Consigo um minuto de Princesa, nossa gata, para sentar-me à minha escrivaninha. Ela acostumou-se a dormir lá, pois se sente protegida e pode olhar pela janela o movimento. Qualquer latido, miado, choro de criança ou conversa de humanos, ela estica preguiçosa o pescoço, descansa o queixo no parapeito e se põe a olhar em vigília os barulhos de fora. Lembra-me as fofoqueiras de cidades pequenas, ou abastadas, a se esconderem atrás de treliças para espiarem o mundo, que só poderão tocar depois de bem ou mal casadas. Aproveito essa bobeira da gata para tentar meu dedilhar de imagens. Foi ao ar perdeu o lugar, lhe digo com sorriso de canto de boca. Esfrego as mãos em alegria infantil, olhando ao redor, para não ser flagrado em insólito ato de alegria. Não quero virar meme. Aliás, sabe você o que é meme e de onde veio a palavra? Não? Então segue um pouco de cultura inútil, que por sinal pode até cair em prova: “Meme é um termo criado em 1976 por Richard Dawkins no seu bestseller O Gene Egoísta e é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros).” Pronto, que estamos que pé de igualdade em informação desnecessária, sigamos.
O ato de colocar o visto (de ver mesmo) em letras é, por vezes, cansativo e dolorido, mas na maioria dos momentos o emendar palavras é prazeroso e relaxante, terapêutico mesmo. Finalmente o ano novo vai engatando uma segunda e tomando jeito de algo realmente diferente do que foi o estranho 2020. Não, não quero com isso dizer que o louco ano que passou foi o pior dos piores da história, nem de longe. Se fizermos uma linha do tempo veremos anos mais pesados que, como tempestades de verão, arrasaram o planeta. Sei que a pandemia com este vírus cruel ceifou muitas vidas, trouxe luto para milhares de famílias, vem deixando um rastro de tristeza e destruição mental sem precedentes para as atuais gerações, mas já tivemos piores acredite. O negacionismo de governantes imbecilizados pelo poder só fez piorar e criou uma geração mais fácil de ser tangida. Um simples estalar de dedos os coloca em fila indiana prontos para o abate mental, o confronto gratuito, o destilar veneno fétido composto por tudo de ruim. O criacionismo ganhou espaço em pleno século XXI. Tudo isso só fez piorar o quadro pandêmico em que vivemos. Raves sem fim, máscaras no bolso, aglomerações e deboche fizeram o caminho livre para o agente letal. Politizaram a história natural das doenças, menosprezaram a ciência e atrasaram imunizantes. O grande energúmeno do norte esperneou até o último segundo para se manter no poder, a ponto de incitar o seu rebanho a invadir o congresso, gerando depredação e morte só vista uma vez: “A bandeira confederada nunca entrou no Congresso americano durante a Guerra Civil, entre 1861 e 1865. O estandarte vermelho atravessado por listas azuis estreladas não chegou a ser um símbolo oficial do sul escravista – era desfraldada só nos campos de batalha –, mas, no século XX, reconfigurou-se como um sinal de orgulho sulista. Ou de supremacismo branco, ou das duas coisas.” (Jerônimo Teixeira na Revista Época) O seu fiel seguidor tupiniquim já avisou que, se o voto não for no papel aqui no país das maravilhas pode acontecer o mesmo pelas rampas do planalto. Ora, se os caras se contentam com cinquentinha para cercar o “mito” dentro d’água numa praia, imagine o que fariam por um cachê mais vultuoso para atacar a democracia, ferindo-a de morte e rasgando nossa Carta Magna? Seria uma história de golpe anunciado? Garcia Márquez iria se deleitar com tanto assunto. Ele nunca poderia imaginar que o seu realismo mágico seria tão bem interpretado por um personagem da não ficção da política, de um país que jamais acorda de seu pesado sono.
Pessoas e pessoas, gentes que se dão ao trabalho de me acompanharem nesses desvarios semanais, a vocês desejo um Feliz Ano Novo de novo e que a medicação de governantes em todas as esferas do poder não perca a validade. Que eles possam em lucidez e paz acordarem juntos, ou antes, do gigante e que toda nação, em harmonia e segurança, até a tão esperada vacina, possa enfim compartilhar um grande e apertado abraço. Esperemos ansiosos o tal dia D e a louca hora H. Hora de levantar. Princesa já está enrolando nas minhas pernas, aos mios, pedindo o lugar. Como não ceder. Que venha 2021!
Publicado em Diário de Uberlândia em 15 de Janeiro de 2021