terça-feira, março 25

Sinfonia




Maritacas gritam, joão-de-barro em bater de asas chama. Bem-te-vis em bandos. Periquitos em algazarra. Gavião passa piando, silêncio momentâneo. Riso de criança, grito de mulher. Alguém tosse engasgado. Só um susto. Cães sem educação ou serão seus donos os de difícil conviver? Latem emparedados. Sinto cheiro de churrasco. Mais crianças se juntam em alegre brincar. Folhas arranham o chão de pedra ao vento sabor. Foguetes do nada espocam. Tem futebol? Zumbido de abelha nativa, imensa. Confundo com o bater incessante de asas de varejeira que nem lá está ainda. O belo e o podre, convivência.

Alguém pula em uma piscina, ouço as braçadas. Calor tórrido de fim de tarde. Mais foguetes.
Conversas em altos brados. Não é desavença, é álcool. Filha grita mãe, mãe grita filha, mãe fala com neto. Vizinhança. Som eletrônico, longe, quebra equilíbrio. Civilidade afetada.

Um corta grama. Infeliz atrapalha a tarde com Makita. Rolinha caça ninho, escorrega desengonçada em galhada. Bater de asas aflito, busca de equilíbrio. Uma torneira de pia se abre. Água jorra abundante. Privilégio. Recolho as canelas, mosquitos. Repasto noturno e eu sou a presa. Coço desavisado. Gargalhar de maritacas agora bem sobre minha cabeça. Brejeiras e lindas. Ao longe, repicar de trovão em céu azul/cinza de poucas nuvens. Mais a noite vai chover. Cheiro de queimada; entristeço. Um franzir de testa esperançoso. Será apenas fogão de lenha? Madeira de reflorestamento?

Observo. Botões de flor emergem do negrume do tronco da jabuticabeira. Fartura em breve.
Silêncio absoluto. Escuto o nada, ranger da alma. Dura pouquíssimos segundos, mas tem forte impacto, basta por atenção. Nem brisa corre, nenhum movimento se percebe. A rotina da vida pede ligeiro descanso. É como suspiro profundo, um olhar entorno. Para todo lado vê-se verde. Ilha. Uberlândia, cada dia vencido, mais me encanta. Refúgio.

Avião em turbinas abertas chega a pouso seguro. Céu escarlate, de brigadeiro. Tempo exato cronômetro meteorológico. Céu num repente se fecha, vento surge para espantar calor de mais de semana. Chuva despenca. O bater de água no telhado convida a dormir embalado. Em sábado farto, abundante de vida, ressono baixo. Agora, sapos, grilos, corujas. Sinfonia. Os sons mudam devagar em vagar contínuo. Solidão prazerosa, paz e silêncios próprios.

O som eletrônico insiste em atrapalhar a normalidade. Só ele resiste. Pobres pessoas. Logo amanhece domingo. Outro dia sonoro. Liquidificador a mil tritura vitamina. Pão na chapa, perfume de café coado. Passarinhada acesa e assanhada sai em busca de comida, filhotada ávida aguarda.

Abro a janela e respiro o mais puro ar da manhã, ainda úmido da chuva e de orvalhos. Deixo sair ligeiros sonhos de noite bem dormida. Sonhos são como bichos, não podem viver presos. Deixe livres.
Hora de correr. Meu indicador de distância é barulho de cozinha, bater de panelas. Cheiro perfume de alho e cebola, arroz a fritar.

Lá no alto teco-teco rasteja céu afora. Barulho custa passar. Será assim? Uma garrafa despenca de algum lugar. Mil pedaços, estilhaços. Imagino sol refletindo topázios, diamantes, safiras, rubis. Vassoura e pá, recolhe-se os cacos, tesouro.

Amanhecer, entardecer, noite densa. Já parou para ouvir o dia? Toda a existência em sinfonia. Basta apurar ouvidos e agradecer.





Publicado em Jornal Correio de 23/03/2014



https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhcF9acWRNdG5EdTQ/edit?usp=sharing

2 comentários:

Clarice Villac disse...

Crônica rica, revitaliza nossa percepção, valoriza cada momento!...

Que bom !

william h stutz disse...

Obrigado pela visita e leitura Clarice !