"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
segunda-feira, janeiro 13
Alvitre
Moleque nas cercas vivas. Criava ondas verde vegetal imitando um mar vertical. Trazia paz e lembranças de um mundo de água longe. O cheiro de maresia veio fundo enchendo pulmões. A espuma se formando a cada onda quebrada. As bolhas dos buraquinhos dos tatuis.
Senti cheiro de moqueca de Marlene e seus encantos culinários. Senti nos olhos e na garganta o gosto salgado de um tempo indefinido. Lágrimas são filhas do mar, mergulhei em onda imaginária, sentindo o prazer que quem só mergulhou conhece. Um abraço quase materno da água.
Um aperto carinhoso lhe segurando por todo o corpo. Cada milímetro. Vontade de virar peixe naquele imenso útero protetor. Vento trouxe outra onda verde, casal de bem-te-vis surfou alegre entre as folhas. Ali deve ter ninho. Melancolia tomou conta. Tinha acabado de fechar a última página de “A morte de Ivan Ilitch”. Tolstoi produz um efeito estranho em quem o lê. A desconstrução da alma humana de seus personagens é certeira e direta. Sei que vou ficar dias impregnado de Ilitch.
A onda verde. Vento morno para um outubro que não se faz anunciar. A beleza da primavera ainda se deixa notar tímida com seus ipês brancos, flores que lembram lenços de linho, a balançar em despedida de navio quando, lentamente, manobra em um desatracar do cais do porto.
O vento agora segura, em congelada imagem, andorinhas. Pairam em leveza, observam. O vento é sólido amparo para elas, gaviões e abutres. A maré virou. Agora em rodopios a cerca viva balança histérica. Parecem saias de monjas empurradas para o alto. Os bem-te-vis, juntinhos, pousam no chão. Suas penas também esvoaçam em descabelo, talvez preocupados com os filhotes, assustados com corcovear dos galhos como brinquedo de parque de diversão. Lembranças voltam a girar com aquele quase redemoinho.
Um telefone toca, um cão late, um carro passa com música alta e de péssima qualidade. Quem dotado de bom gosto musical colocaria música dessa altura numa merda de carro? Dizem que agora dá multa. Tá, mais uma lei para não ser cumprida. E tem quem fiscalize?
Já reclamei mil vezes dos imbecis que ocupam vagas de idosos e deficientes em shoppings, clube e supermercados. Apareceu alguém? Alguma “autoridade” se dispôs a sair do conforto de seu nada fazer para agir? Nunca!
O vento verde aquietou-se. Parecia cansado. O mormaço subiu em golfadas. O céu não estava com a mínima vontade de mostrar chuva. Concordo, e lá isso é prosa para um domingo? Avisei, estava tomado por Ilitch. Não poderia ser de outra forma. Até passarinho na muda emudece.
Acho que vou ler algum “escritor maldito”. Quem sabe melhoro? Quem sabe reler Anthony Burgess e sua Laranja Mecânica? Não, quero não. Vou me refugiar nas belezas do mágico Manoel de Barros, pois ali sim um viver feliz guarda tons de serenidade:
“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo.”
E o vento verde em arco-íris se transformou. Belo domingo!
Diário de Uberlândia 12/01/2020
quarta-feira, janeiro 8
Feliz ano novo
A esta altura do campeonato você meu amigo, minha amiga, já deve ter se curado da gigantesca ressaca das festas da virada. Já tentou por em prática as promessas para Iemanjá feitas a cada pulinho de onda e, para sua total decepção, lembrou que esqueceu metade dos compromissos assumidos com você mesmo. O “nunca mais eu bebo” da rebordosa da virada já deu lugar a uma cervejinha gelada neste primeiro domingo do ano e já faz planos para o carnaval. A academia fica para uma semana qualquer. Afinal, você tem um ano inteiro, zero bala para gastar. Pô, se eu tenho 54 semanas pela frente, a capanga cheia de outros finais de semana, domingos e feriados, me dê um motivo para ter que começar a pagar promessas justo nessa segunda-feira? Este é o pensamento quase geral.
