segunda-feira, julho 16

Prisão

Outro dia comentei sobre a morte de Beto, o peixe, e seu funeral nobre e ritualístico no vaso sanitário do banheiro. Mencionei também que para ocupar o vazio deixado pelo mal-humorado e brigão, trouxe dias depois, três lebistes, um macho e duas fêmeas. Ali estão eles, levando sua vidinha submersa em vai para lá e vem para cá sem fim.

O aquário fica em uma estante e, como boa estante, há de ter livros. Ontem ao buscar “Morte e Vida Severina”, o braço não chegou a cruzar o trecho que me separava das obras literárias. Os olhos, sem motivo aparente nem por ordem minha, fitaram os peixes em sua clausura aquática. Fiquei preso ao chão a observá-los. As fêmeas de lebiste são feinhas e sem graça, não possuem nenhum atrativo estético especial. Já o macho, esse parece um carro alegórico. Sua imensa e multicolorida cauda lembra os estandartes de legiões romanas em marcha ou bandeiras de embarcações de hordas vikings a partir de seus portos nórdicos em busca de tesouros e de saborear, em homenagem a Odin, bom vinho sorvido em crânios de seus inimigos.
A cauda de nosso lebiste esvoaçava como se ao vento estivesse. E, é claro, o esnobe peixe bailava em galanteios às duas namoradas em majestosos movimentos coreografados. Muito brilho, um pequeno harém, liberdade nenhuma. Presos em ínfimo cubo de água.

Ainda parado, busquei cisma naquela cena. Os olhos não queriam desgrudar dos peixes, as pernas sem obediência, estáticas.

Quanta gente vive clausura semelhante. Tem o mundo à sua porta, mas se satisfaz com o limitado espaço oferecido por uma cidade, um bairro ou mesmo alguns quarteirões. O ir e vir, direito pétreo de todo ser humano livre, é cerceado, não por ditaduras e suas leis marciais, mas por elas próprias.

Alguns se limitam a suas casas, seus quartos. Que corrente invisível é essa que, como grilhões de titânio imobilizam em dor e sofrimento e trazem àqueles prisioneiros de suas próprias almas?

Uma das fêmeas do serralho do dono do pedaço dá um salto e quase cai fora do aquário. Tampa de vidro. O cubo se fecha sobre os seus ocupantes.

Outras pessoas se fecham em copas. Prendem em si mesmas. Seus limites passam a ser a própria pele. Tornam-se cativas e cativeiro. Se pudéssemos ver o que se passa em suas cabeças. O que deveria ser um universo infinito em luzes e iluminadas sinapses de ideias, sonhos, projetos e paixões, transformado em escuridão quase absoluta onde, ao acaso e sem ritmo, apagados quasares, um aqui, outro ali, longe, sem vigor, pulsariam desanimados.

Esta deve ser a pior das prisões. Alma na peia. Aos loucos houve tempo de lobotomia frontal. Alguns escolhem o mesmo caminho sem trepanações, seguem para a escuridão é lá se encolhem em cárcere.

Consegui sair daquele transe imposto pelos peixes, era como se quisessem me culpar pelo seu destino. Deixei o quarto com os pés pesando toneladas, suando frio e sem olhar para trás. Sei lá se me pegam outra vez.

Respirando aliviado, lembrei que não tinha pegado o livro. Quer saber, volto lá não pelo menos por um tempo.

Fiquei a imaginar, se um pequeno cubo d’água daquele tamanho me levou em viagem tão longe, imagina se visito o gigantesco Aquário de São Paulo ou o Sea Aquarium de Miami?

Entraria em catatonia eterna, prisão perpétua. Eu, hein? Tô fora. Amanhã solto os peixes no córrego.





Publicado no Jornal Correio em 16 de junho de 2012

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2 comentários:

Artur Maciel disse...

Interessante! Uma viagem ...

Eduardo disse...

Belo texto.