segunda-feira, janeiro 4

Domingo na praça




Tem gente tão sistemática que se puder bate continência para geladeira General Eletric. Não que eu consiga chegar a este ponto, mas sou, de certa forma, meticuloso no meu comportar. Este comportamento se acentuou um pouco mais depois que passei a viver só. Como um cego em seu ambiente cotidiano, se trocar uma cadeira de lugar pode ocorrer tropeço. Sei onde e como guardo minhas coisas. Alguns podem me chamar de sistemático, complicado. Até ao fato de ser virginiano atribuíram meu jeito de ser. Cá para nós, acho esse papo de horóscopo uma balela. Caso tenha a ver com força gravitacional, posição das estrelas e outros corpos, pergunto: qual seria a maior e mais próxima massa a exercer alguma força sobre um recém-nascido? Respondo: a do médico e sua equipe na hora do parto. Assim, pode-se ter nascido em médico com ascendência em enfermeira ou em aparelho de luz cirúrgica da OSRAM. Este até parece nome de planeta.

O viver sozinho te obriga a criar uma rotina de sobrevivência para não pirar. Como tem menos de um ano que estou nessa, vou tratando de me ajeitar. Horário de acordar aos sábados e domingos é o mesmo. Cedo, muito cedo. Correr quatro dias por semana e academia outros três. Além de fazer bem é uma forma de socialização, mesmo conversando pouco. Assim vem sendo. Estou alegre, corro. Estou deprê, corro também ou puxo ferro para fortalecer pernas e panturrilha. Para fazer o quê? Correr mais, uai. Viciei em endorfina.

Entre novos hábitos, cultivei um aos domingos: Almoçar na Feira da Gente da Praça Sérgio Pacheco. Comida boa e preço justo, música às vezes boa, às vezes ótima, às vezes péssima. Sem problemas tudo é festa.

Dia desses, como de costume, na praça. Gente para prosear não falta. Naquele dia, estava de papo com a senhora que cata latinhas. Cansada, sentou-se em banco de concreto a meu lado. Contou de sua vida, de sua família. Em nenhum momento, senti tristeza naqueles olhos que já pousaram vista em quase tudo que se tem para olhar. A prosa animada era entrecortada por levanta ligeiro para recolher uma ou duas latinhas esquecidas em alguma mesa. A concorrência ali é brava. Enquanto dava tempo para pegar meu almoço e levar para casa, vou ficando, empurrando ao máximo estes momentos, pois sozinho, fim de semana, é assombrado. Filha de Jack, da barraquinha onde quase sempre pego comer, que conhece meu ofício, vem me chamar. Tinha um morcego pendurado na tela de um alambrado, estava rente ao chão.

Lá fui eu em pensamentos. Fui passear, ouvir música e buscar comida. Pronto, e agora um morcego. Mostram-me o coitadinho, um filhote, talvez despencado das costas da mãe em aprendizado de voo. Em pleno domingão de folga. “Finge nem ver” e “deixa prá lá” diriam alguns.

Sem chance. Há uma coisa maior dentro da gente. Lá fui eu recolher o bichinho. Com a ajuda da moça, colocamos em uma caixinha que passou a me acompanhar o resto do dia.

Já pensou se criança ou bicho vai lá mexer? Mordida e risco bravo. Está aqui em casa. Amanhã, lá no Laboratório, decido rumo. Consciência tranquila. Meu trabalho mora em mim. Sou feliz assim, pelo menos tento ser.







Jornal Correio em 03 de Janeiro de 2016



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