Pois não é? Todos sabem que com o avançar da idade muitas coisas começam a mudar na vida das gentes, cabelos branqueiam, dificuldade de ler letras miúdas vão permanecendo e insistimos até em nos render ao uso de óculos. Presbiopia, ametropia, miopia e hipermetropia, todas as "ias" possíveis, desde que com letras graúdas.
Os óculos. Se escolher os multifocais está fadado a enfrentar longa luta de adaptação. No começo, para a maioria, é uma tortura, ou diria uma tontura. O chão fica longe, o longe fica perto demais, um sufoco. É preciso paciência e jeitinho, que também com a idade começa a diminuir. Principalmente ao ver e ouvir posturas e besteiras tipo " intervenção militar já" ou "ditadura no Brasil nunca existiu". Chega a explosão de raiva, cuidado com a pressão. Anda nas alturas, outra característica do desgaste da máquina quando agridem seus ouvidos com comentários homofóbicos, racistas, enfim assuntos preconceituosos de qualquer natureza.
Essa conversa de que com a idade fica-se sábio, mais tolerante, é para boi dormir ou, se assim for, deve ser lá no Tibet. Papo de monge. Na verdade fica-se exatamente o contrário, pois as papagaiadas das gentes ficam escancaradas e palpáveis às mãos e mentes erradas e boi velho não carrega canga. Não é de meu feitio generalizar assim. É óbvio que vamos topar com muitos velhos calmos, transbordando sabedoria como passíveis vaquinhas de presépio, que entregaram a carga de se preocupar com os destinos do mundo e da vida. Contemplativos se tornam.
Não posso lhe dizer qual dos tipos quero ser quando crescer. Hoje encaro minha terceira juventude ainda com um furor interessante. Sinto-me bem assim. Depois, com o passar do tempo, contarei o final.
Mas uma coisa é fisiologicamente certa, a sede, ou a falta dela. O avançar da idade faz com que tenhamos cada vez menos sede e isso é um perigo danado. Água é que segura a barra. E aí começo a história de um amigo, companheiro de trilhas e corridas. O cabra corria dez, vinte km e, no máximo, em um posto de hidratação tomava metade de um daqueles copinhos plásticos de água, digo metade, pois a outra metade jogava na nuca para refrescar e se dava por satisfeito. Rapaz, eu dizia, você acha que é planta que molhando por fora vai hidratar? Certa feita lhe passei um aplicativo onde você coloca seu peso, idade, hora de dormir e de acordar, as atividades que faz durante o dia e o danado calcula quanto de água você deve tomar. A cada hora ele apita, treme e toca musiquinha com som de cachoeira, te avisando que é o momento de seu copo d'água.
No começo é uma tristeza, como no caso dos óculos multifocais. Sem sede alguma lá vai você ao pote, filtro ou talha e tome água. Um sacrifício, mas com ele deu certo. Ficou feliz da vida.
Passado bom tempo sem o encontrar, dia desses ele me ligou do hospital. Tomei baita susto.
─ O que aconteceu rapá? Ele, em um cochichar, me disse
─ Nada grave, vem cá que te conto.
Apressado e, claro, preocupado, fui ter com ele.
O encontrei no quarto de hospital com cara de dor, olheiras, abatido que só. Uma fraqueza de dar medo. Sussurrando me disse:
─ Fecha, fecha a porta! Obedeci ainda mais cismado.
Olhando atento para o lado da porta com olhos de bicho atirado me contou sua façanha.
Tinha gostado tanto do aplicativo da água que resolveu fuçar buscando outros, e assim baixou um monte. Instalou um tal de MyFitnessPal que lhe deu uma dieta maluca para os indicares que ele criou por conta e risco. Outros de abdominais, exercícios para músculos das costas, dos braços, agachamentos, polichinelos, flexões e tiros de corrida. Tinha um que marcava hora até de afagar cabeça de neto e beijar a patroa. O telefone dele não parava de trinar, sacolejar, pisar e o escambau a quatro. Sua vida tinha se tornado um calvário. Não sabia se corria, se fazia flexão, se passava a mão em cabeça de neto, se comia a tal clara de ovo ou pulava corda.
Em casa ou no trabalho. Um dia se viu beijando o cachorro e afagando vassoura. Loucura. Resultado: stress muscular, sapinho na boca, e uma virada na espinhela que o deixou de cama. Assim, ali foi parar.
Tentei conversar e lhe tirar de cabeça os exageros. Porém, não foi nada. No meio de nossa conversa um sinal do celular o fez se arrastar da cama e ensaiar um exercício muito louco. Não deu outra. Travou ali mesmo e fui obrigado a pedir por socorro para colocar o amigo no lugar.
Depois de tomar uma bela injeção para dor/tranquilizante/relaxante, meio sonolento, de olhos fechados quase apagando, segurou meu braço e com sorriso tímido na cara ainda teve tempo de murmurar: é isso amigo, mas que estou hidratado lá isso estou! Pimpa dormiu de roncar.
Saí de lá cismado. Já na rua, a primeira coisa que fiz foi deletar o aplicativo da água. Sei lá, vai quê!
Publicado no Jornal Diário de Uberlândia em 17 de junho 2018
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