Amanheço primavera. O calor da madrugada avisava mudança, que poucos percebem. O céu empoeirado escondia o azul único, só visto no cerrado, vasto de olhar. O ver longe, sem as molduras de pedra lá do coração de Minas, encanta quem chega.
Amanheço primavera, tempo embruscado, vento morno. Tudo ia mudar, quem conhece sente. Meio da noite, do nada brisa leve dançou nas cortinas recém colocadas. Anos dormindo sem elas, ainda não acostumei fechar. Ontem à noite imensa coruja de torre, em seu voo silencioso, passou perto de mim. Senti o vento de suas asas. Ela já sabia das mudanças e saiu à caça mais cedo. Filhote para cuidar.
Mesmo em vigília sorri feliz. Estiagem estava com dias contados. Dia demorou um pouco mais para passarinhos e angolas, que observavam em silêncio a virada do tempo. Nem um pio, nem um cantar. Previam. Guardar quietude em poleiro, precaução. O céu desceu cérceo, ficou ali a imaginar.
No clarear, os urbanos pardais como executivos engravatados e aflitos rumo aos seus escritórios vazios de vida, começaram a piação mocha e lamentosa, tal qual trabalhadores sonolentos, calejados de descaso empilhados em lotação. Logo um ligeiro trovão se fez. Chuva mansa a tamborilar em cobertura do quintal.
Ainda aprendendo os novos sons da morada recém ocupada. Nossos cheiros não dominam plenamente tamanho espaço que, apesar de pequeno, para nós é tudo. Coisa de mineiro, casa é porto seguro. Pássaros pretos, agora em feliz algazarra, mostrando peito e bico para o céu. As maritacas, mais discretas nesse tempo, ficaram no crá-crá sem piscar e a roer coquinhos de palmeiras. Tô-fraco, tô-fraco, tô-fraco… cocar começa a ladainha. Época de criar para todos, os ninhos passariam pela primeira provação. O vento e a chuva.
A carreira de formigas cortadeiras apressou o passo, pois cada pingo era como um bombardear ruidoso. Atingidas, rodopiavam, perdiam a carga e em rápido recuperar corriam a seguir caminho de volta na busca de tarefa. Os gatos buscam abrigos, qualquer cobertura serve. Um lamento humano me chega aos ouvidos: Ô merda de chuva! Quase não acreditei. Deve ter estragado penteado. O espelho deve ser seu oratório, Narciso.
Rezei baixinho, para que todos os santos e orixás se apiedassem da criatura. A alegria das plantas, dos bichos e da maioria dos humanos me faz esquecer o injuriar da triste figura – perdoe a audácia Cervantes. Muitos moinhos de vento a combater para uns tantos, para outros, apenas na cabeça, vento.
Logo chuva aquietou. Recolheu-se rápida. Talvez apenas um ensaio geral, uma marcação de palco, acerto em sons e luz. Senti-me um solitário na plateia vazia, sentado na melhor poltrona do teatro. As luzes do dia se acenderam de vez. Só me restou levantar e ver o mundo lá fora. Não gritei Bravo!
As poucas poças secaram em movimento de sombra, rápidas. O céu e suas nuvens permaneceram de prontidão. Quem sabe a estreia, a avant-première se fará perfeita? Trovões em sonoplastia afinada, relâmpagos à perfeição de todos os holofotes, ventos bailarinos a rodopiar por sobre nossas cabeças como acrobatas de circo em palco largo, boca de cena rica em personagens e história. Nossos riachos, rios e represas, em agradecimento correrão ricos em vida. O palco cerrado se tornará verde deslumbrante, o fogo destruidor se apagará ficando apenas cinzas e cheiro azedo, que logo dará lugar a floradas inimagináveis, ao nascer de milhões de novos pios e cantos. Tocas repletas de carinho. Mães a lamber crias.
Mais um ciclo de morte dando lugar a plena vida. E o nosso pequeno espaço de mundo, nosso cerrado, acordará Prima Donna. O espetáculo não pode parar. Nasci primavera. Espero como admirador em fila longa e demorada. Sem pressa. Enfim chegou! Tomem seus lugares e aplaudam o renascer de um novo tempo. No mais, Gerais!