvisar? Surpresas do inesperado em que se tem que dar um jeito. Seja no trabalho, nas relações pessoais, cotidiano mesmo. Assim, no repente, se vira rapaz, a bola não pode cair.
Você está andando na rua e do nada aparece um microfone quase dentro de sua boca:
- O quê o senhor acha do aumento do combustível de jato supersônico?
- Qual sua opinião sobre o aquecimento global na salinidade do mar e conseqüentemente na menopausa das baleias jubarte?

Você está tranqüilo no teatro, a peça acaba e alguém lá do palco resolve escolher uma pessoa da platéia para falar sobre as emoções que sentira durante o espetáculo. Advinha onde o spot clareia? Exatamente, em pleno brilho de fogo-fátuo! Logo você, que entediado dormiu quase o tempo todo. Ah! E tem a chata da moça a seu lado, que toda empolgada te agarra pelo braço e te coloca bem no meio do palco, batendo palmas, animando a todos. Ela foge pela coxia e você fica lá.
Balbucia um terrível improviso e sai de fininho amaldiçoando a hora em que resolveu acordar naquele dia.
Improviso não pode dar certo.

Lembrei de história muito contada do bebum que, sem norte, entrou em uma igreja e foi sentar-se na primeira fileira, bem diante do padre. Era hora da homilia. Atento, bom, na medida do porre, prestava atenção. O padre falava da passagem em que Madalena fora salva do apedrejamento. Na empolgação comum aos sacerdotes recém-ordenados, abriu os braços e teatralmente exclamou:
-“Aquele que nunca errou que atire a primeira pedra!”
O bebum olhou para um lado, olhou para o outro e não encontrando pedra, arrancou a velha botina jogando-a com força total, acertando o peito do padre em cheio. Este, assustado, caiu de costas com o impacto e com olhos de espanto perguntou:
- Meu filho, você nunca errou!?
- Dessa distância não seu padre!

Pronto. Puro improviso. Não tem pedra, caça com botina mesmo. Óbvio que não poderia dar certo.
Certa feita, dia de meu aniversário, resolvi não avisar ninguém e não fazer comemoração alguma. Tinha em casa uma dúzia de latinhas de cerveja fora da geladeira, um bolinho de padaria de meio quilo para comemorar com meus filhos, uma vela a assoprar e só.
Nem te conto. Quando deu na volta das dez da noite, parecia procissão de carros a chegar. A turma saiu de um casamento em igreja onde festa não haveria e alguém teve o lampejo de meu aniversário. Toca todo mundo pra minha casa. Não sabia o que fazer. Aflição tomou conta, a começar pelo tamanho da casa, que não iria caber aquele mundaréu de gente.

Mesmo na carreira a pedir desculpas, adiantou não. Um pegou as cervejas colocando-as no freezer e logo, ainda mornas, as dividiu em copos da Cica, dando meio copo para cada um. O bolo magicamente foi dividido, não sem antes um sonoro cantar de parabéns. Abraços fraternos e foram todos embora. Emocionante demonstração de amizade, mas a “festa” de improviso, fiasco total.
Se você for um Eric Clapton, um B. B. King, astro do jazz, da guitarra ou outro instrumento qualquer, pode até ser. Mas na vida real tenho que concordar com um amigo, que outro dia com convicção e acertiva nos disse:
A única coisa que tem que funcionar de improviso mesmo é velório.
Sai fora!






Publicado em Diário de Uberlândia em 13 de maio de 2018




segunda-feira, maio 7

Diário de Viagem


https://cerradodeminas.blogspot.com.br/2018/05/diario-de-viagem.html



Beira de pasto, dia abrasador, à distância recém-conhecida Morada do Sol. O que me impressiona é a cordialidade das pessoas e a fartura, a generosidade da terra. Não há quintal sem pimentas várias: malaguetinhas, redondas bodes, cores e formatos diferentes, muitas.

