sexta-feira, setembro 25

Estiagem

“Ninguém recebe agradecimento por estar certo”

Escritor e matemático John Casti

 Tarde modorrenta outra vez. O calor se faz tanto que quase dá para senti-lo com as mãos como se fossem gotas de chuva em luz. Os gatos se escondem em sombras preguiçosas, com muito custo e abrindo olho só, bocejam sem precisar mexer um músculo além dos necessários. Enfastiados, quanto em vez valem-se de um pequeno tremor de orelhas a espantar mosquitos, deixam a cabeça cair de lado voltando a cochilo sem sonhos.

As Angolas antes arteiras e velozes, se recusam agrupar na grama forçadamente verde por molhança inútil de mangueira. Mesmo percebendo movimento diferente a preguiça as deixa assim, um quase inaudível “Tô...”, o “fraco” da cantiga, é engolido  seco com a umidade de deserto...

O vento se atreve mormo. O sol indomável explode nas paredes dos muros e as transformam em barro de fornos de carvoeiras.

 A noite vai custar a chegar. Mas como sempre o tempo não dá trégua e cauteloso avança.  O chegar do fim dia calor não respeita e fica. As pás dos ventiladores movem ar morno. A secura parece amainar. Pura impressão.

As cigarras arriscam um canto de namoro. Promessa de chuva perto? Antes era assim. Hoje? Vai saber, os bichos e seus fazeres foram mudados por nós, na bruta.

Lá embaixo, beirando brejo sapos em muito cantar saúdam o chegar da noite. Não, não conseguimos destruir o ciclo da vida dos pequenos. A sinfonia tanto dos sapos quanto das cigarras anuncia sim que logo as águas vão voltar. Não deu outra, as águas deram o delicioso ar da graça em plena segunda-feira, o som cadenciado nas telhas me acordou em plena madrugada. Pela janela a ver a festa. Durou pouco é verdade, mas lavou o céu e muitas almas. Amanheceu com sabiá cantando. Sei que poucos notam, mas fui acostumado assim.

Falo baixo demais segundo algumas pessoas e sempre me fiz longe de gritaria humana onde todos falam ao mesmo tempo e ninguém escuta ninguém. Com outros viventes, das pequenas abelhas Lambe-Olhos com seu milímetro e meio aos imensos jequitibás-rosa me dou melhor. Falo com plantas e bichos e podem acreditar elas respondem. Um dia, tempos atrás, semente de lichia foi gentilmente colocada em um vaso de minha horta. Anos se passaram, mas ela, indiferente ao tempo, teimava em se deixar quando a de palmo e meio de altura chegou. Sentei bem perto passei os dedos entre suas folhas então ásperas e cochichei baixinho recado de última chance. Ia transportá-la para vaso pequenino dando espaço para outra planta. Dois dias se passaram e os brotos em tons claros de um verde macio surgiram. Podem me dizer louco, mas assim aconteceu.

Com bichos e plantas tenho troca, com humanos quase nunca.

As inter-relações humanas são, maneira geral, tóxicas. Sentimentos ancestrais afloram com facilidade não em mim, bom eventualmente sim, não  fujo a regra, porém aprendi controlar e calar, mas noto em algumas pessoas de meu convívio pessoal e virtual: ódio, inveja, arrogância, competição. O simples fato de não ser ouvido em uma conversa deixa escancarado o mais primitivo sentir brotando dos grotões da consciência humana.

Tente conversar com um maluco terraplanista ou um antivacina. Assim também se dá com um fascista, um xenofóbico, um racista ou misógino. Me desculpe o excesso de pleonasmos. Boa sorte com seu monólogo. Ou melhor não perca seu tempo, deixa prá lá, nada de bom vai receber. Exemplifico: Estou em alguns grupos de WhatsApp por pura educação, pois nunca, nem escrever neles escrevo, mas também nada leio. Toda noite vou lá e limpo a conversa, só tem bobagem e um ranço triste. Claro, gosto de alguns e é por respeito a estes que ainda fico, por enquanto.

 Um dia deixo de lado as bobagens e saio desse convívio tão perigoso e peçonhento quanto sala de fumante.

 Céus, sim ao céu e à chuva voltemos. Preciso aprender a fugir de devaneios com tanta frequência. 

 A chuva. E nós, algum tempo depois das chuvas começaremos a reclamar do excesso dela . Eterna insatisfação, o ser humano desconhece felicidade plena.

Verão, ovos nas cercas e rezas para Santa Bárbara pedindo o fim das redentoras águas.

O calor, o incomodo passado do quase irrespirável ar seco em poeira e fumaça serão rapidamente esquecidas. As conversas, ah as conversas...

Será quando que vai estiar de vez? Pô essa chuvarada não passa? São Pedro está apelando...

E as florestas ardendo em criminosas chamas outra vez. Um ciclo de destruição que a cada dia nos leva mais próximos da extinção. O planeta terra agradecerá. Não faremos falta

Destruam as cidades e as florestas renascerão, destruam as florestas e as cidades sucumbirão

E ninguém por nós, ninguém pela vida.

 

Publicado em Diário de Uberlândia em 25 de setembro de 2020






 



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