quarta-feira, junho 28

Cabides

Essa vida volta e meia nos apresenta cada mistério. É tanto fato estranho que até Deus duvida. E olha que não estou me referindo a fantasmas, gnomos ou fadas, não. Observo fatos do cotidiano. O sobrenatural nosso de cada dia, acontecidos que se repetem bem debaixo de nossos narizes. Um desses grandes arcanos domésticos diz respeito aos cabides. Isso mesmo, cabides, esses de pendurar roupas.

Certa feita sugeri em um conto que, volta e meia, os inanimados ganham vida própria. Tive uma máquina de lavar roupas que era assim, nós a chamávamos carinhosamente de Daiane dos Santos, pois tinha complexo de ginasta, e até o duplo carpado twist esticado, especialidade de nossa querida atleta, ela, a máquina, aprendeu a dar.
Depois dela, passei a observar os objetos de casa com outros olhos e tenho a convicção de que, como nos desenhos, em alguma hora do dia ou da noite, longe de olhos, eles ganham vida e aprontam das suas.

Minha mais recente experiência diz respeitos aos tais cabides. Estes, como todos sabem, mesmo possuindo as mais variadas formas e serem compostos por materiais diversos têm, é claro, o mesmo objetivo e função. Lá em casa, além dessa finalidade são largamente usados para abrir janelas de banheiro, uma vez que alguns não foram agraciados com estatura muito elevada. Temos cabides de várias, digamos, castas e cada uma se comporta à sua maneira. Temos aqueles mais frágeis que, à primeira vista, quando são comprados, detêm aparência de robustos. Ledo engano, à primeira calça jeans mais pesada literalmente abrem o bico e a pega do guarda-roupa deixa de existir, desmontam como pipas rasgadas por vento forte bagunçando e amarrotando tudo.
Temos aqueles cujo plástico imita vidro ou cristal, são mestres em quebrar a haste do meio e, aí, passam a servir para dependurar camisas.

Quando morávamos na roça, um mestre oficial em marcenaria italiano, Seu Pedro Talarico, caprichosamente fez, a nosso pedido, vários cabides de madeira. Pequenas obras de arte, pois eram entalhados em peça única de madeira, sem emendas. O único defeito, se é que assim se pode chamar, eram os ganchos que colocamos, com o peso perdiam a rosca e despencavam. Na realidade dever-se-ia utilizar tiras de trapos para amarrá-los ao cabideiro, a ideia dos ganchos foi nossa. Até hoje guardamos essas raras e belas peças.

Os cabides passaram a fazer parte daqueles que têm vida própria.
Já notaram que, sempre que alguém precisa de cabides, eles desaparecem? Na hora de passar ou lavar roupa, sempre que você precisa não os encontra em número suficiente? E não adianta comprar mais não. Ao chegar em casa com dois ou três pacotes de cabides novos, temos a sensação de que nunca mais vamos ter que nos preocupar. Mas qual, uma semana depois para desespero nosso, onde por Deus se meteram esses monstrinhos? Sempre faltam e muitas peças de roupa ficam aguardando vaga, tal e qual restaurante em São Paulo ou estacionamento em zona azul.

Esse é um mistério que guardo para quando aposentar. Descobrir o destino, o rumo que esses caras tomam. Infelizmente, em nosso querido Brasil, o único tipo de cabide que não acaba, nem some, aliás, como ratos se multiplicam, são os nefastos cabides de emprego. Estes, para tristeza da nação, por mais que queiramos, não damos conta de fazê-los desaparecer. Não é incrível?






Publicado em Uberlândia Hoje  28 de junho de 2017

quarta-feira, junho 21

Seda

Era um bichinho miudinho e não entendia a que veio.
Ficava o dia todo vendo seus iguais roerem folhas de amoreira numa tagarelice muda, todos a mastigar tenras e verdes folhas.
Tempo ido tocavam todos a se enrolar em casulos finos lindamente decorados de brilhantes fios prateados. Crisálidas únicas, perfeitas, iguais.

Por força de jejum voluntário atrasava seu curto ciclo.
De ninfa queria ser borboleta. Seu destino era voar. Queria o céu.
Observava que seus irmãos eram levados embora cedo, assim que morada prateada construíam. Nunca os viu de asas abertas a secar em preparo para vôo de liberdade.

Abandonou as folhas, alimentava-se apenas dos frutos, púrpuras e doces amoras. Quando por fim lhe veio o sono encapsular, teceu turmalinas, fios violeta-púrpuros como salsifis deslumbrantemente mágicos. Sua seda de tão pura e diferente cor passou despercebida das humanas mãos escravizadas pelo hábito, e em bela manhã rompeu fagueira. E na mais linda das violetas borboletas se transformou. Partiu.

