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Moço novo, primeiro emprego. Tinha promessa de trabalhar fora do Brasil, aprendizado seria sem tamanho. Daí a conquistar o mundo um pulo. O giro do viver o tirou da rota. O lá fora virou aqui dentro, em escritório enfumaçado de tanto cigarro que seu chefe queimava. Era um atrás do outro, sem trégua para os pobres bofes. O pigarro, os acessos de tosse, o chiar da voz, eram fundo musical de sua aborrecida rotina de fazer contas e mais contas. Elaborava fórmulas de comida de bicho. Era ração para tudo quanto é bicho de criação. Odiava! Queria o campo aberto, o cheiro de terra depois da chuva, o vento a carregar pólen e passarinho. Estradas de terra tinhosas, poeira com pouco sol, atoleiro com um quase nada de água, massapé onde tudo brota fácil. Queria banho de rio com a namorada, riso fácil. Queria conhecer mesmo era o interior bravo onde ainda havia caçadas de onça e “almoncas” de capivara guardadas na lata. Queria sumir desse inferno urbano, desse chefe defumado. Queria distância da louca ambição que treinamentos e conversas com graúdos e colegas de trampo lhe enfiavam na cabeça, dia após dia. Pink Floyd estocava em sua mente como tortura de Laranja Mecânica:
“Money, get away./Get a good job with more pay and you're okay./Money, it's a gas./Grab that cash with both hands and make a stash. (…)”.
Queria ser estradeiro, à conquista agora de seus próprios caminhos. Ali plantaria milhões de árvores, margaridas a ladear seus trechos. Não haveria atalhos, pois o caminho era sempre prazeroso. Córregos com mil borboletas a enfeitar os cabelos de sua amada, pé no chão, vestido de chita, descalço. Sombra boa para cochilar olhando nuvens e passarinhos, lá bem no alto quase sumindo, pequenos pontinhos rodopiantes em fundo de um azul, azul.
Acordou do pensar com a tosse do chefe. Tosse gosmenta, asquerosa. O pulmão hora estoura.
Atrás de morro tem morro, como sempre disse amigo antigo, que sumiu no mundo.
Sentindo que o rapaz não aguentava mais o ali ficar, o mandaram para o campo, vender ração e ideias. Aceitou em um já tão ligeiro, que assustou as gentes. Ia embora dali e isso bastava. Escolheu região pouco aberta para a empreita, a ponta de Minas, Goiás e um longe Maranhão. Pelo menos até Carolina, com esticadas a São Raimundo das Mangabeiras e, vez ou outra, a Benedito Leite, já na divisa com o Piauí. Ganhou o mundo, esqueceu de tudo de ruim. De lembrança carregou por bom tempo um pigarro de fumante passivo.
A estrada virou sua fiel companheira. Asfalto, chão ou pedra pouco lhe importava. Ria e cantava sozinho. Chorava às vezes, mas não sabia se era felicidade ou algum vazio que nunca acabava. Estranhava, pois tinha tudo e mesmo assim, de vez em quando, sentia que nada tinha.
Quantas vezes deitou-se no capô do fusca da tal empresa, parado em pátio de posto de gasolina para dormir. Um dia viraria estrela.
Conheceu gente de tudo que era jeito e tipo, do bem, do mal, ricos e pobres, andou por cidades grandes, currutelas, fazendas sem fim e muitos sítios miúdos. Vendas e praças de todos os jeitos e formas. Andava muito, vendia pouco. Não tinha o menor jeito para empurrar produto que vendia a quem dele não carecia. Chegou a tirar de cabeça de produtor que queria comprar, pois provava no riscado que não ia ser de valia nenhuma para ele. Ia perder o emprego, ligava não. O que importava era o que estava vivendo. Aprendizado que carregaria para o resto de sua vida, mas o vazio também iria sempre junto.
Certa feita, saindo de uma fazenda, pronto para visitar outra estrada de muito pó, topou com velhinho a pedir carona, carregando embornal. Tempo bom aquele, podia-se dar carona sem medo.
Parou beirando o barranco.
− Vai prá onde senhor?
− Pra onde Deus manda, mas nesta hora sigo para meu sítio duas légua adiante.
− Entra aí, é o meu caminho, levo o senhor de bom grado.
− Ô meu filho, não sabe a caridade que me faz. Estas pernas eradas já não comandam o trote, canso fácil. Toda semana é essa latumia de passar na vila para comprar coisinha ou outra. Aí tomo uma canjebrina da boa na venda do Seo Canveco e toco caçar carona. Quase não passa carro essas horas por aqui, foi São Cristovão que lhe mandou.
Já iam de prosa solta caminho afora, quando o velhinho pousou a mão no braço do moço e meio sem jeito falou baixo, como se tivesse mais gente no carro:
− Pode parar um instantezinho, é que a bexiga está carregada, coisa de velho.
− O que é isso, é prá já!
O homem desceu com a peculiar dificuldade de quem anda de fusca e encostou-se numa bela cerca paraguaia esticadinha. Os mourões todos com a cabeça sextavada, pintadas de branco. Ao fundo se via maravilhosa alameda bem arborizada, árvores centenárias a fazerem guarda por todo caminho até a sede. Uma sombra só. A sede um primor, varanda ampla, janelas azuis enormes, jardim bem cuidado, um grande lago ladeado por pomar de dar inveja. Mais ao fundo, um bosque dava a impressão de que aquela casa jamais seria quente no verão mineiro. Uma brisa balançava suave a copa das árvores e lambia cálida a lavoura de milho ainda baixinha.
O moço estava em êxtase admirando tanta beleza. Saiu do transe com o bater da porta do carro e o velhinho entrou com cara alegre de alívio.
− Menino nem te conto, como é bom fazer um belo xixi no que é nosso!
O moço tomou um susto danado, olhando a beleza da aquarela que se abria diante deles e perguntou quase engasgado:
− Essa maravilha é toda sua!?
O velho olhou pela janela e num sinal de “toca prá frente” respondeu sem muito pensar.
− Não sô, estava falando da minha botina!
Publicado em Diário de Uberlândia em 20 de maio de 2018
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