segunda-feira, setembro 26

Irreflexão




Casamento de sobrinha. Linda cerimônia, a começar pela beleza natural dos noivos. Alegria contagiante, ar de felicidade ecoava pela igreja de imensa e sóbria nave, a acomodar com conforto família e convidados. A cerimônia transcorreu bela e em paz absoluta. Cantos e serena musicalidade.

Finda a solenidade o costumeiro e agradável zum -zum-zum de encontros entre gentes que há tempos não se viam, beijos, apertos de mãos e, claro, as repetitivas piadinhas dos mais próximos. As gozações de sempre de todos os encontros, casamentos, aniversários e tais.
Bora pra festa? Onde fica o local do rega-bofe? Putz, essa expressão é antiga. Juro, não é do meu tempo.”— Opa! Finalmente o pai da noiva colocou a mão no bolso!” Gracejo. Hoje vamos nos fartar às suas custas, brinca o primo.

Outro lado bom dos casamentos são exatamente esses reencontros, onde reina bom humor, companheirismo e obviamente muita gozação.
— Eu não sou daqui, sei chegar não. Vai à frente que sigo, decide outro.
Eu, mesmo daqui sendo não sabia direito como chegar. Conhecia bairro, ruas, caminhos, mas o exato não. Tentei apelar para o GPS, mas quem disse que ele, no caso ela, a voz, estava de bom humor. Queria nem marcar o trajeto. Outro sobrinho: — Me segue, te espero ali e aponta o dedo para um canto da praça. Beleza, respondo.

Alguns minutos imensos a caçar grana para o flanelinha, que nem estava lá quando cheguei. Vou ao lugar do encontro, para em caravana de dois seguir.
Encosto bem atrás do carro que fica alguns minutos parado. Esperando mais alguém, penso eu. Sem aviso prévio arranca e segue rua. Eu atrás. Vira à esquerda, sigo. Dobra em avenida larga, acompanho. Acelera, piso um pouco mais a imaginar o motivo de tanta pressa. Passa ponte, viaduto e eu ali grudado, em zig zag de fórmula 1.

Caramba, será que tem alguém passando mal ou com vontade louca de ir ao banheiro? Não posso perdê-lo de vista, piso também.
O caminho estava certo. Mas me pergunto, para que tanta volta? Do nada, parou quase em frente ao 36º Batalhão de Infantaria Motorizado, a Águia da Tubalina do EB.
Não entendi nada. Pus-me em parelha e baixei o vidro.
— Errou, a virada é para a esquerda, gritei. Ele nem se deu ao trabalho de baixar o vidro coberto com uma película tão escura, com a qual certamente seria parado em blitz.
Pensei comigo: sigo, viro e mostro o caminho. Assim fiz.

Dei o balão na rotatória e de lá ainda gesticulei meio sem paciência, pois o tempo ia encompridando.
Nada, ficou quieto. Bom, ele sabe o caminho sigo daqui.
Fui matutando, mas cisma do jeito que veio se foi. Depois de perguntar a duas, três pessoas no trecho se conheciam a rua e de constatar que ninguém conhece nada, nem o próprio endereço, parei numa farmácia e recebi direitinho a indicação do lugar.

E não é que para meu espanto o sobrinho já estava lá, sentando confortavelmente? Uai, disse eu, não entendi sua pressa e sua parada perto do quartel!
— Eu não parei no quartel, e você sumiu! — Sumi? Estava colado na rabeira do seu carro! Estava não! Que carro você seguiu? — Ora, um não sei das quantas branco.
Mas o meu carro é prata!
Não é que segui o carro errado o tempo todo! E se fossem malas preparando um malfeito? Poderia ter tomado um tiro!
Vai ser distraído prá lá. “Viver é muito perigoso”. Viraria estatística e pronto.






Jornal Correio 25 de setembro de 2016

segunda-feira, setembro 19

Correr






Longe de mim campear seara alheia, principalmente, quando se trata de corridas. O grande maratonista Nilson Lima, a quem todos admiramos, é o mestre na arte. Eu, um mero aprendiz.

Há menos de seis anos, fui contaminado pelo prazeroso esporte. Nada de competir com ninguém. Minha luta é comigo mesmo, baixar tempo, melhorar resistência e tais. Não, não sou a dedicação em pessoa, não me alimento como deveria, treino sozinho e sem muita técnica. Corro porque gosto, me dá prazer e porres “endorfináticos”. Corria todo dia e depois completava com uma malhação básica, para fortalecer, principalmente, panturrilha, joelhos e tornozelos.

Tudo ia muito bem obrigado, até que em check-up anual descobri que meu CPK estava nas alturas. Na verdade, até então, nem sabia que tínhamos esse tal de CPK, que para mim soava mais com formulação de adubo tipo NPK 4.14.8. A causa de tal elevação, segundo o meu nefrologista, um super e dedicado profissional, estava clara: excesso de esforço físico. Eram quatro dias de corrida e dois a puxar ferro por semana. Sentia-me bem no peso e me dava ao luxo de tomar minha cervejinha fim de semana, sem culpa. Bastou um descanso de cinco dias e o tal voltou aos níveis normais.

E agora, José? Como refazer uma rotina de atividades para que a tal “creatinofosfoquinase” (é esse o nome do trem), mantenha-se em níveis que não me prejudiquem? Como fazer para não parar com tão prazerosa atividade?

Sim, diminuí radicalmente os treinos, tanto em quantidade quanto em tempo. Se corria 15 km, hoje corro cinco. Se treinava seis dias por semana, tento me satisfazer com quatro. O body pump está suspenso até segunda ordem, viu Carlinha?

Quanto aos outros dias, aqueles parados, fico parecendo cavalo de corrida em brete de largada. Não que eu seja um grande corredor, longe disso. Para usar ainda a linguagem do turfe eu poderia ser chamado de matungo ou mesmo um erado redomão, que corre por instinto, sem muita doma.
Puro impulso espontâneo, repito. Correr é prazer e pronto. Se não fazemos nada somos preguiçosos sedentários. Já fui assim tempos atrás. Até pagava menino para correr para mim. Se nos exercitamos muito, aparecem indicadores que te colocam em risco.

O tal equilíbrio. Como encontrar o ponto certo, a medida que supre o prazer de fazer e não o ameaça com mal pior? Poderia culpar a idade. Conversa. Nosso grande José Gama, do alto de seus 81 anos, está aí firme, correndo todo dia e foi homenageado em 11 de setembro com uma corrida maravilhosa. Merecedor de toda honra e pompa. Foi uma grande festa. Nosso queridíssimo e fera “Dez” beira a faixa etária do Gama, assim como tantos outros na casa dos “enta”.

Não, queridos amigos, a idade não é culpada. Enganam-se aqueles que pensam que vou parar. Vou nada. Asfalto, terra, trilha e serra sigo correndo, trotando nem que seja como o velho Rocinante de Dom Quixote.

Mas isso me lembra uma história contada, ocorrida lá pelas bandas de Sacramento. Dois irmãos a colocar atenção em calçadão de parque, em final de tarde:

— Mano, cheguei à conclusão que correr ou caminhar engorda e envelhece.
— Como assim? É justamente o contrário, retrucou o mais moço.
— Ah é? Põe tento aí no parque! Quem você vê correndo ou caminhando? Só idoso e obeso!

É o horário amigos! E que bom que estejam lá buscando qualidade de vida.
Vamos correr moçada, pois só faz bem. CPK prá PQP !






Jornal Correio em 18 de setembro de 2016

sexta-feira, setembro 16

Lembrança



Lembrei tanto de você moça. Seu perfume contagiante impregnado na pele, vento morno em chamar chuva que não nos ouve.
Conto minutos. Até o escurecer, até o escurecer

E essa primavera que se aventura ninhos adentro sem nem ainda ter chegado
tem pressa no seu preguiçoso passar

15 de setembro de 2016

segunda-feira, setembro 12

Advogado



Caso contado, reconto. Sempre quis ser advogado. Desde muito miúdo não perdia filme que tivesse júri. Ficava em pé junto à televisão, imitava gestos, andar e expressões, tanto da defesa quanto da acusação. Reproduzia jeito sisudo de juízes prestando atenção às teses e argumentos que, por fim, levariam réu a liberdade ou sairia dali algemado.

Terminado o filme, corria juntar amigos e criava clima de um julgamento no quintal de sua casa. Tinha de tudo. Advogado de acusação, júri, juiz e claro, o réu. Ele sempre fazia o papel da defesa. Os crimes eram terríveis e geralmente reais.

— Senhores do júri, este cidadão sem o menor pudor, na calada da noite, escondido pelas sombras e com a cumplicidade de Laica, a cadelinha da casa, com a qual mantinha um relacionamento muito próximo de amizade, teve o despudor de assaltar a geladeira e devorar, sem o menor constrangimento, a última fatia de torta enquanto seus pais inocentemente dormiam, envoltos pelas asas de Hipnos, pai de Morfeu. Por tal ato ilícito eu peço aos senhores “data vênia”. Embora não soubesse o que isto significava, usava toda hora.

Outros crimes levados ao júri do quintal. Roubar beijo da menina mais bonita da rua, faltar à pelada e nem emprestar a bola, esconder em casa em pique-pega. Gravíssimos crimes, para os quais a pena pedida era geralmente prisão perpétua. Agora, meu amigo, você pode imaginar o enfado daqueles obrigados a participar da brincadeira. E ai deles se negassem. Era tunda na certa.

Foi nada não. Menino cresceu sempre estudioso. Formou advogado. Não satisfeito, prestou concurso para delegado. Foi aprovado com louvor. Cabeceira mesmo. Glória tanta que lhe deram o luxo de escolher comarca.

Sonhador como sempre, escolheu cidade miúda encravada para os lados da serra da Bocaina, um lugar lindo em paz e roças de Lavandas. Sentia que ali poderia ganhar experiência de ofício, para depois, quem sabe, tentar concurso para juiz. Apesar de sempre se lembrar dos filmes de sua infância e da série dos magistrados, ele gostava mesmo era do teatral da cena.

Inexoravelmente, como diria Caetano o “Compositor de destinos/Tambor de todos os ritmos”, o bom e velho tempo voava. A pacata e bela cidade em eterna paz, não tinha crime nem desarranjo, nem roubo de torta ou beijo roubado. Viu-se triste e inútil. Aproveitava a delegacia vazia para estudar, pois juiz seria.

Em um final de dia arrastado, em que o perfume das lavandas iluminava o ar, resolveu parar em um dos poucos bares da cidade para tomar uma cerveja, antes de rumar para hotel onde morava. Sentou-se perdido em si mesmo, via longe para dentro das lembranças, nada envolta existia naquele momento.

Distração perigosa para delegado, mesmo em cidade de paz. Até de costas para porta ficava, um desaviso. Foi quando um cabra, totalmente bêbado, começou a fazer troça dele. No começo ele até sorriu, ligou não. Mas todos conhecemos bebum. Sorriso dado é trela e o homem não parava. Debruçava-se por sobre a mesa do delegado, falava alto, cuspido. Desagrado.

Resolvido a por fim nessa passagem, o jovem delegado fingiu sério: — Toma rumo cabra, se ficar amolando mais um minuto eu te prendo.

O bêbado em falar pastoso, torcendo o pescoço e a mão, retrucou:
— Senhor me prende, mas eu saio. Disse meio cantado.
— Sai não! Eu sou o delegado!
— Eu sei, mas quando eu prender o senhor, “cê” num sai nunca mais!
— E não?
— Não senhor, nunquinha mais.
— Ora essa, quem você pensa que é seu atrevido?!
— Uai, sou o coveiro Dotô, o coveiro.

Nosso amigo hoje é juiz federal.






Jornal Correio em 11 de setembro de 2016
 e
Jornal Voz Ativa - Ouro Preto Minas Gerais

quinta-feira, setembro 8

Coluna Social

Pronto, saí na Coluna Social, já posso virar letra de música.   Brincadeiras à parte valeu Jadir Júnior. Faço por merecer tal destaque?






segunda-feira, setembro 5

Vetustade






— Oi, sim, conte. Lembra quando criança?
— E lá você foi criança algum dia? Já nasceu pronto, velho. E sorriu vazio de dentes.
— Não implica ara, criados juntos reconhece? Tu mais eu, Belenzinho, Choreu, quem mais?
 Lembra aí.
— Esse povo morreu quase tudo, sobrou nóis, sei.
— Pois me fale, qual a melhor brincadeira de fazer naqueles tempos? —  Humm, tudo era bom.
— Pescar no córrego? Longe. Nadar na cachoeira?
— Perdeu distância.
— Sei no certo – com brilho nos olhos – ver as moças tomar banho na cachoeira, escondido na moita de bambu que nem calango, só os olhos de fora.
— É, era bom de mais da conta, vixe se era, mas ainda não era a melhor. — Como assim? Moço, menina nuazinha em pelo, molhadinha de gotejamento d’água, era ruim?
— Ruim era não, endoidou?
—Era bom que só, mas longe de ser o melhor trem de fazer.
— Conte pois, velho gagá, não consigo lembrar melhor. Sorriso de canto de boca, levou pensamento para poção do véu de noiva. Mocinhas arrepiadas de frio. Ouviu direitinho a gritaria. O coração acelerado, o desejo ainda por nascer se fazendo notar. “Minha linda juventude, páginas de um livro bom”.
— Fale estrupício, cadê que tinha melhor?
— Roubar galinha.
—Como é que é? Deu de babar agora?
—Lembra Deuzivaldo.
— Ara – fungando - não gosto que assim me trate! O nome é meu, mas gosto de jeito nenhum.
— Deixa de ranzinzagem Valdo, mas vai levar para o túmulo. Pois é Valdo, sempre foi promessa sua colocar nome de Valdo no retrato da carneira. — Esquece homem, dia ainda vai longe!
— Sei não, sei não…
— Mas pensa Valdo, aqui mesmo. Não era esse o banco de cimento doado por venda, mas era justo aqui. Lembra? Tronco de aroeira cumprido, apoiado em tocos fazia as vezes. A trama nascia aqui. Escolher o quintal, pajear as galinhas, saber o pouso de dormir.
Chegado o dia combinado, era esperar anoitecer e rumar para o terreiro. Uns vigiavam, outro pulava pra dentro. Com galho de goiabeira cutucava pés da escolhida de manso até ela, aborrecida, trocar poleiro pelo galho. Ciência e vagareza. Trazia manso até o braço alcançar. Ligeiro era o agarrar pescoço e torcer. Nem um pio. O que sobrava de medo enroscava bem perto do papo. Ali ficava vazio. O feito estava feito. Suando a testa a gente corria longe, em alegria. Quanta saudade de poder correr com vento judiando da pele! Olho marejava em feliz tristeza.
Aí Valdo era acender fogo, depenar, sapecar, passar o canivete no bucho, e assar em fogueira nossa, sem sal ou pimenta.
— Não senhor eu sempre levei trouxinha de tempero roubado do pilão de mãe!
—Verdade, levava mesmo.
—No fim sobrava quase tudo para Futrica. Cadelinha esperta aquela.
Por fome nossa não era. Era o prazer. Coxa, sobrecoxa, peito. O resto era dela, Futrica. Dormia dois dias, repasto.
— Valdo, e se a gente roubasse uma galinha hoje?
—Endoidou? Perdeu razão e juízo? Imagina tu subindo em muro! Nem bombeiro com ambulância consertava.
— É, tem razão, não podemos. Mas se encomendar?
—E menino de hoje rouba galinha? Sabe não. Vai acabar preso ou levando coça.
—Tem razão Deuzivaldo – assim disse para provocar.
—Valdo! Cansado de saber: V-A-L-D-O.
Cutucou Valdo com a ponta romba do canivete. É brincadeira sô!
—Vamos comer uma pizza então.
— E não? Agora.
— Ó, que galinha com pena era bom era, mas pra mim ainda carrego fresquinho as moças da cachoeira. Cada uma.






Jornal Correio em 04 de setembro de 2016