terça-feira, abril 5

Bicicleta



A vila, já contei, tinha poucas almas. Era um lugar tranquilo e bom de se morar. Longe de tudo é fato, sem recurso. No aperto, tinha que andar muito, isso assustava um pouco quem não era de lá. Acostumamos rápido. O dia da chegada está perpetuado em lembranças.

O ônibus dirigido pelo Seo Zé Toco corcoveou por mais de 90 km em terra massapé, bem diferente do ácrico chão de cá. Na seca, poeira só, nas águas, atoleiro sem fim. Asfalto, um pedacinho à toa depois do Monte Alto, mas não ajudava muito, o maior encravador ficava em subida bem antes do chão preto. Naquela época éramos esquecidos. Quantas vezes ficamos ali esperando trator para arrastar o carro.
A cidadezinha foi esvaziada com o fechamento das olarias. Muita história.

O segundo grande êxodo se deu rumo ao sonho Rondônia. Diziam maravilhas de lá. Terras boas e baratas, quando não, dadas pelo governo. Muitos venderam tudo e para lá partiram. Se deu certo sei não. O ônibus nos deixou em frente a nossa primeira morada, Pensão de Dona Mercides. Quando arrancou levantou tamanha nuvem de poeira vermelha que, no paradão de um meio dia, desceu mansa com o próprio peso. Rua foi aos poucos aparecendo.

Mesmo sem asfalto o chão brilhava em forno de carvoaria, trêmulo, desfigurava adiante. Alguns preguiçosos cães se encolhiam em sombra de marquise. Poucas árvores. Já nasciam ideias, fresquinhas de plantio que não se realizou. Depois conto motivos.

Assim a vida seguiu caminho. Aulas na escola, logo boas amizades, povo bom daquele tanto, difícil de encontrar. Fomos acostumando, mas as ideias para a minha Macondo eram inúmeras, curiosamente era a criançada que encampava tamanhos sonhos, realizamos muitos juntos.

Aos domingos, a vila se transformava, era uma festa. Gente chegava dos sítios para fazer compras, ver parentes e, claro, assistir filme. Tinha sim uma sala de cinema que funcionava nos fundos de um bar. Jogo de futebol com torcida e movimento, às vezes, tinha.

Um dos bares era de Jorginho japonês. Nipônico por nome Jorginho era no mínimo diferente. Ali se bebia, jogava-se conversa e dominó. Ficava apinhado naqueles domingos. Pois conto. Amanheceu segunda e uma bicicleta ficou sozinha, abandonada como pedal encostado no meio fio, bem em frente ao bar do Jorginho. Bicicleta nova, bem enfeitada. Fitas coloridas saindo das manoplas dançavam ao vento seco, farol a dínamo, selin com capa onde se via um reluzente escudo do Flamengo e no paralama dianteiro um imponente emblema dourado da Raleigh, com suas asas em posição de vento. Entre os raios, macarrões coloridos.

Assim, como monumento, a bicicleta lá ficou a segunda, amanheceu terça, quarta e quinta. Na sexta-feira, um pouco incomodada com a bela bicicleta na rua o Jorginho me veio falar: — Professor, sabe aquela bicicleta que está na porta do bar desde domingo passado? Respondi com aceno, concentrado em abrir entrada em coité para fazer ninho.

— Pois é estou meio preocupado com ela.

Perguntei o motivo.

— Uai, professor, vai que alguém rouba a bichinha como que vai ser? Arqueei sobrancelha em pensar.
Conhece lugar melhor de se morar?







Jornal Correio em 3 de abril 2016





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