"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
quarta-feira, dezembro 11
Jardins
Domingo quente. Novidade. Todos os dias da semana assim estão. A chuva vem em golfadas, chove aqui e ali adiante nem goteja.
Vindo das montanhas onde, quando despenca, a água toma a cidade, aqui no cerrado sempre me surpreendo toda vez que passo de uma área de chuva para outra seca. Na mesma rua às vezes. Pelo Whatzapp pipocam mensagens, com a senhorinha dançando a dizer “Aqui tá chovendo! Ai tá chovendo?
Não, aqui não choveu, penso. Nem uma gotinha trazida pelo vento ou asas de passarinho. Vejo água, feito rio, descer pelas ruas vindas sabe-se lá de onde. Aqui o sol castigando.
Lá nas serras e montanhas nuvens são aprisionadas nas pedras e se o céu fica embruscado geral, com água descendo para todo mundo. Obviamente me refiro a cidades menores, para um Belo Horizonte que, como serpente de concreto, avançou morro acima, engolindo aquelas situadas em seu entorno. Fica como aqui, chove norte, sol ao sul.
Aqui não. É vasto, amplo, o horizonte é reto – talvez um desmiolado terraplanista tenha desenvolvido a teoria da terra-pizza em algum ponto do cerrado. E olha só a manchete: “Segundo pesquisa do Datafolha, 11 milhões de brasileiros acreditam que a Terra é plana”. Fernão de Magalhães treme em seu descanso eterno com tanta babaquice. Olavo de Carvalho me poupe vá!
Se o Instituto de pesquisa avançar mais descobrirá que milhões acreditam em Papai Noel, outros tantos juram que coelho bota ovo de chocolate e outro grupo grande e sofrido acredita que os problemas do Brasil se resolvem com uma ditadura de direita ou de esquerda. Estes não são apenas desmiolados, são o retrato de uma cultura imbecilizada por propagandas massivas e Tweets infindáveis. Pense bem.
A beleza das terras altas como sempre encantam. Os espaços sem obstáculos deixam as nuvens livres, num vagar solto. Sisudas, as nuvens carregadas escolhem onde despejar carga. Tórrido domingo, resolvo visitar alguns jardins que pela vida fiz. Na primeira visita chego distraído próximo à primavera em desalinho, por falta de trato. Distraído e esquecido da época de choca dos pássaros pretos, fui recebido por um esquadrão negro a me dar rasantes e bicadas leves na cabeça.
Haviam se esquecido de mim tão ligeiro? Outro dia comiam em minha mão quirera farta. Hoje, ataques? Defesa das crias, isso sim. A memória dos agrados é apagada pela fúria protetora de mães e pais zelosos. Coloquei-me a conversar manso com eles e logo se acalmaram, pousando bem ao meu lado. A primavera, agora largada, se debruçava até o chão. Deu dó, pois já previa seu destino em poda. O Flamboyant Mirim estava em plena florada. Sorri. A pitagueira a pitangar, a amoreira amorando, deixando frutos pelo chão para alegria das cocares e das abelhas. Confesso que a pitangueira não plantei. Provavelmente algum morcego ou sabiá ali deitou semente, que vingou forte. A goiabeira salva, goiabando vigorosa, repleta de frutos cantos, encantos.
Outro grande jardim. Modificado, mas ali. Soprou lembrança de minhas mãos. O jambolão imponente com sua sombra maravilhosa, o grande ipê rosa, o esquálido ipê branco acuado em sombra. Vi florir uma vez. A mama-cadela, bela. Frutos com gosto de molecagem crescendo, crescendo. Abrigo de joões-de-barro. Lembranças. Sigo. O Jardim na sacada, que não plantei, mas vi de perto, sempre belo e bem cuidado.
Memória voou por outros jardins já desbotados, de perfumes indecifráveis e perdidos, com crisântemos, beijos multicoloridos e samambaias, muitas da adolescência. Orquídeas e espigado pé de Araçá, há muito sem sabor, quando muito amargo fel, já enterrada esquecida aleivosia.
“É sonho-segredo/Não é segredo/Araçá Azul fica sendo/O nome mais belo do medo/Com fé em Deus,/ Eu não vou morrer tão cedo/ Araçá Azul é brinquedo.” Assim cantou Caetano. Visitei outros tantos jardins. A maioria não existia mais. Abacateiros, bananeiras, árvores tantas. Hoje dão lugar a casas e prédios. O concreto enterrando aprazível verde.
Não me entrego. Ninguém deve desistir. Devemos sempre cultivar um jardim. Se não for possível em terra, que seja em nosso imaginário. Ali intocável prova de vandalismo do progresso ou de emoções se eternizará e poderemos colher sempre a fruta mais doce, a flor mais bela, sentindo o deleite da sombra mais fresca que a vida pode nos oferecer. Basta querer, basta cuidar. Somos todos jardineiros de nossos sonhos.
Jornal Diário de Uberlândia em 24 de outubro 2019
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