segunda-feira, junho 4

Noite canora





Pela greta da janela, a lua quase cheia esgueira e entra colorindo ambiente em um azul pálido mágico.
Uma leve brisa também serpenteia e acha caminho pelo palmo de espaço aberto, rodopiando afoita pelas paredes. Sigo com os olhos fechados. Ligeireza felina vem buscar abrigo e se aquecer bem junto a mim. Sinto um arrepio.
O frio não quer ir embora. No radinho, Blitz:

"Longe de casa/ A mais de uma semana/ Milhas e milhas distante/
Do meu amor/ Será que ela está me esperando?/ Eu Fico aqui sonhando/ Voando alto/ Tão perto do céu"

É isso aí minha amiga, meu amigo, sou daqueles que não suporta televisão no quarto. Claro que já vivi essa horrível mania, até descobrir que dormia pessimamente. Os clarões mais pareciam relâmpagos artificiais, foguetório sem explosão. Entravam em meus sonhos e cheguei a ponto de piscar jingles. Ouvia vozes, locutores e acordava assustado a cada propaganda de eletrodoméstico ou supermercado. Fico me perguntando o motivo de tanto gritarem nas propagandas... irritantes.

Acho que por anos a fio não passava da fase do adormecer. Aquele leve dormir de bicho do mato em que um entrar e sair, qualquer coisa, te acorda. O corpo em ponto morto, mas motor funcionando, cadenciado, bem regulado. As pernas escoiceiam longe de seu querer e os músculos ganham vida própria. É nessa fase do sono, dizem, que passamos pela sensação de estar caindo ribanceira abaixo e acordamos no susto, Vó dizia que era momento que estávamos crescendo em tamanho. No tempo que longe vai de televisão no quarto, sempre ouvia um cara aos berros: É SÓ ATÉ SÁBADO! Vociferava quase espumando pelos cantos da boca como siri no mangue.
Não aguentei tantas prestações sem juros que, mesmo imaginárias, me tiravam o sono.

O radinho, excelente companhia, bem baixinho te embala manso.
Conto e saibam que não estou recebendo jabá algum por isto.
Descobri uma rádio deslumbrante, só MPB de boa qualidade, na qual programas com horas seguidas de jazz, blues, reggae/Bob Marley e os bons e velhos rocks da época em que se produzia música, ocupam espaço de honra. Nome da estação? Ainda se usa essa palavra para designar rádio? Peraí, nem tão velho nem tão novo. Algumas palavras ficam incrustadas como lindo topázio imperial em nossas lembranças e desse HD nada se apaga totalmente. Fica cinzento às vezes, desmagnetizado, mas se fuçar acha.
Voltando. O nome da estação? Rio Verde FM.
Não acreditei. Como pode uma rádio com esse nível sobreviver em Goiás? Porém, antes de seguir, uma explicação: olha só, nenhuma ofensa aos irmãos goianos, mas viajei muito por aquelas bandas, mesmo antes do estado do Tocantins existir e conheço bem o gosto musical da maioria dos goianos, aliás muito parecida com o de nossa gente aqui em Uberlândia e cercanias. Para completar meu dizer e aplacar a implicância de algum que possa ficar insatisfeito comigo, contam que, Nashville a capital da música country nos EEUUA, está para Goiânia como a capital da música sertaneja universitária, secundarista ou mesmo vestibulanda. Se for mentira me digam.

Enfim, liguei para um grande amigo que mora em Rio Verde e, empolgado, contei-lhe da descoberta da fantástica estação de rádio na cidade. Na outra ponta da linha longo silêncio se fez.
Alô! Alô! Repeti algumas tantas vezes. De lá então veio gostosa gargalhada: ─ Compadre, acho que você está enganado, aqui o gosto é outro, não tem esse papo de jazz, reggae e tais! Pode ser que um ou outro aprecie, mas tocar em rádio, toca não.
Desconversei ligeiro, perguntei das crianças, da plantação de soja, da situação das estradas. Despedi-me marcando visita, churrasco e roda de viola.

Encasquetei. Fui atrás e lá estava ela, como brilho de xibiu em bateia de quem procura: Rádio Rio Verde FM, 106.3, Baependi.
A pequena cidade mineira com seus nem vinte mil habitantes, fincada na Serra da Mantiqueira, à beira da Estrada Real, é a dona de tamanho bom gosto musical.

Tente uma noite dessas. Só som bom, de qualidade. E o melhor, não tem propaganda alguma. Você não será acordado por berros de ofertas de fogões e geladeiras.
Chego a desconfiar motivos que levam vento
galhofo e maravilhoso luar a buscarem guarita sob minhas cobertas. A boa música encanta gente, bichos outros, plantas e outras criaturas da noite que nos cercam. Carinhosamente os recebo.
Só não os vê quem não quer.

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Quanta saudade Saramago, quanta!

“A radioatividade leva até vocês
mais um programa da série "dedique um programa a aquele que você ama (...)
“Estou a dois passos do paraíso, e meu amor vou te buscar”







Publicado em Diário de Uberlândia página 2  em  04 de junho de 2018


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