Foto da web (autor desconhecido)
Parece que, finalmente, a tão esperada chuva deu o ar da graça e cravou nuvens sobre nossas cabeças. Como demorou este ano. Não vou ficar repetindo as possíveis causas de tanto calor como o que passamos e agora, o atraso das águas, mas sabemos que a culpa é nossa, do El Niño e de sua namoradinha La Niña. Com suas maldades infantis e terríveis consequências, foram gerados por ações humanas. Criamos monstros. Pode parecer loucura, mas tem criança má sim. Como diz o psiquiatria infantil Fabio Barbirato: “Não é fácil a sociedade aceitar a maldade infantil, mas ela existe”. E grande parte da culpa, se é que se pode definir como tal, é de quem a criou. No caso dos dois Niños, nós mesmos.
Abrimos a Arca da Aliança, fizemos da natureza nossa inimiga e, como tal, sugamos suas riquezas em dose alta demais, enfumaçamos a casa. Estamos condenados a pagar alto preço por tamanha heresia. As águas vieram em pingos verdes, a terra rachada que nem nossos calcanhares de criança criada livre, pé no chão, agradeceu florescendo em mantos e matas e mantras.
Nas pobres cidades um desastre que se repete desde quando inventaram o progresso, o asfalto, a especulação imobiliária e o ódio por árvores. Ruas em armadilhas se transformam, mato cresce com vigor nos terrenos e seus donos acham que é dever do poder público carpir. Mato, quanto mais corta mais forte cresce.
A roçada de hoje é o matagal de poucos dias para frente. Cada dono deveria cuidar do que é seu. Logo a tão esperada chuva vira tormento para muitos, roupa não seca, mofo aparece, goteiras esquecidas renascem. Não demora ovo na cerca e novenas para Santa Clara, acompanhada da mandinga: “Lágrima do peito aberto, coração de Deus ferido, nos defendei da tempestade e de todos os perigos”. Não tem cerca na cidade grande? Ovo na calha ou no muro. Tudo para espantar a até outro dia tão esperada senhora da vida e fartura. Se não funcionar, pelo menos um gambá que mora hoje pertinho de você ganha uma almoço, pois na mata já não tem abrigo.
De bendita a amaldiçoada é um pulo. As gentes da cidade desconhecem o valor dessa riqueza. Dela só sabem pela televisão, pela previsão do tempo, pelas reportagens trágicas. Quer trecho para Pasárgada? Impossível. Aeroportos fechados por conta do mau tempo, sem teto dizem. Ônibus ou carro? Um perigo, estradas queijo suíço, quedas de barreiras e o preço do pedágio para as alturas a encontrar nuvens pesadas foi.
Saudades de ficar quietinho na varanda com uma boa xícara de ágata colorida de café quente, olhando a chuva benzer campos e montanhas de um lado, à minha frente cheiro de sal, uma imensidão de mar calmo. Já viu chovendo no mar? Água morninha. O ritmado quebrar de ondas baixas deixa espuma na praia. Nada de preocupação com alagamentos, atoleiros ou pedágios. Andar descalço em areia molhada, deixar chuva correr pela aba do chapéu, sonhar com roça pronta, cantarolar alegria, peito a explodir. Viver é tão bom.
A vida pode ser assim, mansa. O cheiro de terra molhada convida à contemplação. Só não pode barragem mineradora por perto a ameaçar com sua ganância de lama.
Jornal Correio em 24 de Janeiro de 2016
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