Para Clara Clarice Villac
Ela chegava mansa puxando sua longa e esguia sombra como quem nada queria. Sentava no banco mais sombreado da praça, um imponente ipê ou flamboaiã carregado de flor. Este último sempre em fogo como a mandar sinais para sua longe terra nativa, a grande e misteriosa ilha de Madagascar com sua variedade única de plantas e bichos, será que aquela da praça sonhava com imensos morcegos, verdadeiras raposas voadoras. Teria ela em seu cerne lembranças de graciosos/curiosos bandos de delicados lêmures a lhe acarinharem galhos e flores. Como sonharão as árvores?
Estas duas decoravam palco improvisado da magra e airosa moça. Não trazia caderno ou livro, apenas vestido de chita, blusa rendada, chapéu de palha de uma simplicidade elegante como a das princesas de suas histórias. Passarinhos, como em cena de filme de Walt Disney pousavam no mesmo banco sem medos, nunca em sua mão e não cantavam com olhos pidões como nos desenhos, apenas sentavam esparramados, aproveitando uma nesguinha de sol fujão da sombra densa fresquinha. Sua voz eram várias. Criança emburrada a velhinha coando café. De grito de araponga, rugir de onça, a sussurrar de vento. Virava onda esparramando espuma nas praias, virava trovão e tempestade.
Hora meiga como bica d’água de quintal, hora furiosa e grave como dragão adormecido em seu pior pesadelo. Passava como ninguém o som, a cor e o gosto dos escritos que não carecia ler – estavam todos em sua memória onde cabiam mais histórias do que as contadas nos papiros da Biblioteca Imperial de Constantinopla somados ao acervo da suntuosa biblioteca de Alexandria, transformados em cinzas cujo conteúdo parecia a pequena mulher ter aspirado cada partícula na tentativa de preservação de cada dito antes de espalharem-se em fuligem.
Não demorava muito, crianças, velhos, passantes cães errantes, gatos resmungões à sua volta reuniam. Como que paralisados, entravam em transe ao som do contar de cada história. Bebês, aos poucos, iam relutantes fechando olhos, caindo em profundo sono. Homens carrancudos, mulheres nervosas se aquietavam em calma de cordilheira branca em neve. Gatos se aninhavam nas costas de enormes cães. A criançada esquecia a bola, o peão, as brilhantes bolas de gude. O som de ensandecido trânsito desaparecia em mágica.
O tempo parava. Vivia-se ali a eternidade congelada. Assim como chegava, ia embora. Todos que ali estavam a seu redor não notavam a partida calma da contadora de histórias, o dom de tamanha assim permitia. Levava-se algum tempo para que todos voltassem ao planeta Terra, as pequenas crianças eram as que primeiro notavam e retomavam a cantoria de choros pirracentos, cães rugiam com o atrevimento dos gatos e os espalhavam árvores afora, as buzinas voltavam a disparar irritadas. O mundo acordava em pândega pouco festiva.
Mas um sentimento inexplicável ficava em todos, gentes e bichos – algo de muito bom tinha acontecido, como sonho esquecido, o gosto de fruta doce ficava na boca e na alma. E nossa mágica contadora de histórias ia mansa buscar outras praças. Entrechos novos sempre pairam ao seu redor, e ela, sorrindo sabia costurar mansinho uns aos outros na criação de alegria.
Publicado Jornal Correio em 12 de abril de 2015