A venda era igual a outras tantas espalhadas por esse mundo de meu Deus. Duas portas de dobrar, madeira de lei surrada, gasta de tanta chuva e sol. Pintura desbotada mostrava camada por camada as tantas cores do passado de uma árvore que fora grande na mata, até tombar em estrondo e virar tábua em alguma serraria. Um bom observador diria que a primeira tinta foi azul, com muitas demãos em óleo grosso. As outras cores vieram cada vez mais ralas. Preguiça ou falta de recurso, vai saber.
Do lado de fora três mesinhas também de madeira, gastas e manchadas de tanto cotovelo e marcas de rodelas de garrafas de cerveja. Algumas traziam escritos e desenhos feitos a maioria com canivete. Em uma delas destacava um coração em linhas tortas: Adelano Carlos e, sob monte de arranhados aparentemente feitos com raiva ou desgosto, um nome ilegível. Amor frustado ou ciúmes incontrolado. A data ainda aparecia: 1967
Ano curioso. Bom, acho que todos os anos o são, principalmente vistos de longe. Mas, o que aconteceu de tão especial nesse ano? Tinha a guerra do Vietman, Guevara foi morto no vilarejo de La Higuera, na Bolívia e Dr. Barnard fez o primeiro transplante do coração, que poderia ser do pobre em sofrimento que rabiscou a mesa do boteco. Contudo, este paciente morreu alguns dias depois. O micro-ondas foi lançado em 1967, Os Beatles lançaram o genial e imbatível álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band e, do nada, estourou a guerra dos seis dias. Ano louco. Mais de meio século e os anos, todos eles, continuam loucos. Corações continuam a ser rabiscados em mesas, troncos de árvores e bancos de praça.
Dentro do boteco um balcão imenso de madeira, também sofrida pelo passar dos anos, envelhecia em silêncio. Abaixo de sua tampa, como uma vitrine, mostrava doces misturados com maços de cigarro, lâminas de barbear, pilhas Raiovac, marias- moles cor-de-rosa, paçoquinhas, chiclestes e caixas de ramonas, que conviviam pacificamente. De resto, sacos de arroz, feijão e quirera. Sementes e saquinhos, venenos para todos os “males”. Sobre o balcão um cabo de vassoura amarrado com arame, de onde pendiam gordas linguiças. Na prateleira do fundo, garrafas com bebidas de todas as cores, sabores e teores. Pinga de engenho no carote era de graça. Uma cabacinha de pescoço ficava pendurada na torneirinha, era só chegar e servir, cortesia da casa.
Ia-me esquecendo que, beirando as mesas, duas imensas árvores jogavam sua fresca sombra bar adentro. Calor lá não tinha graças a elas. E o resto das cidades matando suas árvores. Estupidez sem fim.
Em cada árvore uma gaiola. Em uma um canarinho muxoxo das penas engrenhadas, na outra um pássaro preto cantador que só.
O dono da venda, ou boteco se quiser assim, dormitava a espera de fregues.
O arrastar da pesada cadeira na calçada o tirou de um sonho agradável que só.
Pegou o pano de secar, sempre aninhado no ombro, passou-o no balcão e nos olhos. Sem pressa pegou uma cerveja bem gelada e copo para o freguês conhecido. Mas quem não era, naquela pequena vila nos confins das Gerais?
- Ô Seo Samuel, tudo em paz?
- Tudo meu filho. Tudo na mais santa paz.
Seo Samuel arrastou outra cadeira da mesa e como de costume sentou-se com o freguês. Ficaram os dois a admirar o canto do Pássaro Preto. Tempo passando, segunda, terceira cerveja e o bicho numa cantoria sem fim.
O freguês encantado tentou o senhor:
- Seo Samuel, quanto o senhor me vende esse danado de tanto canto?
Coçando a barba por fazer, pensou, pensou e manso respondeu - Ah sô, uns duzentos contos a gente pode fazer negócio.
- Sei - murmurou o rapaz
- E o canarinho feio e caladão?
- Eita, esse por menos de oitocentos não começo nem a negociar!
- Mas que história é essa? Mais sem lógica! Um canta sem parar e tu quer 200 contos. Para o outro emburrado, triste e feio, me pede 800. Endoidou de vez?
Samuel matreiro, olhou para um lado, olhou pra outro, passou o pano na marquinha deixada pela cerveja, olhou fundo no olho do frêgues.
- Sabe o que que é, se quiser vai ter que levar os dois.
Não há de ver que quem compõe pro pássaro preto é o canarinho!
Ê Minas;
“Minas, são muitas. Porém, poucos são aqueles que conhecem as mil faces das Gerais." Guimarães Rosa
Veterinário e escritor
Publicado em Diário de Uberlândia em 29 de Abril de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário