segunda-feira, setembro 5

Vetustade






— Oi, sim, conte. Lembra quando criança?
— E lá você foi criança algum dia? Já nasceu pronto, velho. E sorriu vazio de dentes.
— Não implica ara, criados juntos reconhece? Tu mais eu, Belenzinho, Choreu, quem mais?
 Lembra aí.
— Esse povo morreu quase tudo, sobrou nóis, sei.
— Pois me fale, qual a melhor brincadeira de fazer naqueles tempos? —  Humm, tudo era bom.
— Pescar no córrego? Longe. Nadar na cachoeira?
— Perdeu distância.
— Sei no certo – com brilho nos olhos – ver as moças tomar banho na cachoeira, escondido na moita de bambu que nem calango, só os olhos de fora.
— É, era bom de mais da conta, vixe se era, mas ainda não era a melhor. — Como assim? Moço, menina nuazinha em pelo, molhadinha de gotejamento d’água, era ruim?
— Ruim era não, endoidou?
—Era bom que só, mas longe de ser o melhor trem de fazer.
— Conte pois, velho gagá, não consigo lembrar melhor. Sorriso de canto de boca, levou pensamento para poção do véu de noiva. Mocinhas arrepiadas de frio. Ouviu direitinho a gritaria. O coração acelerado, o desejo ainda por nascer se fazendo notar. “Minha linda juventude, páginas de um livro bom”.
— Fale estrupício, cadê que tinha melhor?
— Roubar galinha.
—Como é que é? Deu de babar agora?
—Lembra Deuzivaldo.
— Ara – fungando - não gosto que assim me trate! O nome é meu, mas gosto de jeito nenhum.
— Deixa de ranzinzagem Valdo, mas vai levar para o túmulo. Pois é Valdo, sempre foi promessa sua colocar nome de Valdo no retrato da carneira. — Esquece homem, dia ainda vai longe!
— Sei não, sei não…
— Mas pensa Valdo, aqui mesmo. Não era esse o banco de cimento doado por venda, mas era justo aqui. Lembra? Tronco de aroeira cumprido, apoiado em tocos fazia as vezes. A trama nascia aqui. Escolher o quintal, pajear as galinhas, saber o pouso de dormir.
Chegado o dia combinado, era esperar anoitecer e rumar para o terreiro. Uns vigiavam, outro pulava pra dentro. Com galho de goiabeira cutucava pés da escolhida de manso até ela, aborrecida, trocar poleiro pelo galho. Ciência e vagareza. Trazia manso até o braço alcançar. Ligeiro era o agarrar pescoço e torcer. Nem um pio. O que sobrava de medo enroscava bem perto do papo. Ali ficava vazio. O feito estava feito. Suando a testa a gente corria longe, em alegria. Quanta saudade de poder correr com vento judiando da pele! Olho marejava em feliz tristeza.
Aí Valdo era acender fogo, depenar, sapecar, passar o canivete no bucho, e assar em fogueira nossa, sem sal ou pimenta.
— Não senhor eu sempre levei trouxinha de tempero roubado do pilão de mãe!
—Verdade, levava mesmo.
—No fim sobrava quase tudo para Futrica. Cadelinha esperta aquela.
Por fome nossa não era. Era o prazer. Coxa, sobrecoxa, peito. O resto era dela, Futrica. Dormia dois dias, repasto.
— Valdo, e se a gente roubasse uma galinha hoje?
—Endoidou? Perdeu razão e juízo? Imagina tu subindo em muro! Nem bombeiro com ambulância consertava.
— É, tem razão, não podemos. Mas se encomendar?
—E menino de hoje rouba galinha? Sabe não. Vai acabar preso ou levando coça.
—Tem razão Deuzivaldo – assim disse para provocar.
—Valdo! Cansado de saber: V-A-L-D-O.
Cutucou Valdo com a ponta romba do canivete. É brincadeira sô!
—Vamos comer uma pizza então.
— E não? Agora.
— Ó, que galinha com pena era bom era, mas pra mim ainda carrego fresquinho as moças da cachoeira. Cada uma.






Jornal Correio em 04 de setembro de 2016

Nenhum comentário: