sexta-feira, abril 23

Noé o dilúvio e a Covid

 

“Noé foi um homem justo e perfeito em sua geração”, afirma a Torá. Sua vida e suas ações se entrelaçam com o Grande Dilúvio que varreu a Terra no início da história, destruindo toda a humanidade, à exceção dele e de seus familiares.” Revista Morasha Edição 43 - Dezembro de 2003.

"O remédio para o mal sempre precede o próprio mal.”

Uma singela charge que recebi pelo WhatsApp me trouxe um pensar diferente. Nela, se via ao fundo a Arca de Noé e os casais de animais enfileirados, tranqüilos, esperando sua vez de entrar. Em primeiro plano um casal de unicórnios se afastava em direção oposta, enquanto o macho sussurrava aos ouvidos de sua companheira de longos cílios e olhar tenro: “Preocupa não, vai ser uma chuvinha”

Relata a Torá, que desde a época de Enosh, filho de Seth e neto de Adão, os homens haviam progressivamente se desviado do caminho do bem, corrompendo-se moralmente. A geração que vivia na época de Noé, conhecida como a "Geração do Dilúvio", era depravada e degenerada em todos os sentidos (a Torá, conhecida também como Pentateuco, é o conjunto dos primeiros cinco livros da Bíblia e é a base da religião judaica).

Depois de muito tentar, penso eu que já de saco cheio, “D’us finalmente decide pôr um fim à maldade reinante, eliminando da face da Terra todos os seres vivos (Gênese 6:7). Após a destruição, Ele daria início a uma nova geração de homens.”

Não meu caro leitor, minha cara leitora, não pretendo aqui falar de religiosidades. Respeito todos aqueles que professam o bem independente de matrizes religiosas, seja ela indígena, ocidental, africana ou oriental. O fato de ser gnóstico me permite essa liberdade de pensar.

Voltando à charge da Arca e dos unicórnios, me deixei levar pelas mensagens ali contidas. Poderia ser uma referência darwiniana (chutei longe) a explicar a extinção de animais mitológicos e fantasiosos, como dragões, fadas, gnomos, caiporas, sacis e tantos outros que povoam o imaginário popular mundial. Mas não, viagem descartada, pois estes foram salvos e eternizados nas profundezas das arcas mentais dos povos que viriam e renasceriam como Fênix. Ela própria pensava-se perdida sob as águas do Diluvio “purificador”.

Porém, a verdade é que não dá nem para duvidar do recado dado. Vejam, e aí é outra viagem minha, o Brasil como sendo o mundo e na pressa de construir uma “Arca”, encontramos sim uma verdadeira Babel. Olha aí eu novamente me remetendo às escrituras, em particular ao capítulo onze de Gênesis, no qual o conflito de ideias é fomentando por lideranças de comportamento tresloucado, insensível e que chega às raias do sadismo. Negacionistas de berço e que preferem a confusão de uma Babel ao entendimento racional, científico e lógico da situação pré-diluviana que estamos vivendo. Meu receio maior é pelo que está no porvindouro dessa triste história. Poderíamos classificar a atual pandemia como o dilúvio contemporâneo, mas seria uma injustiça, para não dizer um insulto, jogar a culpa na Divindade Maior, como se D’us outra vez quisesse punir a humanidade. Não! Em pleno século XXI, a raça humana cada vez mais depreda, esbanja os já parcos recursos e quem deveria zelar pela natureza, pelos ecossistemas agredidos, pelo planeta em agonia, tange boiada para rápido ir passando. Criminosos! Não, o Sars-CoV-2, causador da atual pandemia de covid-19, não é um “castigo Divino”. Castigo e cruel é a inoperância em seu combate, a politização da doença: Quem é de esquerda usa máscara e apoia a vacina, quem é direita, em sua maioria, como unicórnios em extinção, a considera uma “gripezinha”. Há aqueles que diziam em tom de deboche que os mortos não passariam de uns 800 (?). Total falta de respeito com toda uma população. Hoje, quando já ultrapassamos 370.000 vidas levadas e nosso país ainda continua acéfalo de uma coordenação única, capaz de unir a todos em discurso e posturas proativas, que podem muito bem reduzir radicalmente o avanço da doença. Ao contrário, as lideranças maiores continuam agindo em parceria com o vírus. Seus seguidores, como que hipnotizados ou drogados pelas posturas inadequadas, irresponsáveis, perigosas, continuam a aplaudir com os olhos vidrados todas as perversidades de seu mito.

Nossa gente recebendo vacina às migalhas por falta de responsabilidade gestora e diplomática.

Nos falta urgente, como dito lá no começo “(...), um homem justo e perfeito em (nossa) geração (...). Falta-nos um Noé. Que venha o Dilúvio e leve a boiada água abaixo.

 

Post Scritum: Todas as referências à Torá e a Noé foram retiradas do site http://www.morasha.com.br, da própria Torá e da Revista Morasha da qual sou assinante.

