terça-feira, novembro 3

Panta rei



Maravilhosa chuva de quarta passada, pena, não choveu em toda cidade, todos mereciam seu frescor revitalizante. Aos primeiros pingos grossos, podia-se notar a poeira da calçada se debatendo em agonia. Milhares de grãos de terra levantavam em minicogumelos atômicos, espalhando pó para todos os lados. Durou pouco. Logo a chuva ritmou em nota única e debruçou forte lavando chão, telhados, folhas e almas. O pó se foi enxurrada abaixo. Aos poucos, outras notas eram ouvidas; bicas d’água nos telhados, o batido da água em folhas e grama, o tamborilar em latas e baldes. Metais, cordas, sopro, percussão. A regente? A chuva. Bem-te-vis aguardavam quietinhos o poslúdio de bela sonata.

A primeira vontade foi de sair e abrir os braços sob o toró. Cheguei a tirar as sandálias e caminhar para a porta. Em outras épocas, iria direto para a chuva e ali me deixaria ficar. Parei na varanda. Me peguei olhando de um lado para outro como se estivesse prestes a cometer ato falho. Não deixou de ser, pois dei um pause na minha mais forte vontade, um dedo repressor imaginário me apontava.

Casa nova, vizinhança pouco conhecida, me deu certo receio. Explico, mudei para onde estou há pouco tempo, depois de morar quase três décadas no mesmo lugar. Como em Pasárgada, na casa que escolhi construída a gosto e jeito.

Não conto história com tristeza ou mágoa. Conto fato, como certeza da permanente mutabilidade de nossos rumos. Não sou vítima nem algoz de absolutamente nada. Sou consequência, ou parte dela. Não dominamos nem o segundo mais próximo a nós, imagina uma vida inteira.

Agora morando só em lugar diferente, respirando ares novos ainda não me sinto tão à vontade. Caminho para isso. Tempo.

Parei na pequena varanda e me satisfiz com os respingos que, em segundos, molharam minha perna, meus pés, meus pensamentos. Encostei na parede, me dei por saciado com o carinho que a fria água fazia. Afago gratuito, sem cobrança, sem pedir nada em troca.

Um beija-flor pousou em trepadeira florida que se dobrou bela bem defronte à minha porta, aproveitava sabiamente os mesmos respingos para se banhar nas folhas. De tão miúdo, um único pingo poderia lhe trazer sérios problemas, uma asinha quebrada, uma dor de cabeça imensa caso o acertasse em cheio entre os olhos. Olhos estes que, quando me dei conta, pareciam me fitar. Com curiosidade devia pensar: “Poxa, uma coisa tão grande e com medo da chuva? Ou esse humano sabe de algo que não sei?” Deu de ombros, deu de asas e bico e continuou seu banho de fazer inveja, pensamento livre de medos e solidão. Ele, pequena joia, se bastava em sua felicidade.

O ar agora cheirava, finalmente, à primavera. Outubro se vai ligeiro, as águas aguardam em algum porto o momento de desembarcar e saciar nossa sede de vida.

Nada é para sempre. Nem os sentimentos mais profundos, meras impressões do vivido, nem as mais prolongadas secas. Panta rei, tudo muda. Mesmo quando verdes musgos tudo dominarem e as roupas e casas cheirarem mofo e alguns começarem a maldizer invernada. Ovos nos mourões de cerca e rezas para Santa Clara, fica a certeza. O sol voltará a brilhar. Heráclito era o cara.







Em Jornal Correio de 1º de novembro de 2015



Panta rei

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