Não é surpresa para ninguém que, com o passar do tempo, a gente fica quando em vez melancólico, com saudade de uma coisa que não sabe o que é. Um trem que fica lá dentro remoendo com vontade de sair de alguma gaveta empoeirada, perdido fundo no guarda-treco da memória. Estranhamente as tais gavetas não tem etiquetas, numeração ou qualquer coisa que identifique seu conteúdo. Tem que ser busca ao acaso. Quando ando pelos labirintos de minhas cômodas repletas de lembranças, a primeira coisa que faço é soprar o pó do tempo ali acumulado por distrações frequentes.
Sigo a miúdo passo levando a mão em carinho sobre elas. Algum toque na qual busco e ela vai se fazer presente.
Noto longe, no profundo corredor, pequena luz. É ali que está o que me vem, mas não posso ficar ansioso, nem correr atrás com muita gana, pois a luz pode perceber minha aflição e, ciente de que não saberia saboreá-la com o devido cuidado, simplesmente sumiria, me deixando no escuro do "como era mesmo?"
Hoje desde cedo assim acordei. Não chegava a tristeza, nem a nada em busca arômata conhecida, mas sem identificação. Não era melancolia na acepção da palavra. Era sem nada ser. Era só isso.
Como estou em clausura forçada, ócio imposto por gente repleta de invídia gratuita - talvez nem tão gratuita assim - resolvi me deixar levar pelo silêncio e abrir as portas do corredor de gavetas. Bem ali perto, uma tênue luz mostrou a direção a seguir. Manso, segurei o puxador e mergulhei em seu conteúdo.
Durante minha infância até a adolescência passávamos pelo menos quatro meses por ano na praia. No começo, casa alugada, família junta e estrada de terra em gena de trecho até chegar ao Atlântico. A areia era minha segunda morada.
Com o passar do tempo, resolvi que ir só ou com pouca companhia era melhor ainda. Barraca, mochila, pouca grana e o mundo era nosso.
Assim foi por muito tempo.
Preocupados com as mudanças do tempo e não me refiro a chuva e vento, mas a uma escuridão malévola, que cobriu todo um país, trevas da "redentora", quando gente sumia para nunca mais, meus pais resolveram construir uma casinha simples. Delicioso abrigo a cinquenta metros da praia, em rua de pura areia e sem carros.
Mineiro de Belo Horizonte, não é necessário ser, nem consultar Oráculo de Delfos, para saber em qual estado ficava nossa casinha. Na mosca, no Espírito Santo, uai!
A esta altura a gaveta transbordava em luz e lembranças límpidas, perfumadas e repletas de sons. O quebrar das ondas em seu eterno lamber areia, as gaivotas ávidas por alguma sobra do arrastão matinal.
O dono do arrastão era Cabo Afrodísio, homem da cara amarrada, mas sempre pronto a sorriso aberto. Nossas pequenas mãos ajudavam a puxar toda manhã aquela corda imensa. Pelo peso tentávamos adivinhar a pecaria do dia. Quando dava na rede, mãos hábeis e ligeiras dos pescadores retiravam os peixes, caranguejos e camarões. Mas a grande espera era pelo bolsão final. Quando este se abria na praia era uma festa de gente e bichos.
Nós pequenos ficávamos agora de lado, para não atrapalhar os mais velhos. Em movimentação o de valor era colocado em imensos jacás feitos de corda. O que não era ali mesmo comercializado com turistas seguia para o mercado de peixe do arraial. Redes embarcadas eram levadas para outra ponta da praia, ainda havia tempo para mais um arrastão.
Nós crianças, ali parados a ver os barcos quebrados por ondas de ponta, corríamos com nossos baldes a salvar os pequenos peixes e siris abandonados na areia para morrerem sob sol escaldante ou serem comidos pelas gaivotas e guruçás famintos que, mesmo com o pisar de gente, se arriscavam fora das tocas. Todos os miúdos eram levados de volta à água.
O maior prazer estava em salvar as estrelas do mar. As recolhíamos uma a uma com especial cuidado. Mar adentro, com água até na cintura, as colocávamos de volta uma a uma, em ritual. Dava para sentir um perfume doce de flores a nos soprar, Yemanjá, tenho comigo, agradecia sorrindo o retorno de suas criaturinhas.
Dou parada no contar em respeito ao espaço, mas continuo. A gaveta estará aberta por um longo tempo, pois há muito a dizer sobre este meu paraíso.
Publicado em Jornal Diário de Uberlândia em 23 de setembro de 2018
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