 




Publicado em Diário de Uberlândia en 23 de abril 2021 ( Dia de São Jorge/Ogum)

terça-feira, abril 13

Sons de outono

 

Sons de outono

O arrastar cadenciado da piaçava penteando o chão seco vai dando um sono de sonho. Nem de vez outono direito e as folhas, para desespero de alguns, começam a desnudar as árvores. Para uns lixo a sujar, para mim uma passagem bela e hora de merecido recolher. Desde criança adorava pisar nas folhas secas e ouvir os diferentes sons produzidos. Seguia em meio aos  frondosos fícus da Bernardo Monteiro só para pisar em suas frutinhas em delicioso estalar. Ah, os Ficus de minha Belo Horizonte! Flávia Ayer contou em 2011 no Jornal Estado de Minas um breve relato do fim de inúmeras dessas árvores:Na década de 1960, Belo Horizonte assistiu ao corte de árvores até então mais polêmico de sua história. Na madrugada de 20 de novembro de 1963, cerca de 350 fícus foram cortados da Avenida Afonso Pena, na Região Centro-Sul. Oficialmente, a derrubada do corredor verde era justificada pela proliferação dos insetos Gynaikothrips ficorum, os tripes, batizados popularmente como “amintinhas”, numa referência ao então prefeito de BH, Amintas de Barros (1959 a 1963).

Outra versão, no entanto, aponta que a eliminação das árvores seria, na verdade, para alargar a Afonso Pena e dar lugar aos automóveis que chegavam às ruas, com o crescimento vertiginoso da capital, que passava de 350 mil habitantes na década de 1950 para 700 mil 10 anos depois.

Atrasava para a porta do Grupo Escolar, o Instituto de Educação. O ano era 1961. Eu e meus 7 anos de idade. Lá em casa todos já sentiam cheiro pútrido de algo no ar, que se consolidou em sombras em um março de 64. O jeito era mudar outra vez e permanentemente para os EUA. Mas a vida dá voltas e planos mudam todo dia.

Ponho atenção na preguiçosa vassoura, o tom não era de piaçava. O arrastar tinha sotaque diferente. Vou à janela conferir. Sabia! Era de folha de buriti. O som é mais arrastado e demora mais a intercalar. Senti cheiro de quintal de terra batida. São Sebastião do Pontal me veio. Pulou do velho HD das lembranças.

O céu se pintou de luz e o azul próprio da estação do fim das águas parecia trazer paz. Lá fora o mundo. Os sons de outono. Na minha varanda uma multidão de pequenas abelhas Jataí flutuava em coro mudo. Zangões a espera de uma princesa. Colmeia ia enxamear. Os hormônios, que só eles percebem, os excitam. Assim que a futura rainha sair em seu primeiro e único voo nupcial será perseguida por estes, cuja única função é desposar a abelha-mestra. Mas tudo tem um preço na natureza. Uma vez feita monarca o ex-futuro-jamais Rei terá morte lenta e dolorosa e a vida de uma nova colmeia surgirá em esplendor mágico.

As folhas de buriti continuam seu carinhoso arrastar. Uma leve brisa agita os sete sinos da felicidade pendurados entre minhas plantas e acalmam, a ponto de esquecer por alguns segundos a tragédia que assola o planeta.

Outro som, não de outono exatamente, mas que se faz destacar no silêncio de minha insulação, é o bater de antigo relógio de parede a contar o tempo desde meados do século XIX. Sua marca? Ansonia Clock Company.

Ansonia, não poderia ser mais apropriado. Quando o relógio chegou pelas mãos de Marília, uma admiradora e estudiosa de peças antigas, eu quase fiquei maluco. Tenho ouvido de tísico e ouço o que quase ninguém escuta. Daí talvez meu humor sempre ruim e só encontrando paz nas pequenas e silenciosas coisas da vida que me cercam. O tic-tac eterno e o bater das horas cheias e das meias horas me enlouquecia. Durante o dia menos. Mas dava noite, era um suplício. Um meio despertar a cada meia hora. Chegamos a um a acordo e à noite parávamos o pêndulo. Santo remédio para meus ouvidos. Mas não foi nada não. Marília viajando e eu só em meus silêncios. No tempo tamanho de um ficar me dei conta de algo a incomodar. Não achava o que era, por mais que puxasse do pensar. Até que, num reflexo... O som do relógio! Era ele que me fazia companhia junto com a sinfonia afinada de sinos, passarinhos, pio/ cantar de corujas, deliciosos chiados de morcegos a caçar, canto longe de galos, miados de gatos e embalador vento nas folhas das palmeiras a imitar o bater de ondas! O relógio regia a orquestra ou senão ditava alguma métrica. Em resumo, era o metrônomo da minha trilha sonora. Corda dada, acerto de horas e aqui está às minhas costas, em seu tiquetaquear enquanto escrevo. “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Continuo só por mais um tempo, mas a musicalidade do passar do tempo está normalizada. Diminui saudade um pouquinho só.

O varrer já se vai longe, mas ainda escuto seu arranhar mandrio. Contei que tenho ouvidos de tísico, o grito das Angolas parece mil trombetas desafinadas. Bênção e tormento.

 



Veterinário e Escritor

Diário de Uberlândia  9 de abril 2021