E os homens mais uma vez, mergulhados em daltônica ignorância, presos em sua cobiça e mesmice, deixaram escapar por entre os dedos oportunidade única, rara jóia, a preciosa seda de um majestoso e único violeta.

Em Uberlândia Hoje, 21 de junho de 2017



quarta-feira, junho 14

Destino

Uma libélula voa apavorada em minha sala. Faz-se noite, não posso nem abrir janela para deixá-la ir-se, viraria presa fácil. Seu voo helicóptero a conduz em direção ao globo de luz. Bate de frente. Recuo preocupado. Ligeiro, bato a mão no interruptor e a escuridão se fecha. Ouço o aflito bater de asas procurando pouso. Nada, achou foi a luz da cozinha. Sigo sua agonia.
Vontade de pegar nas mãos, guardar em caixa de sapato e soltar amanhã com o frescor do orvalho. Melhor não, elas são frágeis como algumas pessoas especiais em sentimento. Quebram facilmente, não quero magoar nem bicho nem gente. Apago tudo. Acendo pequena vela. Tenho paixão por luz de vela, o que devia imaginar é que libélulas também.
Me dou conta que armei armadilha mortal para aquelas asas de pura e transparente seda. Em investida suicida roçou asas na chama perfumada. Senti aperto no coração, frio na espinhela. Em voo aparentemente derradeiro topou forte na parede. Imóvel se fez no chão frio. Acendo a luz com um sentimento de culpa gigante. A vejo, atrás do aparador. De canto de olho, miro meu São Jorge, presente de uma amiga especial. Peço em milésimo de segundo que me preserve de tamanha imputação.

Com cuidado de quem já está mais do que acostumado a lidar com as miudezas da vida, como cobras de vidro, escorpiões e sentimentos de alma, recolho a frágil figura.
Óculos, meu reino por um par de óculos. Devidamente com olhos, a observo cuidadosamente. Nada que mostre machucado, nada que a impeça de alçar voo. Talvez tonta pelo espanto de um tremular de fogo. Talvez a essência aromática a tenha abatido. Fico com ela na palma da mão por imensos minutos. Uma perna se mexe, estica devagar. Uma asa, outra asa, quatro asas e tremor, de motor de B-29, porém sem escândalo característico das máquinas de guerra e morte. Uma anteninha curiosa vibra. Num golpe rude alça voo sem rumo. Sigo com os olhos e sei bem onde pousou.

Volto à escuridão minha casa. Escovo dentes mergulhado em negrume. Ligo meu rádio que não mostra fonte de luz, apenas um botãozinho amarelado. Amanhã, a moça está solta. Janela aberta, olho um céu de estrelas, começo cochilar. Um zumbido vem rápido cantar em meu ouvido. Ponho atenção e mão em concha, espero. Cantou outra vez. Certeiro tapa e lá se foi mais um pernilongo, esparramado em minha mão. Sorri com aquela morte. Nunca vou entender gênese humana, passa horas salvando uma libélula e, de cara limpa, mata seu vizinho ou se destrói em solidão, quem lhe deu tanto poder? Como pode simples criatura ter assim destino de tantos outros seres viventes?

Bom, se foi a Diretoria lá do alto, está na hora Dele convocar sua bancada toda e rever conceitos de humanidade. Quem sabe não está na hora de dar por encerrada sua obra, assinar embaixo e pendurar numa parede celeste. Quem sabe coloca tela nova, branquinha e começa tudo outra vez, mas, desta feita, usando tintas, de cores mais suaves. Dizem que já fez isso uma vez e pediu para que casal de cada ser vivo fosse ajuntado. Mas se for fazer o mesmo e despachar os casaizinhos pela galáxia afora, por favor, Senhor, não leva casal de gente nem macaco, lembra de Darwin, ah, nem de Aedes, pelo Amor de Deus, quero dizer, pelo Seu amor. Amém.






Publicado em Uberlândia Hoje  14 de junho de 2017

segunda-feira, junho 5

Tédio

Fico encantado, ou pasmo, não sei, só de me imaginar nas situações descritas por uma grande amiga virtual que adora a urbe, os congestionamentos, as filas de restaurantes, os shoppings lotados enfim a confusão das grandes cidades. Para ela a vida nas cidadezinhas se resumiria a jogo de damas em praça pública.
Amiga, cidadezinha (meu sonho daqui a muito pouco tempo) não é só jogar damas, gamão ou xadrez em mesa de concreto em banco de praça, não é não.
Partindo daí tem a própria praça, imagino imensas e frescas sombras de árvores centenárias onde pela manhã a algazarra dos passarinhos ajuda a acordar as gentes, vejo ainda esta mesma praça cheia de crianças correndo para a padaria ou para a escola sob o olhar atento daqueles sentados junto aos tabuleiros: " Aquele menino é de fulano, arteiro que só, vive a roubar carambolas lá em casa".