Frutas o que há: carambolas, tamarindos, cajueiros, mexerica enredeira/corriqueira, maracujá a cobrir o todo. Árvores centenárias. Mangueiras, largos e viçosos troncos, vestidas de musgo verde-aveludado, jabuticabeiras, cajás-manga. Apesar da aparente pobreza, o sorriso é fácil e sincero. Em todo canto galinhas de canelas secas. Pilhas infindáveis de telhas de barro antigas, provavelmente vindas de roça distante, aguardam anos a fio serventia outra vez.
Vem não, ficam assim largadas sem nada a cobrir.

Ali bamburramos, é por elas que começa sempre nosso trabalho, é lá que se encontram nossos escorpiões.

Vingança das telhas pelo abandono? Criam, albergam e protegem escorpiões. Centenas. Sol escaldante, as costas logo doem, o suor encharca rosto e roupa, tudo magicamente desaparece, some. Olhares apenas para o fazer, começa nossa caçada. Pé-de-vento, sombra e tento, do miúdo vermelho olho preto. As folhas dos bacuris fazem chover em céu sem nuvens, o barulho da chuva é eterno. Expedição de trabalho em algum lugar Minas afora. Ao fundo sempre brejo, os quintais seguem mata adentro, são infinitos.

As acerolas intrusas decoram de vermelho os mandiocais, sempre carregadas, sem pragas a fazer frente, seguem em doce azeda fartura, ao lado tapetes rosados sob espinhentas paineiras parecem esperar procissão da paixão santa. Sento cansado à sombra de imensa ameixeira. Aqui tudo é superlativo. Retomo o fôlego.

Fogo-apagou pia mansa. Bandos e mais bandos de tucanos, canários da terra, saíras de mil cores. Saracuras: os potes, sempre três. Magnólias floridas perfumam um Brasil colonial. Felizmente o tempo, aqui parou. As casas construídas ao acaso, adobe, tijolo novo, telha comum. Madeira lavrada, outra roliça, bruta. Mistura do que se tem. Faz-se. No escuro da casa devagar se acostuma a vista. Janelas sempre fechadas, a luz fica lá fora. Escuro sem tristeza. Quadros nas paredes irregulares enfeitam. Fotos retocadas à mão, molduras redondas. Os portais baixos obrigam reverência. Abaixa-se para transpô-los, sempre em respeitoso silêncio: - Dá licença?

O fogão de lenha sempre aceso - seus cheiros atiçam cedo a fome. Na varanda do fundo a água dos batedouros corre quintal abaixo. Os patos se fartam no lodo. O rego é ladeado de taiobas. Longa e pesada semana. Os escorpiões são muitos, centenas. Prática de uma vida. Aqui se busca, se aprende os mistérios de tão antiga e bem-sucedida sobrevivência. Voltando, tentamos aplicar o que a terra nos ensina calada. Expedições pelo Brasil, um repassar do pouco saber, nosso trabalho.
Adorava o que fazia, saudade doída.


 


Publicado em Diário de Uberlândia em 06 de maio 2018

terça-feira, maio 1

Coisas de Minas




A venda era igual a outras tantas espalhadas por esse mundo de meu Deus. Duas portas de dobrar, madeira de lei surrada, gasta de tanta chuva e sol. Pintura desbotada mostrava camada por camada as tantas cores do passado de uma árvore que fora grande na mata, até tombar em estrondo e virar tábua em alguma serraria. Um bom observador diria que a primeira tinta foi azul, com muitas demãos em óleo grosso. As outras cores vieram cada vez mais ralas. Preguiça ou falta de recurso, vai saber.

