terça-feira, dezembro 23

Um conto, um Natal


Perdera a conta de quanto tempo estava apartado de casa.

O garimpo sempre fora seu sonho e, não importava onde nem como a um chegar. Embrenhava brejo, serra ou mata a dentro e na primeira visão de riacho ou barranco com sinais invisíveis de diamante montava morada.

Desta feita o lugar era estranhamente diferente de tudo que conhecia. Floresta fechada, agressiva com visitantes indesejados. Ele era um desses.

Apesar da lida diária, raros chibius brilhavam em suas bateias.

Corpo de velho em jovem idade. Esquecera também quantas malárias o fizeram tremer de frio em sol tropical do meio-dia.

Comia o que caçava e pescava. Da venda infinitamente distante, num lá impossível de alcançar num menos de quatro dias de andança firme, só o sal, o café já no fim, e a rapadura. Mais nada.

A rotina era sempre a mesma. Não foi diferente aquele dia. Acordava na ainda madrugada sempre. Os carapanãs não davam mesmo sossego, iam aos poucos sugando sua seiva, sua vida.

Pulava já cansado da rede que pendia alta, medo de onça. Seu garimpo apesar do córrego raso tinha dois sangradouros que, em desvios feitos à unha acabaram por formar profundo melechete, como aqueles em cata de ouro de aluvião e os de cassiterita. Movimentava-se naquela lama em lentidão de bicho doente.

Suspeitava que o mês era dezembro, não tinha folhinha. Mas a mata, os bichos e principalmente a chuva o ajudavam a calcular mais ou menos o tempo. Suspeitava.

Naquela manhã, azedo em febre desceu do pouso, empurrou goela abaixo dois comprimidos sujos de fundo de bolso de primaquina com um gole de café frio. Passou o canivete numa manta de carne de capivara seca e desceu fraco para o riacho. Tentou lembrar do rosto da mulher e dos filhos, não conseguia formar mais imagem de gente nem de lugares. Parecia ter nascido ali e nunca mudado.

Na memória apenas vultos, vultos e sombras. Sombras em eterno balançar como aquelas produzidas pelo reflexo da protetora fogueira noturna. Vultos envoltos, fumaça branca cheirando a alecrim do campo. Um balé triste e macabro, desfigurado. Tropical alegoria platônica em plena floresta, mas ele não sabia disso; sua luz, sua verdade tinham outro significado.

A bateia média pesava mais de cem quilos naquela manhã, mal sentia os braços. Nem se atreveu a tentar a cuia grande. Arrastava.

Já à beira do arroio afastou com o calcanhar o primeiro monte de cascalho e enterrou fundo n'água a surrada gamela. Em ritmo cadenciado passou as mãos por entre as pedras molhadas, gesto mecânico, sincronia dolorida.

O suor escorria grosso por sua testa, salgava os olhos. Sentiu vontade de chorar, não sabia mais como o assim fazer.

Num passar de manga de camisa, farrapo, por sobre o rosto pensou perceber um luzir diferente no meio da bateia. Com o coração apertado e rápido até aonde a terçã deixava, repassou a lavação das pedras.. Aflição.

Sonho de luz verdadeiro. A própria estrela guia dos Magos Reis estava ali ao alcance de seus dedos entre barro, pedras e pequenos e desavisados girinos.

Toda a clareira acendeu tomada por luz única de pureza jamais vista. Raios multicoloridos se espalharam por toda a mata ao redor. O ainda madrugada escura se transformou em dia claro, porém de um frescor beira-mar. Grilos e mosquitos se calaram num repente único e os primeiros pássaros em preguiça começaram seu piar. Se fez dia em noite quase finda.

Com as grossas e machucadas mãos em tremor doente agarrou a imensa e maravilhosa gema. Azul cristal, vermelho pálido, as cores variavam vivas em suas mãos. Bamburrou!

E nesse instante e só nesse instante, viu com clareza sóbria e sadia o rosto de seus filhos, de sua mulher. Viu seu casebre num sertão lá num longe. O alpendre de chão frio se fez sentir sob seus pés. O perfume dos manacás invadiu seus pulmões.

Cheiro do curral, das cabras. Se viu em casa farta e família segura.

Ouviu o som do balde subindo, batendo nas paredes de um poço cavado a quatro mãos com seu velho finado pai.

Viu um céu azul sem nuvens acordar lá longe em uma serra sem nome.

Se viu. Sadio, barbeado limpo, corpo e alma. Tudo, tanto sofrimento e solidão. Tudo tinha valido à pena. Finalmente!

Regozijo. Aos gritos e cambaleio, sem sentir se pôs a cair de costas. Braços abertos em seca e gigantesca raiz se aninhou. Braços em cruz. Virou eterno.

Olhos vidrados olhar perpétuo para o remanso do rego d'água que já não via nem ouvia.

O corpo, as mãos sem vida não soltariam jamais a pedra dos sonhos.

Rosto lívido, sorriso calmo, se foi morto como Ele crucificado, no exato dia do nascimento do Menino Deus.





dezembro - 2008

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