Muitos ainda estarão de férias agora em janeiro e este período não se mistura com coisas prometidas. Deixa para fevereiro. Além da academia, o parar de fumar – tem muita gente que ainda fuma acredita?- o emagrecer, o amor perdido a recuperar, o parar de beber, a peregrinação a Nossa Senhora de Aparecida, o caminho de Santiago de Compostela ou percorrer os 1600 e tantos km da Estrada Real a pé. Tudo isso em promessa e sonhos realizáveis, caso decidido. Porém, o ano engata uma primeira, joga uma segunda ligeira e deslancha em quarta e quinta. Ganha a velocidade da mesmice, da repetição, da rotina. Os sonhos da noite de fogos e muita bebida vão sendo guardados nas gavetas dos anos comuns e passados junto outras promessas cobertas de poeira e mofo. Quando você percebe este novo ano já não é tão novo e aí você começa construir novos sonhos velhos para o próximo ciclo. “Quer saber? Ano que vem faço isso, agora está muito complicado, os compromissos me rodeiam...” Então se foi em fumaça, estampidos e brilhos fugazes, mais uma chance de verdadeiras mudanças. Eu sei, mudar dá trabalho e dói, então põe a postergar.
Quem sou eu para dar palpite, mas dou assim mesmo. Hoje AINDA é começo de ano. Pense sério em suas sementes de romã, em suas preces junto a velas brancas. Acredite em todas as simpatias que você fez na virada e vá para vida meu amigo! Sem querer ser pessimista e chato, convém pensar que pode não haver outro ano novo e aqui cabe a máxima atribuída a Mahátma Gándhí (deixo claro que tenho minhas dúvidas quanto à autoria): “Aprenda como se você fosse viver para sempre. Viva como se você fosse morrer amanhã.”
Pé na estrada, pé na vida, pé na alma. Viver não é para ser sofrência. Viver é a realização plena de seus desejos mais íntimos e os quais você mesmo acha impossíveis. Claro, desde que sejam seus e não magoem, não firam ninguém, nem a você mesmo. Não espere passar outro ano longo e repleto de oportunidades nos próximos 360 dias. Isto só vai te trazer arrependimento e dor.
E olha, temos todos uma grande responsabilidade este ano. Eleições municipais. Observe seu entorno, analise o que anda acontecendo. Tenha certeza de que uma ondinha, uma semente de romã, uma vela usada por dos pretensos candidatos está mirando seu voto. Não se deixe enganar por propagandas enganosas e conversa fiada outra vez. Olha no que deu com os últimos eleitos. Pense e analise sempre o ditado antigo, mas bom parâmetro: “Diga-me com quem andas (ou defende) que direi se te darei um voto”.
Taí, se por algum motivo verdadeiro você não conseguir realizar os pedidos que fez para o ano, saiba que você pode ajudar a mudar o curso da história de nossa cidade. Seu voto, seja ele cumprimento de promessa ou sufrágio, tem o poder de fazer o novo ano acabar muito melhor do que começou.
Lembrei-me de um velho homem que todo final de ano fazia uma lista de suas vontades, de suas viagens, dos museus que gostaria de visitar, das bibliotecas onde pretendia passar semanas, dos parques, das matas e florestas das quais queria sorver o frescor de puro orvalho. Sim, ele fazia a lista e realizava sempre seus desejos. Tanto viajou, tanto viu, tanto aprendeu que, para seu espanto, com as últimas mudanças de regras de peso das bagagens, foi barrado e quase impedido de viajar.
Motivo: tanta bagagem não caberia no avião e não pode embarcar sem pagar taxa extra. Excesso de sabedoria.
Deixo aqui meu abraço de feliz ano novo, de verdade. Não se amedrontem nem desistam de seus sonhos. Você é o único instrumento de suas mudanças. Aprendi a duras penas e aconselho a ir sempre em frente, pois 2020 te espera de braços abertos.
Diário de Uberlândia 05/01/2020
A primeira vez
Não há desencanto de amor, paixões bem resolvidas.
Amigos os tenho, poucos. Porém forjados em boa têmpera.
Inoxidáveis, eternos.
Com o Criador mantenho bom cortejo, sem intermediários.
Não confesso a homem que se diz, arrogantemente, santo.
Me deixo levar pela louca vida embriagado e em permanente torpor.
Fardo árduo. Empreita difícil.
Me embriago em busca de centelhas de êxtase, de verdadeira razão.
Me embriago.
Atormentado, padeço à mingua de vida não correspondida.
(William H Stutz em um longe dia . Hoje no aguardo de um ano novo melhor para todos)
Nada é por acaso. Esse era seu eterno pensamento, sua verdade absoluta. Acreditava que tudo estava escrito nas estrelas e que, por mais que remasse contra a correnteza, o que teria de acontecer, aconteceria.
Assim levava sua vida insossa, sem sustos, planos ou certezas.
Um dia após o outro. O tempo ia se acumulando em sua alma, em seu corpo, em suas vestes. Não se dava conta de nada que o cercava. Fechado em copas vagava, flutuava. Fantasma.
