segunda-feira, maio 28

Prá casar




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Abriu os classificados de seu jornal matinal por acidente, nunca olhava aquele caderno, "perda de tempo", pensava ele. Como estava com tempo deu uma passada d'olhos naqueles quadradinhos anunciando desde armários usados a promessas de desfazer feitiços, curas contra mau olhado, terrenos no paraíso e até prazeres inimagináveis:

"Louro, um metro e noventa, musculoso, inteligente, atende a domicílio ou em motel homens, mulheres ou casal. Completo."

Ficou a imaginar o que seria o tal de completo, talvez a garantia que não faltaria no moço algum pedaço? O "inteligente" também chamou a atenção. A vida anda dura mesmo, com tantas qualificações e ainda tem que colocar um anúncio de três por três em meio a outros milhões daquelas páginas? Alguém chegaria a ler? Bom certamente, pois ele o fez. Por puro acidente que fique bem claro, justificou para si mesmo.
Passou o dedo sobre tantos outros: "Morena, olhos verdes, universitária, pele bronzeada, corpo escultural, atende executivos, total sigilo." O título do anúncio era "Morena fogosa". Endireitou-se na cadeira, curiosidade aguçada pelas ofertas daquele mercado de carnes e almas.


"Vendo máquina usada de overlock, ótimo estado procurar..." Pulou esse, que diabos seria overlock? Vai saber...

"Procura-se homem de bem para casar". Parou o dedo, levantando a sobrancelha:
"Mulher de meia idade, nem muito bonita, nem muito feia, situação financeira remediada, porém com emprego fixo, tímida, sem atrativos físicos especiais, procura homem honesto para compromisso sério, para casar. Ligar para ..."

A primeira reação foi de riso: "só pode ser gozação", pensou com seus botões. Ou quem sabe seria algum daqueles códigos secretos que só poderiam ser entendidos pelos que de alguma trama ou conspiração participassem, como se vê no cinema? Matutou. Chegou a mudar de página, mas a curiosidade o fez voltar. Procurou o estranho anuncio até de maneira afobada, ansioso. Custou a encontrá-lo perdido entre tantas bicicletas velhas, balcões frigoríficos em bom estado, jogo de panelas semi-novos, aluguéis e vestidos de noiva e claro outras máquinas de overlock - o que seria aquilo? Não podia esquecer de perguntar para alguém de sua confiança, não queria parecer um idiota desinformado.

Com o auxilio de uma régua recortou o anúncio procurado e instintivamente guardou-o no bolso da camisa.

Seu dia passou como sempre, arrastado. Parecia que nada de novo acontecia em sua vida. Telefonemas aborrecidos, reuniões entediantes, conversas sem graça e sentido com os colegas sobre futebol, que ele detestava, ou fofocas de todo tamanho sobre os ausentes, odiava assuntos assim até mais do que futebol.

Olho no relógio a cada dois minutos, aguardando o fim do expediente, o tempo não passa no trabalho.

Entre um bocejo e outro ou um espreguiçar disfarçado, mais um telefonema chato, um ou outro memorando escrito através de modelo já pronto - daqueles que só se mudam as datas para não se dar ao trabalho nem de criar algo novo, lá se foi levando de rastos, aos barrancos e trancos o dia.


Despediu-se mudo de todos e seguiu para casa, não sem antes parar em um bar e estalando os dedos e apontado a geladeira a pedir sem som uma cerveja gelada. Seu único prazer em dias de trabalho era esperar os fins de semana, não sabia por que, motivo especial não havia, a não ser pela glória de não ter que ver ou ouvir aqueles do escritório, no mais todos eram iguais: café da manhã na padaria, o jornal na praça, o bar, as cervejas, almoço sozinho, cochilo, ressaca suportável, lanche leve, banho, televisão ou um livro e cama.

Bebeu o primeiro copo de um gole só, o amargo da bebida desceu suavemente doce. Bateu a mão no bolso em busca de um invisível maço de cigarros que já não o acompanhava há mais de dez anos, parara de fumar.

Os dedos porém repicaram naquele pedaço de papel de jornal amarrotado que já havia até esquecido. Curioso, tornou a observá-lo.

"Para casar" leu e releu atento. Já havia sido casado, um fiasco, foram poucos anos e nada sobrou, nem filhos, e por incrível que pareça nem mágoas ou fotos ficaram. O quê levaria alguém a publicar anúncio assim em épocas de tanta violência e pessoas mal-intencionadas? Um perigo, um perigo.

Cerveja quase no fim. Pediu outra, coisa rara em dia de semana.

Ligaria. O que tinha a perder? Pelo menos ouviria uma voz diferente daquelas que estava acostumado em seu vazio dia-a-dia.

Com certo desconforto teclou em seu celular o número do anúncio - quem sabe dá ocupado e tiro essa ideia maluca da cabeça? - Sinal de chamada se fez ouvir com força em seu ouvido. Tocou uma, duas, três vezes. Aflito desligou. "Que bobagem, olha a que ponto cheguei!"

Saboreou mais um pouco da sua cerveja pensativo. Ouviu passar às suas costas um grupo de colegas de seu trabalho em normal e antipático estardalhaço, vociferando como se fossem os únicos, os donos no mundo. Encolheu-se ao máximo, e em mimetismo instantâneo virou parte do balcão para que não o notassem, sentiu mais antipatia ainda de sua vidinha.

Com raiva dedilhou novamente o número: tímida, ela assim se descreveu, talvez da voz mansa e baixa, era tudo que ele queria.

Desta feita o telefone tocou até a ligação cair. Tentou outra vez, de novo e de novo. Nada.

Frustrado foi para casa. Morava sozinho em pequeno apartamento quarto/sala. Sua janela sem vista alguma dava sim para gigantesco e iluminado relógio de algum banco. Ali também contava cadenciadamente os minutos de sua existência.

Tentou comer alguma coisa, mas a fome não passava na garganta apertada.

Sentado na cama tentou o discar novamente.

Desta vez uma voz masculina rugiu na outra ponta. Meio assustado conseguiu sussurrar:

- Estou ligando pelo anúncio.

- Anúncio? Que anúncio, mano?

- O do jornal, sobre o casamento.

- Casamento? Jornal? Olha aqui cara, não sei qual é a sua, mas deve ser engano.

- Mas o número...

- Olha aqui, comprei essa merda de telefone não tem nem dois meses e já me arrependi desse mico, esta não é a primeira ligação esquisita que recebo e pelo visto não vai ser a última. E quer saber, sai fora meu.

- Mas o que... de quem você...

De lá agora o sinal de ocupado.

Desolado, se jogou no chão frio e encolhido como criança em fetal posição chorou um amor que nem existira.

Acordou suando em bicas no meio da madrugada. Em sonhos, agora determinado encontrara a solução:

- Classificados boa noite!
- Gostaria de publicar um anúncio.
- O texto, por favor.

- Homem de meia idade, nem muito bonito, nem muito feio, situação financeira remediada, porém com emprego fixo, tímido, sem atrativos físicos especiais, procura mulher honesta para compromisso sério, para casar. Ligar para ..."






Jornal Diário de Uberlândia em 27 de maio de 2018

William Stutz
Veterinário e escritor

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