Seguia caminho sem rumo certo. Puro andar, ver gente. Depois que criaram a amarela zona azul no centro da cidade ficou gostoso outra vez. Arrisco dizer que foi uma das maiores conquistas que nós, reles pedestres, recebemos ultimamente. Incluo-me pedestre, pois sinto prazer em parar carro, comprar algum tempo só para mim. Nada de coisa arranjada de visitar loja em promoção, banco pagar conta, nada disso. Compro algum tempo só para mim. Andar sem atropelo ou pressa, olhar as gentes, sorrir para um e receber em troca olhar acolhedor, às vezes, um carrancudo desvia o olhar. Problema está nele. Ligo não.
Uma mão em cuia, velha conhecida, se estende em minha direção: — Me dá uma moeda? Não determina valor. Uma moeda basta. Percebe que sou eu, recolhe ligeira a mão e solta sorriso amarelo, pois me sabe. Paro olho como quem vai dar bronca. Tiro do bolso nota de dois reais. Ajoelho e lhe entrego sussurrando em sorrisos: — Mala.
Me agradece com um levantar de ombros, como a dizer — — Fazer o quê patrão? O sorriso agora é com os olhos. Sem vergonha, sussurrei amizade. Levanto. Batendo com o nó dos dedos leve comprimento em seu joelho. Sigo, olho fachadas bonitas, infelizmente entre feiura de cartazes de propaganda. Acho ângulos, me encanto com detalhes esquecidos. Bando de curicacas passa rente a prédios. Sinto-me um privilegiado.
Compro garrafa d’água, banco de praça. Frondosa sombra. Adiante crianças brincam como antigamente pulando corda: “Suco gelado, cabelo arrepiado, qual a letra de seu namorado: A, B, C” e por aí afora vai. Percebe-se o erro proposital quando chega a letra do príncipe merecedor dos encantos/criança. Quando erra antes, mãozinha na cintura, dedo em negativa: não, não, não! Não valeu e inventa-se desculpa de corda afrouxada de propósito ou a outra não bateu direito levando ao tropeço. Pezinho com chinelinho de plástico bate irritado no chão.
Pode pensar que estou em bairro longe, sossegado. Nada, estou no Centro, em pleno dia de semana. Diminua o acesso aos carros e as pessoas voltam como abelhas, borboletas, joaninhas atraídas pelo espaço livre e pelo vento correndo, polinizando convívio.
Sonho que o centro da cidade deveria ser das pessoas. No máximo, bicicletas seriam admitidas.
Sei, os comerciantes iriam protestar, reclamar prejuízos. Será mesmo? O novo, as mudanças assustam. Vejo nosso Centro como imenso Quartier Latin sem o encantador Sena, sem a imponente Sorbonne, templo do saber. Boulevard Saint Michel lá, aqui boulevard Tubal. Mas não faz diferença. As mesas nas calçadas, as fachadas livres de cartazes, coloridas. Um café, um jornal, um copo d’água. Pode ocupar sem pressa, não carece comprar tempo. Nada de garçons aflitos, Buenos Aires.
Meu tempo, o comprado, está acabando. Dou imenso gole no bico da garrafa. A água está morna, como a calma que sinto. Existe, então, um lugar onde se pode comprar tempo. Pena que não trás de volta.
Lento caminho cantarolando adaptado: “Suco gelado, cabelo arrepiado, qual a letra de minha namorada”. A cada passo uma letra, o abecedário vai ser recitado muitas vezes. Parei longe. Nem imagino uma primeira letra.
Tempo esgotado.
Jornal Correio em 20 de Março de 2016 ( Aniversário de João Lucas)
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