Do lado de fora três mesinhas também de madeira, gastas e manchadas de tanto cotovelo e marcas de rodelas de garrafas de cerveja. Algumas traziam escritos e desenhos feitos a maioria com canivete. Em uma delas destacava um coração em linhas tortas: Adelano Carlos e, sob monte de arranhados aparentemente feitos com raiva ou desgosto, um nome ilegível. Amor frustado ou ciúmes incontrolado. A data ainda aparecia: 1967


Ano curioso. Bom, acho que todos os anos o são, principalmente vistos de longe. Mas, o que aconteceu de tão especial nesse ano? Tinha a guerra do Vietman, Guevara foi morto no vilarejo de La Higuera, na Bolívia e Dr. Barnard fez o primeiro transplante do coração, que poderia ser do pobre em sofrimento que rabiscou a mesa do boteco. Contudo, este paciente morreu alguns dias depois. O micro-ondas foi lançado em 1967, Os Beatles lançaram o genial e imbatível álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band e, do nada, estourou a guerra dos seis dias. Ano louco. Mais de meio século e os anos, todos eles, continuam loucos. Corações continuam a ser rabiscados em mesas, troncos de árvores e bancos de praça.

Dentro do boteco um balcão imenso de madeira, também sofrida pelo passar dos anos, envelhecia em silêncio. Abaixo de sua tampa, como uma vitrine, mostrava doces misturados com maços de cigarro, lâminas de barbear, pilhas Raiovac, marias- moles cor-de-rosa, paçoquinhas, chiclestes e caixas de ramonas, que conviviam pacificamente. De resto, sacos de arroz, feijão e quirera. Sementes e saquinhos, venenos para todos os “males”. Sobre o balcão um cabo de vassoura amarrado com arame, de onde pendiam gordas linguiças. Na prateleira do fundo, garrafas com bebidas de todas as cores, sabores e teores. Pinga de engenho no carote era de graça. Uma cabacinha de pescoço ficava pendurada na torneirinha, era só chegar e servir, cortesia da casa.



Ia-me esquecendo que, beirando as mesas, duas imensas árvores jogavam sua fresca sombra bar adentro. Calor lá não tinha graças a elas. E o resto das cidades matando suas árvores. Estupidez sem fim.

Em cada árvore uma gaiola. Em uma um canarinho muxoxo das penas engrenhadas, na outra um pássaro preto cantador que só.

O dono da venda, ou boteco se quiser assim, dormitava a espera de fregues.

O arrastar da pesada cadeira na calçada o tirou de um sonho agradável que só.

Pegou o pano de secar, sempre aninhado no ombro, passou-o no balcão e nos olhos. Sem pressa pegou uma cerveja bem gelada e copo para o freguês conhecido. Mas quem não era, naquela pequena vila nos confins das Gerais?

- Ô Seo Samuel, tudo em paz?

- Tudo meu filho. Tudo na mais santa paz.

Seo Samuel arrastou outra cadeira da mesa e como de costume sentou-se com o freguês. Ficaram os dois a admirar o canto do Pássaro Preto. Tempo passando, segunda, terceira cerveja e o bicho numa cantoria sem fim.

O freguês encantado tentou o senhor:
- Seo Samuel, quanto o senhor me vende esse danado de tanto canto?

Coçando a barba por fazer, pensou, pensou e manso respondeu - Ah sô, uns duzentos contos a gente pode fazer negócio.

- Sei - murmurou o rapaz
- E o canarinho feio e caladão?
- Eita, esse por menos de oitocentos não começo nem a negociar!
- Mas que história é essa? Mais sem lógica! Um canta sem parar e tu quer 200 contos. Para o outro emburrado, triste e feio, me pede 800. Endoidou de vez?

Samuel matreiro, olhou para um lado, olhou pra outro, passou o pano na marquinha deixada pela cerveja, olhou fundo no olho do frêgues.

- Sabe o que que é, se quiser vai ter que levar os dois.
Não há de ver que quem compõe pro pássaro preto é o canarinho!

Ê Minas;

“Minas, são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais." Guimarães Rosa






Veterinário e escritor
Publicado em Diário de Uberlândia em 29 de Abril de 2018