Não se podia dizer que era triste, pois tristeza pressupõe sentimento. Não os tinha.
Não se podia dizer que era alegre, não o era pela razão mesma.
Não via televisão, não ouvia rádio. Cinema o entediava e teatro o punha a dormir. Nunca lera um livro ou jornal. No trabalho era peça de mobiliário. Cumpria mecanicamente seus afazeres sem questionar, não se aborrecia, não se exaltava.
Tinha horror a férias pois não sabia o que fazer delas. Feriados eram tortura. Nunca sorria, nunca franzia a testa.
Não tinha amigos ou conhecidos, jamais sentava à mesa de um bar. Não bebia, não fumava.
Certa feita sentado em banco de praça, avistou um anjo. Anjo de tal beleza tal que ofuscava o brilho do sol, calava pássaros, adoçava a brisa, iluminaria a noite.
O anjo estava parado próximo a uma fonte. Suas asas enormes em posição de descanso chegavam até o chão e eram de um branco divino jamais visito, jamais retratado. Contemplativo o anjo o observava curioso. Não havia reciproca pois para ele o anjo era na realidade apenas um anjo.
Curioso, a celestial criatura se aproximou. Chegou bem próximo dele. Frente à frente, nada. Encostou seu rosto no dele para que pudesse sentir o mais doce dos perfumes, o toque da mais macia e tenra das peles. Era como se ali não estivesse.
Perturbado, o anjo soprou levemente o seu rosto um hálito do mais puro frescor, ervas aromáticas mentoladas das mais finas regiões do éter, nada. Sentou-se intrigado por alguns instantes no encosto do banco bem ao seu lado. Com as angelicais mãos no queixo perfeito, avaliava a situação cuidadosamente.
Em leve flutuo postou-se novamente, agora agachado e com as mãos nos joelhos da pétrea figura. Entoou baixinho o mais belo de seus cânticos, ouvidos moucos, nem lágrima ou susto, mais uma vez um simples nada.
Pela primeira vez em sua eterna existência o anjo não se viu. Não foi festejado nem adorado, Não ouviu os ou ais de espanto/encanto. Não foi louvado nem escorraçado
Agoniado em imensa confusão voou solto e alto, o acompanhava agora para sempre a terrível dúvida se ele, anjo, realmente existia.
Diário de Uberlândia 29/12/2019
Juizo Final
Nem tudo ia assim tão bem pelas bandas do grande irmão do norte. Talvez influenciados por
esperteza tropical, em que se definiu que não haveria mais certo ou errado no ensinar língua pátria. Lá, foram mais longe ainda e resolveram abolir a escrita cursiva. Argumentos não faltaram, inclusive o hipócrita discurso de preservar florestas, pois deixaram de produzir papel e lápis. Pensou-se também em abolir matérias como Geografia e História, mas pesquisas demonstraram que estas já haviam sido extintas na prática há muito tempo. Para os “Brothers”, Buenos Aires sempre foi e sempre será a capital do Brasil, assim como, no inconsciente coletivo, eles derrotaram as tropas vietcongs com facilidade e só precisaram de um Rambo para tal.
“Bom dia, Vietnam” para eles é um hino de conquista. Quando perguntados o que achavam de outros países, a maioria, espantada, respondia com outra pergunta: “existem outros países?”
O que não se esperava era que, já acostumados a uma linguagem própria, o internetês crescesse vertiginosamente superando em anos luz o esperanto, que vinha tentando ganhar adeptos desde meados do século 17 d.C. A linguagem nas redes tomou conta do mundo em menos de duas décadas. Se uma risada era “lol”, “rss” ou “jajaja”, de uma hora para outra, o mundo inteiro passou a utilizar o “kkk” e assim foi com todas as outras palavras. Como microrganismos, foram entrando em todas as máquinas do mundo e, em pouco tempo, universalizou-se uma linguagem sem pé nem cabeça e, pior, sem som. Sem som, porque as pessoas pararam de conversar e os contatos passaram a ser feitos apenas por digitação.
Falar tornou-se obsoleto. Escrever partituras? Nunca! Os Loops Studio da vida davam conta de orquestras completas ao alcance dos dedos e de todos. E o homem passou a se sentir divinamente superior a tudo. De sua mesa, com seus fios, reinava soberano. De encomendar pizza a declarar guerras, a vida se tornou totalmente virtual e globalizada. Foi quando resolveram desenvolver um software livre, o Office_stairway_2_heaven 1.0, para chegar ao Criador. Assim, poderiam conversar de igual para igual com Ele, discutir alguns detalhes da condução da vida e fazer reivindicações.