Onze horas religiosamente, o comércio fecha para o almoço, até os restaurantes assim fazem. Exceção por conta de alguma venda onde o dono, com prato de ágata branco descascado e com friso azul, come de colher saboroso arroz, feijão e carne de lata feita ali mesmo por sua mulher em velho fogão de lenha, pois a vendinha está junto à casa deles. Ah, tem também taioba refogada com pimenta bode, angu e quiabo.

As ruas de pedra evocam antepassados tropeiros e suas boiadas imensas que, naquele tempo cruzavam a rua da praça da matriz, aquela dos tabuleiros. Agora mais não, fizeram um corredor ao lado da estrada por onde as raras boiadas são tangidas, exigência do padre, atrapalhava a missa.

À tardezinha, muita gente chegando da roça, outros do mar, esqueci de dizer que cidadezinha fica beira-mar, e a algazarra agora é dos mais velhos contando acontecidos do dia.

Anoitece. Muito o que fazer. Sentar-se a ler um bom livro em varanda bem em frente à praia, recebendo a perfumada brisa do mar, caminhar na areia e deixar a cabeça voar a visitar outras galáxias, sentar-se com a companheira, com amigos, ou só, em um bar de cobertura de palha com os pés na areia e tomar uma cervejinha gelada acompanhada de delicioso peroá frito, pedir para desligarem o rádio para poder ouvir o eterno e cadenciado quebrar das ondas, isso em plena terça-feira.

Olhar para o céu e não se espantar com as milhares de estrelas, afinal está familiarizado com elas, são tuas amigas e te apontam nortes e contam histórias.

Chegar em casa e sempre encontrar o portão baixinho e de madeira aberto, assim como as portas das varandas dos alpendres, e as imensas janelas. Abertas, sempre abertas, dia e noite. O lá fora integra o lá dentro, coisa só, meu jardim é o mar, meu quintal a mata e as montanhas da serra.

No dia seguinte, banho de cachoeira, descarrego, culto respeitoso a Oxossi dos nagôs, Agbê dos jejes, Congombira dos bantos. Filho de Iemanjá, irmão de Ogun e de Ossain, sempre de Ofá em punho a proteger os bichos, a mata.

Da floresta para praia outra vez, agora toca a ajudar a puxar o arrastão da manhã, rir com os amigos, pé na areia alma leve e limpa. Rede toda na areia, recolhe um punhado de camarões, dois linguados para o almoço, e uma estrela do mar que em gesto rítmico e manso devolve feliz à segurança das águas.

No fim de semana filhos devem chegar para as férias, vêm com namorados, toca abastecer as geladeiras, a arejar os quartos e vestir as camas com lençóis cheirosos.

Ficam poucos dias, depois de semana ou pouco mais acham um tédio, sentem falta dos shoppings, engarrafamentos, das filas nos restaurantes.

Nem por isso deixamos de tanto amá-los, de tão felizes ficarmos quando aqui, em nossa modorrenta vila nos visitam e compartilham alegres de nosso tédio.

Minha mãe costuma dizer que existem dois tipos de gente: os terráqueos e os espaciais. Os terráqueos são aqueles apegados à terra, à natureza, adoram tudo que é simples e conseguem ver beleza em pequenos vôos de borboletas e em tempestades tropicais. Os espaciais não se adaptam ao planeta, sentem sempre uma saudade, uma falta de alguma coisa que não conseguem explicar, não se dão bem com as coisas daqui, insetos os incomodam, adoram o conforto extremo e a tecnologia pura os atrai sobremaneira. Vivem em eterna angústia e não sabem nunca o motivo, insatisfação permanente e por vezes dolorosa.

São descendentes diretos e mais apurados geneticamente de nossos colonizadores extra-terrestres, povo super evoluído que aqui deixou sementes ao se juntar aos nativos.

No meu caso, acho sou fruto de um choque de sangue, sou mestiço, com o lado terráqueo dominante, a recessividade genética ficou para meu oculto lado espacial.

Repito sobre nossos filhos, sentimento extensivo aos amigos: Nem por isso deixamos de tanto amá-los, de tão felizes ficarmos quando aqui, em nossa modorrenta vilazinha nos visitam e compartilham alegres de nosso tédio. Tédio?
Viva nosso tédio.







06 de junho 2017 - Reminiscência

Publicado em Uberlândia Hoje