sexta-feira, agosto 9

Sardinhas




Vi, outro dia, em programa de televisão. Não me venham censurar, assisto sim à televisão aberta e não tem essa de me recusar parar nesse ou naquele canal. Vejo quando me dá vontade. Até novela espio quando em vez e não me envergonho disso. Tenho amigos que assistem a tudo, fingem que não. Por quê? Vergonha?

Assisto a vários telejornais, dos oficiais aos que se dizem “isentos”. Não aceito mais patrulha ideológica, nem de esquerda, nem de direita. Sou o que sou e pronto. Como escreveu Roberto Carlos, “só vou gostar de quem gosta de mim”. Claro que tem que ser na voz de Adriana Calcanhotto ou de Caetano. Não, também não dou conta de Roberto Carlos cantando. Me dá arrepio ver aquele senhor de falso sorriso a cantar “Esse cara sou eu” e jogar rosas para as senhoras da plateia, fingindo beijar uma por uma das rosas. Sou mais Erasmo, o roqueiro. Questão de gosto.


Assistir a tudo não significa que deixo que façam minha cabeça. Televisão e internet têm muito em comum. Aproveita-se pouco de seu conteúdo, mas é ótimo entretenimento. É só botar atenção e aguçar senso crítico.

Às sardinhas. O programa era sobre a migração das sardinhas, considerada a maior movimentação de uma só espécie em todo planeta, batendo inclusive a dos gnus, segundo a reportagem. Indescritível beleza a sincronia daqueles milhões de peixes em balé sem ensaio, em que nenhum indivíduo perde o passo – ou o nado. Disseram que um cardume daqueles pode chegar a ter quilômetros de comprimento e largura. A razão da aglomeração é intimidar predadores parecendo um único organismo vivo. Parece que não funciona bem, pois um ataque de golfinhos, tubarões, pássaros em mergulhos famintos e finalmente uma bocarra de gigante baleia reduzem a trupe a poucas escamas brilhando ao sol na imensidão azul. Nos relatam que é exatamente a quantidade que garante a perpetuação da espécie.

A comparação me veio em lampejo. As manifestações recentes das ruas, os jovens em imensas passeatas em ondas crescentes de pessoas, pareciam um único organismo vivo, cujo resultado é bem parecido. Assustaram muitos predadores de ideias. Aqueles que não andam no caminho da retidão ficaram espertos. Até em programas na televisão os políticos atores parecem ter decorado a mesma fala: “Olha, nós estamos escutando vocês”.
Mais uma vez, os humanos imitando bichos. Horda de predadores começa a beliscar  passeatas, divide-as em grupos menores, na tentativa de pulverizar seu poder. Tubarões especialistas em sobrevivência atacam em carnificina ideológica e econômica. Destroem lentamente a beleza coreográfica da liberdade, o verde-amarelo das faces a escorrer, como a maquiagem do palhaço, misturando-se, transformando em profundo azul, porém, sem brilho de cintilantes escamas ou de confetes e serpentinas dignas da bela festa cívica. Sobram baderneiros organizados. Um pisar em escombros.

Fico a pensar, somado ao controle natural da cadeia alimentar, a intervenção humana a cercar esses cardumes e a fritinha acompanhando bom chope lá no Beco das Sardinhas, na Miguel Couto. Acho que vai faltar sardinha. Mas será que vai faltar gente na rua? Quanto aos peixes não sei, mas, nas ruas, confio em Gianfrancesco Guarnieri e seu teatro de resistência, no cantar de Toquinho: “Quem souber de alguma coisa / Venha logo me avisar. / Sei que há um céu sobre essa chuva / E um grito parado no ar”.






Publicado Jornal Correio - Sardinhas em 09/08/2013


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