Foi o estopim, a gota d’água que faltava. Deus ficou tão P da vida, tão de saco cheio com a desordem e presunção humana que resolveu dar um basta, pôr um ponto final naquilo tudo e desceu a mutamba.
Por séculos, observava aquele furdunço e, mesmo com toda a sua santa e infinita paciência, percebeu que até o próprio infinito tem limites. Com as mãos no teclado de onde fazia valer sua onipresença, pensou primeiro em dar um Ctrl+Z geral e desfazer todo processo evolutivo de sua obra. Analisando com calma, achou melhor implantar um vírus no sistema mundial e detonar tudo criado naquela nova Babel.
Não seria má ideia, mas, agindo desse modo, o Criador estaria muito próximo de imitar a própria criatura e isso não Lhe parecia correto. Resolveu, então, fazer à moda antiga. Mandou água com vontade por 40 dias e 40 noites, só que, desta vez, todos os homens e mulheres verdadeiramente justos e de fé estavam offline. Dessa forma, não houve um Noé a avisar nem arca a construir.
Diário de Uberlândia 22/12/2019
Doce sonho
Ela chegava mansa puxando sua longa e esguia sombra como quem nada queria. Sentava no banco mais sombreado da praça, um imponente ipê ou flamboaiã carregado de flor. Este último sempre em fogo como a mandar sinais para sua longe terra nativa, a grande e misteriosa ilha de Madagascar com sua variedade única de plantas e bichos, será que aquela da praça sonhava com imensos morcegos, verdadeiras raposas voadoras. Teria ela em seu cerne lembranças de graciosos/curiosos bandos de delicados lêmures a lhe acarinharem galhos e flores. Como sonharão as árvores?
Estas duas decoravam palco improvisado da magra e airosa moça. Não trazia caderno ou livro, apenas vestido de chita, blusa rendada, chapéu de palha de uma simplicidade elegante como a das princesas de suas histórias. Passarinhos, como em cena de filme de Walt Disney pousavam no mesmo banco sem medos, nunca em sua mão e não cantavam com olhos pidões como nos desenhos, apenas sentavam esparramados, aproveitando uma nesguinha de sol fujão da sombra densa fresquinha. Sua voz eram várias. Criança emburrada a velhinha coando café. De grito de araponga, rugir de onça, a sussurrar de vento. Virava onda esparramando espuma nas praias, virava trovão e tempestade.
Hora meiga como bica d’água de quintal, hora furiosa e grave como dragão adormecido em seu pior pesadelo. Passava como ninguém o som, a cor e o gosto dos escritos que não carecia ler – estavam todos em sua memória onde cabiam mais histórias do que as contadas nos papiros da Biblioteca Imperial de Constantinopla somados ao acervo da suntuosa biblioteca de Alexandria, transformados em cinzas cujo conteúdo parecia a pequena mulher ter aspirado cada partícula na tentativa de preservação de cada dito antes de espalharem-se em fuligem.
Não demorava muito, crianças, velhos, passantes cães errantes, gatos resmungões à sua volta reuniam. Como que paralisados, entravam em transe ao som do contar de cada história. Bebês, aos poucos, iam relutantes fechando olhos, caindo em profundo sono. Homens carrancudos, mulheres nervosas se aquietavam em calma de cordilheira branca em neve. Gatos se aninhavam nas costas de enormes cães. A criançada esquecia a bola, o peão, as brilhantes bolas de gude. O som de ensandecido trânsito desaparecia em mágica.
O tempo parava. Vivia-se ali a eternidade congelada. Assim como chegava, ia embora. Todos que ali estavam a seu redor não notavam a partida calma da contadora de histórias, o dom de tamanha assim permitia. Levava-se algum tempo para que todos voltassem ao planeta Terra, as pequenas crianças eram as que primeiro notavam e retomavam a cantoria de choros pirracentos, cães rugiam com o atrevimento dos gatos e os espalhavam árvores afora, as buzinas voltavam a disparar irritadas. O mundo acordava em pândega pouco festiva.
Mas um sentimento inexplicável ficava em todos, gentes e bichos – algo de muito bom tinha acontecido, como sonho esquecido, o gosto de fruta doce ficava na boca e na alma. E nossa mágica contadora de histórias ia mansa buscar outras praças. Entrechos novos sempre pairam ao seu redor, e ela, sorrindo sabia costurar mansinho uns aos outros na criação de alegria.
Diário de Uberlândia 15/12/2019
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